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O conteúdo pictórico e a dimensão conceitual das imagens fotográficas

No documento Filosofia e cinema: uma antologia. (páginas 40-47)

As sete camadas da fotografia e seus

2. O conteúdo pictórico e a dimensão conceitual das imagens fotográficas

De acordo com a teoria de Dominic Lopes (2004:136), o reconhecimento desempenha uma função central na identificação do que a imagem representa o mundo como tendo – que constitui o conteúdo

pictórico da imagem (a camada (3)). Nossa capacidade de reconhecimento aplicado às imagens seria uma extensão da nossa capacidade ordinária de reconhecimento e do dinamismo dessa capacidade. Podemos visualmente reconhecer em nosso dia-a-dia: i) propriedades, ii) tipos de objetos e iii) objetos individuais.

O caráter dinâmico da capacidade de reconhecimento se encontra relacionado ao modo como podemos reconhecer propriedades, tipos e objetos individuais sob diferentes aspectos. Segundo Lopes: “o reconhecimento é dinâmico quando um objeto visto anteriormente como tendo um conjunto de propriedades visuais pode ser reconhecido posteriormente tendo outro conjunto de propriedades” (2004: 138). Podemos reconhecer um amigo há anos não visto, um objeto após várias transformações, objetos sob ângulos não usuais etc. Dentro de um certo limite de variações das propriedades (que determina o escopo da elasticidade do reconhecimento – para além do qual nos tornamos inaptos ao reconhecimento), somos capazes de reconhecer propriedades, tipos de objetos e objetos individuais.

Na interpretação de Lopes, é o caráter dinâmico de nossa capacidade de reconhecimento que nos permite reconhecer os elementos do design e os conteúdos volumétricos segregados no espaço pictórico tridimensional como propriedades, tipos de objetos e objetos individuais. Assim, podemos dizer, em acordo com Lopes, que os elementos que compõem o design de uma imagem (suas propriedades literais com função sintática) nos apresentam aspectos reconhecíveis das coisas (cf. 2004: 145).

Caso aceitemos a existência de conteúdos não-conceituais (como sustenta Lopes (2004; 141-2)), o reconhecimento não ficaria restrito aos elementos para os quais temos conceitos. Poderíamos reconhecer propriedades e objetos sem que tivéssemos um termo específico para designá-los18. Além dos conteúdos não-conceituais, o conteúdo pictórico

seria composto pelo conteúdo conceitualmente articulado reconhecido. São os elementos conceitualmente articulados que nos permitem

18 Recorrendo a um exemplo de Hatfield (2009), podemos ver um descaroçador de cereja – reconhecendo o mesmo tipo de objeto em vários lugares – sem que saibamos que seja um descaroçador de cereja. Teríamos, assim, uma visão não- epistêmica do referido objeto.

reconhecer uma imagem como, por exemplo, imagem-de-homem-idoso, ou imagem-de-criança, ou imagem-de-cão etc. Nesses casos de reconhecimento conceitualmente articulado, os conteúdos não- conceituais poderiam também desempenhar o papel de propriedades atribuídas na imagem ao objeto cujo tipo específico ou objeto individual foi reconhecido.

Há uma importante diferença entre as propriedades enquanto constituintes do conteúdo pictórico e as propriedades literais. As propriedades reconhecidas como parte do conteúdo pictórico estão situadas no espaço pictórico tridimensional, no qual há a distinção entre frente e fundo. Quando olhamos as propriedades literais da imagem, as vemos como parte da superfície da imagem – que, no caso paradigmático aqui abordado, é bidimensional.19 Com exceção das imagens que

exploram a continuidade entre o espaço tridimensional físico (no qual nos encontramos) e o espaço pictórico, para causar a ilusão de que os objetos retratados são objetos físicos ao alcance do espectador (sendo este o caso das imagens trompe-l’oeil que são bem-sucedidas)20, não

vemos o espaço pictórico como uma extensão do espaço físico. Vemos o espaço pictórico como condição de possibilidade da representação visual, cujas propriedades literais, por sua vez, se encontram no mesmo espaço físico no qual nos encontramos. Com isso, também não vemos a superfície bidimensional da imagem como uma fronteira transparente (semelhante a um vidro), que divide dois lugares de um mesmo espaço contínuo (este poderia ser o caso nas imagens trompe-l’oeil). Há, desse

19 Essa distinção será importante ao analisarmos os atos ilocutórios fotográficos que têm o conteúdo pictórico como elemento central – como no caso da fotografia modernista que explora elementos geométricos abstratos.

20 De acordo com Dominic Lopes: “Em um trompe-l’oeil bem-sucedido, as informações sobre as propriedades do design de uma imagem são impossíveis ou difíceis de serem vistas. Não é por acaso que entre as imagens trompe-l’oeil mais eficazes estão as pinturas de teto, como a decoração de Pozzo das abóbadas da Igreja de Santo Inácio, em Roma, cujas superfícies estão fora do alcance. Na ausência de informações sobre suas superfícies, tais imagens dão experiências exclusivamente de seus sujeitos e, portanto, são muito mais propensas a enganar os espectadores. Isso não quer dizer que as imagens trompe-l'oeil sejam sempre enganosas; apenas que elas são mais propensos a enganar os espectadores uma vez que impedem a apreensão de suas características físicas.” (2004: 40).

modo, uma diferença entre vermos na imagem aquilo que é representado no espaço tridimensional pictórico (sendo o ato de ver dentro da imagem chamado por Whollheim de “seeing-in”)21 e vermos os constituintes da

imagem como partes de um objeto físico (a folha de papel) no espaço físico. Desse modo, há uma importante diferença entre a superfície bidimensional do arranjo de cores da imagem (as suas propriedades literais) e o espaço tridimensional interno ao conteúdo pictórico – que é visto dentro na imagem. Com raras exceções, eles não são vistos como diferentes partes de um mesmo espaço.

Não creio ser possível que tenhamos ao mesmo tempo uma experiência de dois espaços sem que os víssemos como partes de um mesmo espaço (embora não me pareça aqui o lugar para argumentar em detalhes a favor disso). Assim, não creio ser possível vermos ao mesmo tempo a superfície de uma imagem (como parte do espaço físico) e o conteúdo pictórico no espaço pictórico. Nas imagens em geral, ou vemos as coisas representadas no espaço pictórico ou vemos as propriedades literais da imagem como parte do espaço no qual nos encontramos. (De modo análogo à impossibilidade de vermos o pato e a lebre ao mesmo tempo, na famosa imagem usada por Wittgenstein (2009)).

O uso do hífen, em parágrafos anteriores, na expressão imagem- de-homem-idoso e imagem-de-criança é introduzido por Nelson Goodman (2006) para distinguir o conteúdo predicativo da imagem – aqui chamado de conteúdo pictórico – da denotação. Segundo ele, uma imagem-de-cachorro-buldogue pode ser usada para denotar Winston Churchill. Uma imagem-de-Pegasus nada denota, embora tenha um determinado conteúdo pictórico. Os hifens marcam, assim, que o termo é uma classificação do tipo de imagem – o que o conteúdo pictórico representa. Quando a expressão é sem hífen ela diz respeito ao denotado – por exemplo, ao dizermos “imagem de Winston Churchill” estamos afirmando que aquela imagem, independentemente do seu tipo (que

21 Uma possível exceção talvez sejam as imagens propositalmente planas, como as pinturas de Jasper Johns: Flag (1954–55) e Target (1958). Nesses casos, não há a constituição de um espaço pictórico tridimensional e a experiência do “ver dentro” (“seeing-in”). Essas pinturas podem ser concebidas como obras que tematizam a recusa da “ilusão” da tridimensionalidade como um traço essencial da pintura.

poderia até ser, segundo Goodman, imagem-de-cachorro-buldogue) tem Winston Churchill como denotação. No caso da fotografia, o uso sem hífen indicaria o referente causal da fotografia – como, por exemplo, “fotografia de Winston Churchill” (no sentido que em inglês é atribuído ao “of”)22. Muitos autores ao criticar a filosofia de Goodman denunciam

o descompasso entre o tipo de imagem e a denotação (como a imagem- de-cachorro-buldogue que denota Winston Churchill) como um excesso do convencionalismo de Goodman (Kulvicki (2006), Lopes (2004), Novitz (1977)). Independentemente de se essa crítica é adequada ou não, podemos restringir nossas análises aos casos nos quais uma imagem-de- homem é usada para denotar homem, ou a imagem-de-cachorro- buldogue é usada para denotar cachorro buldogue. Ou seja, nesses casos, o que é denotado estaria relacionado ao tipo da imagem e ao conteúdo pictórico. Em relação à fotografia, nesses casos teríamos então um conteúdo pictórico reconhecido que daria ao espectador informações visuais do referente causal da imagem.

Podemos compreender as linhas gerais da teoria da imagem de Goodman como a aplicação às imagens da teoria das descrições de Bertrand Russell (1978). Segundo Goodman (2006), o conteúdo predicativo da imagem (chamado aqui de conteúdo pictórico) pode denotar: i) um e somente um (como no caso da imagem-de-Winston- Churchill), ii) ao menos um (como no caso de uma imagem-de-homem – sem a especificação de quem este seja), iii) nenhum (como no caso da imagem-de-Pegasus) ou iv) todos os objetos de um determinado domínio (como a imagens-de-homem-e-mulher-das-placas-Pioneer, presentes nas naves espaciais Pioneer 10 (1972) e Pioneer 11 (1973) – que representam todos os seres humanos).

No caso da fotografia, em decorrência da existência de uma relação causal entre a fotografia e o denotado, é plausível pensarmos que a fotografia esteja restrita a dois casos. O conteúdo pictórico da fotografia representaria um objeto específico - assemelhando-se, assim, às descrições definidas, cuja forma lógica expressaria que há um e somente um que tem tais e tais propriedades. Para alguns autores (Lopes 2004, Walton 2008), a fotografia seria ainda mais restritiva que as descrições

22 A importância da gênese causal na determinação do que a fotografia é de (“of”) é explorada por Kaplan (1968: 198) e Evans (1982: 124-125).

definidas. Elas seriam semelhantes a proposições singulares demonstrativas – pois veríamos o objeto ele mesmo através da fotografia, como possuindo tais e tais propriedades (exemplificadas na imagem). Porém, é possível traçarmos uma distinção entre a produção de uma fotografia e o seu uso.23 Embora a fotografia em um catálogo de compras

seja, por exemplo, a fotografia produzida como imagem de um objeto específico, ela é utilizada no contexto de um catálogo não como a representação daquele único objeto, mas de todos os objetos daquela categoria. Ou seja, poder-se-ia ter utilizado nas placas Pioneer a fotografia de um homem e uma mulher específicos como imagem-de- homem-e-mulher, que representa a humanidade. Podemos também apontar para uma fotografia de um homem específico fantasiado e dizer “isto não existe”; utilizando essa imagem como imagem-de-pé-grande24.

Além disso, poderíamos usar uma fotografia que reconhecemos como imagem-de-homem como representando qualquer homem, sem a especificação de quem este seja (de modo semelhante à quantificação existencial – significando ao menos um).25

O modo como as propriedades, tipos de objetos e objetos individuais reconhecidos estão combinados determina os comprometimentos explícitos, não-explícitos e não-comprometimentos da imagem. Como expõe Lopes (2004: 112-119), uma imagem é ‘comprometida’ com respeito a uma propriedade F se representa seu objeto como tendo F ou não-F (por exemplo, um homem pode ser representado como tendo cabelo ou como sendo careca – sem cabelo). Se a imagem não entra em detalhes acerca da F-dade, ela é ‘não- explicitamente não-comprometida’ (como uma fotografia de um homem distante, que não nos permite saber se ele tem ou não cabelo). Por fim, uma imagem será ‘explicitamente não-comprometida’ quando representa seu objeto como tendo uma propriedade que veta a possibilidade dela ser comprometida acerca de F ou não-F (por exemplo, um homem

23 A importância dessa distinção no caso das imagens é frisada por Novitz (1977), em vários momentos de seu livro.

24 Walton (2008) caracterizará esse caso de uma visão ficcional de um pé-grande, através da visão literal de um ator/modelo.

25 Retornaremos a este ponto ao analisarmos os atos de fala pictóricos fotográficos.

representado com um grande chapéu, de tal modo que vete a possibilidade da imagem se pronunciar acerca de se ele tem ou não cabelo).26 Segundo Lopes, a totalidade dos comprometimentos e não-

comprometimentos são os aspectos que, espacialmente relacionados em um todo unificado, constituem a imagem – “cada parte de uma cena que uma imagem mostra deve ser representada como estando em certas relações espaciais com todas as outras partes” (2004: 126).27

Uma maneira filosoficamente inocente de conceber o reconhecimento pictórico é supor que o reconhecimento ocorreria sempre de baixo para cima – das propriedades para os tipos de objetos e dos tipos para os indivíduos. Por esse viés, reconheceríamos primeiramente as propriedades e, ao vê-las ocorrendo em um mesmo lugar da imagem, reconheceríamos o objeto como aquele que possui conjuntamente essas propriedades (tomando o cuidado de excluir as propriedades literais da imagem que não são sintaticamente relevantes) e, ao reconhecermos esse objeto como um objeto previamente visto, o reconheceríamos como objeto individual (um particular) – caso já o tenhamos visto no passado. Todavia, há vários casos nos quais é o reconhecimento do tipo que determina quais propriedades serão reconhecidas. Podemos exemplificar essa determinação de cima para baixo (do tipo para as propriedades) através do uso de figuras ambíguas – como a figura do pato-lebre.28 Ao vermos a imagem como imagem-de-

pato, a vemos como uma imagem-de-animal-com-bico, embora, ao ser vista como imagem-de-lebre, a vemos como uma imagem-de-animal- orelhudo. Nesse caso, o reconhecimento das propriedades seria determinado pelo reconhecimento de tipo.

Outra maneira filosoficamente inocente de conceber o reconhecimento pictórico (que deve ser evitada) é supor que é a

26 Em Kulvicki (2006: 140-143) podemos encontrar uma análise crítica dessa terminologia usada por Lopes.

27 Não necessariamente os aspectos espacialmente relacionados que compõem a imagem representarão o mundo da maneira como o podemos ver. Uma fotografia panorâmica pode ter um campo de visão bem maior do que de fato podemos ver – a olho nu.

28 Esse exemplo é explorado em relação a esse contexto por Lopes em 2004: 145.

semelhança que determina o que será reconhecido. É um ponto assente das teorias da imagem que a relação de semelhança não seja suficiente para a representação. Dois carros podem ser visualmente idênticos e não necessariamente um representará o outro. Um ponto mais controverso é se a semelhança é necessária para a representação pictórica – sendo Goodman (1976) um bom exemplo dos que negam e Novitz (1977) um dos defensores da semelhança como condição necessária. Na teoria de Lopes, a relação entre semelhança e recolhimento é invertida: “quais semelhanças notamos são, pelo menos em parte, relacionadas aos processos de reconhecimento em virtude dos quais reconhecemos o conteúdo da imagem” (2004: 151). Vemos semelhanças entre uma imagem e um coelho, caso reconheçamos a imagem como imagem-de- coelho. Do contrário, veríamos semelhanças entre a imagem e um pato. Ou seja, neste caso também poderia haver uma primazia do reconhecimento do tipo frente às semelhanças. O mesmo poderia ser dito acerca da primazia do indivíduo frente às propriedades e semelhanças caso reconhecêssemos a imagem como uma imagem de uma lebre particular (como, por exemplo, a lebre que tive na infância), e posteriormente notássemos as propriedades e relações de semelhança.

3. As propriedades metafóricas da imagem e a teoria da

No documento Filosofia e cinema: uma antologia. (páginas 40-47)