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Cinema e autoria

No documento Filosofia e cinema: uma antologia. (páginas 177-179)

Filosofia do Cinema

3. Cinema e autoria

Filmes são produtos do trabalho de muitos indivíduos. Esse fato se torna evidente quando se assiste aos créditos que passam ao final de qualquer filme recente de Hollywood e se vê uma miríade de nomes a rolar na tela. Para cunhar uma expressão, poderíamos dizer que é preciso uma aldeia inteira para fazer um filme.

Por este mesmo motivo pode parecer surpreendente que uma parcela significativa de teóricos do cinema trate o filme como uma obra de um único indivíduo, seu auteur ou autor. Segundo os adeptos dessa linha interpretativa, o diretor de um filme é a inteligência criativa que molda o filme por inteiro, de modo semelhante a como imaginamos alguém que é o autor, digamos, de uma obra literária. A ideia de que o diretor é também o auteur foi sugerida pela primeira vez por François Truffaut – que mais tarde tornou-se um dos principais diretores da Nouvelle Vague. Truffaut empregou o termo polemicamente, para denegrir o então dominante modo de fazer cinema que enfatizava a adaptação de grandes obras da literatura para as telas. Na tentativa de valorizar um estilo diferente de fazer cinema, Truffaut alegou que os únicos filmes que mereciam a designação de arte

eram aqueles nos quais o diretor possuía total controle sobre sua produção, escrevendo o roteiro e efetivamente dirigindo os atores. Somente os filmes feitos segundo esse princípio mereceriam desfrutar do estatuto de obra de arte.

Com o propósito de legitimar os estudos sobre o cinema como uma disciplina acadêmica, o afamado crítico e teórico de cinema norte- americano Andrew Sarris adotou a teoria de Truffaut. Para Sarris, a teoria do auteur era sobretudo uma teoria de avaliação do cinema, pois sugeria, a ele, que as obras dos grandes diretores era as únicas obras significativas. Seguindo esse uso algo idiossincrático da ideia de Truffaut, Sarris chegou a alegar que obras falhas de grandes diretores eram artisticamente melhores que as obras-primas de diretores menores. Um aspecto mais defensável de suas ideias era a ênfase na oeuvre [obra] inteira de um diretor. No âmbito dos estudos cinematográficos, a ênfase em estudos sinópticos de diretores individuais decorre da versão de Sarris da teoria do auteur.

Uma consequência negativa da influência do auterism é a relativa depreciação de outros colaboradores importantes na produção de um filme. Atores, diretores de fotografia, roteiristas, compositores e diretores de arte, todos fazem contribuições significativas que a teoria do auteur subestima. Ainda que Truffaut tenha introduzido o termo polemicamente em favor de uma nova maneira de fazer cinema, teóricos subsequentes tenderam a ignorar os contextos de suas ideias.

Enquanto uma teoria geral sobre o cinema, portanto, a teoria do auteur é claramente falha. Nem todos os filmes – nem sequer todos os grandes filmes – podem ser atribuídos aos poderes do diretor. Os atores são o mais claro exemplo de indivíduos que podem ter um impacto tão decisivo na criação de determinado filme que, no final das contas, poderiam ser considerados mais importantes para o filme do que o próprio diretor. Embora filmes como os de Truffaut possam ser, em sua maioria, um produto de sua autoria, um filme de Clint Eastwood deve grande parte de seu sucesso à presença desse ator. É um erro tratar todos os filmes como se eles fossem o produto de um único indivíduo, o diretor. No entanto, velhos hábitos morrem lentamente, e filmes ainda costumam ser referidos por meio de seus diretores.

Uma crítica mais geral da teoria do auteur diz respeito à ênfase que esta depõe nos indivíduos. A grande maioria dos diretores estudados pelos

teóricos do cinema trabalham dentro de configurações institucionais bem estabelecidas, dentre as quais a mais famosa é Hollywood. Tentar entender o cinema sem enquadrá-lo no contexto mais amplo de sua produção tem sido considerada a principal deficiência dessa teoria.

Esse tipo de crítica do auterism recebeu uma formulação teórica no âmbito do pós-modernismo, com sua afamada (ou infame) declaração da morte do autor. O que este gesto retórico auto-consciente assevera é que obras de arte, inclusive filmes, não devem ser vistas como produto de uma única inteligência controladora, mas sim como produtos de seus tempos e contextos sociais. Assim, o objetivo da crítica não deve ser a reconstrução das intenções do autor, mas sim a elucidação dos inúmeros contextos que explicam tanto a produção da obra quanto suas limitações.

Mas se o contexto institucional em geral certamente é crucial para entender um filme, a teoria do auteur todavia oferece uma perspectiva útil para algumas aplicações no estudo acadêmico do cinema, como por exemplo a exploração do trabalho de diretores individuais. Mas até mesmo nisso tem havido preocupações no sentido de que a teoria enfatiza demais a contribuição do diretor às custas de outras pessoas – atores, diretores de fotografia, roteiristas -, cujas contribuições podem ser igualmente importantes na produção, se não de todos, ao menos de alguns filmes.

4. Envolvimento emocional

A discussão filósofica acerca do envolvimento do espectador com o cinema dá origem a um problema que já foi levantado acerca de outras formas de arte: por que nos importamos com o que ocorre a personagens ficcionais? Afinal de contas, uma vez que são ficcionais, seu destino não deveria nos importar da maneira como nos importa o destino de pessoas reais. Mas, é claro, nos envolvemos com os destinos desses seres imaginários. A questão é: por quê? Dado que boa parte dos filmes que atraem nossa atenção são ficcionais, essa é uma questão importante para os filósofos do cinema.

Uma resposta comum na tradição da teoria do cinema assevera que a razão pela qual nos importamos com o que acontece com personagens

No documento Filosofia e cinema: uma antologia. (páginas 177-179)