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6. Desafios

6.2 O papel dos atores do Inquérito Policial

Visto que a alteração legislativa efetivada Lei nº 13.245/2016 foi sobremodo tímida, tratando-se, em verdade, de uma novidade pseudodemocrática, sem real capacidade de modificar o sistema aplicável ao Inquérito Policial, passa-se a uma abordagem a respeito das supostas influências que a prefalada legislação causou na atuação dos atores do Inquérito, sobretudo do Delegado de Polícia.

Viu-se que o cotejamento das alterações produzidas pela Lei nº 13.245/2016 com os estudos sobre justiça administrativa levam à conclusão de que, para condução do Inquérito como autoridade administrativa, o Delegado de Polícia deveria ser dotado de certas prerrogativas, absolutamente inexistentes até o momento.

As mais altas autoridades do Poder Judiciário, Legislativo e Executivo, tais como Magistrados, Membros do Ministério Público, Procuradores dos Tribunais de Contas, Procuradores do Estado, Membros da Advocacia Geral da União, Membros da Defensoria Pública, são dotadas das prerrogativas de inamovibilidade, independência funcional e irredutibilidade de subsídios, sendo este um dos motivos da grande força e relevância social das instituições dos quais são integrantes.

É comum ato das as carreiras acima mencionadas o fato de serem, indiscutivelmente, consideradas como carreiras jurídicas, as quais são exercidas por profissionais formados em Direito, os quais, em sentido amplo, têm competência para assegurar direitos e garantias aos cidadãos.

A expectativa por dotar o Delegado de Polícia de prerrogativas decorrentes do exercício de carreira jurídica começou bem antes da construção hermenêutica construída a partir da Lei nº 13.245/2016. No ano de 2013, a Lei nº 12.830 trouxe alguns dispositivos para regular a investigação criminal conduzida por Delegado de Polícia, dispondo que as

atividades de "apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado".

Concebida sob intenso lobby de sindicatos e outras entidades de classe, o claro objetivo da lei foi estabelecer, de forma impositiva, que a carreira de Delegado de Polícia deve ser considerada como carreira jurídica.

A "Lei dos Delegados" foi bastante comemorada, sendo apregoado que, a partir dela, seriam sucessivas as edições de leis orgânicas, assegurando prerrogativas mínimas ao Delegado de Polícia, tais como inamovibilidade, independência funcional e remuneração digna, e possibilitando atuação como verdadeira autoridade administrativa, de viés democrático, capaz de assegurar direitos e garantias fundamentais aos destinatários da atividade policial.

Entretanto, não houve qualquer mudança significativa com a edição da lei, a não ser que os Delegados de Polícia passaram a contar com o tratamento protocolar de "Excelência"306.

Apesar da construção de todo este arcabouço normativo e hermenêutico, com vistas a viabilizar um incremento na relevância da atividade policial, o fracasso das tentativas leva à seguinte indagação: porque não há qualquer interesse em dotar o Delegado de Polícia destas prerrogativas?

Um dos fatores, já abordado em oportunidade anterior,é o uso político feito das instituições policiais. Como apuração de crimes (ou sua omissão) pode levantar ou derrubar mandatos eletivos, atrapalhar os lucros de grandes empresários, desmantelar o crime organizado e seus beneficiários no baixo e alto escalão,é interessante manter as instituições policiais sob à égide do Poder Executivo, sendo um entrave conferir qualquer tipo de independência para os condutores das investigações policiais. Neste contexto, remoções imotivadas são o caminho mais curto para atender os interesses políticos e econômicos de uma localidade.

Cumpre destacar que os demais atores responsáveis pela realização da justiça criminal colocam-se em posição bem confortável diante do controle institucional das Polícias pelo Poder Executivo - afinal, o Ministério Público só deflagra o processo penal, por meio do oferecimento da denúncia, após a conclusão exitosa do Inquérito Policial (já que na prática, a construção jurisprudencial que autorizou a investigação criminal por parte do MP permitiu tão

306

Na época, a exigência de tratamento protocolar idêntico ao que recebem "os magistrados, os membros da Defensoria Pública e do Ministério Público e os advogados." foi motivo de chacota no meio jurídico, que passou a denominar a norma de "Lei das Excelências".

somente a escolha de casos de repercussão para apuração seletiva por meios dos "super grupos" especiais para repressão ao crime organizado, de forma que, na maioria das vezes, a ausência de capilaridade e de interesse do Ministério Público culminam com sua rasa atuação na investigação criminal); e o Juiz, bem, a posição deste é ainda mais confortável, ante a sua inércia.

Mas existe um outro fator que impede qualquer esforço para promover tais alterações nas prerrogativas do Delegado de Polícia (na verdade, em favor do Inquérito, da lisura e eficiência do procedimento): os próprios integrantes da carreira não têm qualquer interesse em que tal fato ocorra, tendo em vista as consequências que isto implicaria. Explica-se.

O melhor caminho para atribuir ao Delegado de Polícia prerrogativas mínimas de atuação seria retirar a carreira do Poder Executivo e alocá-la junto ao Ministério Público ou junto ao Poder Judiciário. Neste modelo, o Delegado de Polícia assumiria a feição de juiz de instrução307, figura responsável pela condução da investigação preliminar, quando esta é judicial.

Todavia, embora aparentemente mais confortável, esta posição poderia trazer alguns percalços indesejáveis. Como membro do Poder Judiciário ou do Ministério Público, o Delegado de Polícia teria de ocupar-se exclusivamente de atividade jurídica, e se desvencilhar da atividade policial, perdendo algumas as vantagens decorrentes do exercício desta atividade, como, por exemplo, o direito à aposentadoria especial308; possibilidade de desempenho de mandato eletivo309; promoção por ato de bravura310; além de outras benesses administrativas

307 "Nos sistemas que adotam uma investigação preliminar judicial, o juiz instrutor é a máxima autoridade, responsável pelo impulso e direção oficial. Como protagonista, o juiz instrutor detém todos os poderes para realizar as investigações e diligências que entenda necessárias para aportar elementos de convicção que permitam ao Ministério Público acusar e a ele decidir, na fase intermediária, pela admissão ou não da acusação. Não se pode afirmar que seja um sujeito ativo, pois a imparcialidade que lhe impõe a lei faz com que sua posição seja distinta daquela que ocupam os demais sujeitos. Será um sujeito imparcial, ainda que responsável por impulsar e dirigir a investigação." LOPES JR. Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. 2ª ed, revista, ampliada e atualizada. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2003, p. 70.

308 A aposentadoria dos policiais atualmente é regida pela Lei Complementar nº 51/85, alterada pela Lei complementar nº 144/2014, que dispõe o seguinte em seu artigo 1º:

Art. 1o O servidor público policial será aposentado: (Redação dada pela Lei Complementar n° 144, de 2014) II - voluntariamente, com proventos integrais, independentemente da idade: (Redação dada pela Lei Complementar n° 144, de 2014)

a) após 30 (trinta) anos de contribuição, desde que conte, pelo menos, 20 (vinte) anos de exercício em cargo de natureza estritamente policial, se homem; (Incluído pela Lei Complementar n° 144, de 2014)

b) após 25 (vinte e cinco) anos de contribuição, desde que conte, pelo menos, 15 (quinze) anos de exercício em cargo de natureza estritamente policial, se mulher. (Incluído pela Lei Complementar n° 144, de 2014) 309 O exercício de atividade político-partidária é vedação expressa a Magistrados eMembros do Ministério Público, conforme se observa nos seguintes dispositivos:CRFB/1988: Art. Art. 95. [...]Parágrafo único. Aos juízes é vedado:II - receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo;III - dedicar-se à atividade político-partidária;

informais311, disponíveis a grande parte dos Delegados de Polícia, como a disponibilidade de viaturas caracterizadas ou não, muitas vezes para uso pessoal e fora das atividades funcionais, inclusive com disponibilidade de servidor policial no exercício da função desviada de motorista particular; escalas de trabalho altamente flexíveis; ingressos gratuitos em eventos e locais, assegurados pelo uso indiscriminado do distintivo.

Ponto que igualmente merece destaque é a evidente insatisfação de muitos ocupantes da carreira de Delegados de Polícia, os quais muitas vezes, não obtém aprovação em outros concursos, e mantêm-se queixosos em uma atividade pela qual não têm qualquer apreço, a qual se mostrou como única alternativa.

A pecha de "carreira jurídica de segunda categoria" afeta sobremodo a auto-estima dos Delegados de Polícia, sendo geradora de intenso atrito interno e fator de ausência de comunhão de interesses para os integrantes da carreira, de forma que, fora as eventuais circunstâncias de confronto em operações policiais, nos quais a vida esta em jogo, é evidente entre os Delegados de Polícia o predomínio do interesse individual sobre o interesse coletivo, não havendo qualquer mobilização interna para se angariar prerrogativas que melhorem as condições de trabalho das Polícias como um todo, e repercutam na qualidade da atividade policial prestada para a coletividade.

Ao menos até o momento, tem prevalecido o interesse na manutenção das "vantagens" de uma atividade híbrida - ora jurídica, ora policial. Enquanto as mudanças não chegam, sejam por vontade interna, seja por acomodação interna, os Delegados de Polícia contentam- se com uma mimetização das estruturas hierárquicas do Poder Judiciário, como explica José Ricardo Ventura Corrêa312:

Com isto queremos destacar que os conflitos interpessoais nas instituições policiais são permeados pelo dilema entre a lei e a ordem, que naturaliza a solução do conflito pela aplicação da lei e não pela construção intersubjetiva

Art. 128. [...]§ 5º Leis complementares da União e dos Estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos Procuradores-Gerais, estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, observadas, relativamente a seus membros: [...]e) exercer atividade político-partidária;

310

No Estado do Rio de Janeiro, a promoção por ato de bravura é prevista no art. 27, inciso VIII, do Decreto-Lei nº 218, de 18 de julho de 1975, segundo o qual:Art. 27 – São direitos

pessoais decorrentes do exercício da função policial:

[...]VIII – promoções regulares e por bravura, inclusive post mortem, ascensões regulares, inclusive post mortem;

311 Não que tais benesses sejam uma exclusividade dos Delegados de Polícia, estando presentes em graus diferentes no Poder Judiciário e no Ministério Público.

312

CORRÊA, José Ricardo Ventura. Segurança Pública e modernidade:proposições reflexivas sobre a Polícia brasileira. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de doutor em Ciências Jurídicas e Sociais.

de consenso, bem como pela mimetização das estruturas hierárquicas do poder Judiciário, a qual naturaliza a regra das lutas por poder próprias do campo jurídico, ou seja, reproduzem uma luta pelo direito de dizer o direito.

Assim, observa-se que a alteração legislativa produzida pela Lei nº 13.245/2016 não foi capaz de modificar a realidade das prerrogativas atribuídas aos Delegados de Polícia, perdendo-se a oportunidade de incrementar a relevância do trabalho desenvolvido e a credibilidade do Inquérito Policial.

Tendo em vista que mudanças impostas, de fora para dentro, por meio de normas e atividade hermenêutica, não têm se mostrado como instrumentos eficazes na mudança da realidade da atividade policial, torna-se pertinente apontar uma alternativa: uma mudança na mentalidade.