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4. Inquérito Policial e Justiça Administrativa

5.1 Sistemas Peritos e Inquérito Policial

A modernidade272 trouxe consigo um incremento da importância das instituições sociais, que se colocam ao redor do Estado e, juridicamente organizadas, procuram realizar o escopo precípuo de realização direitos fundamentais. Ao desenvolver as relações internas entre direito e política, Habermas273 sintetiza o que se espera da atuação do Estado na garantia de direitos subjetivos:

Em síntese: O Estado é necessário como poder de organização, de sanção e de execução, porque os direitos têm que ser implantados, porque a comunidade de direito necessita de uma jurisdição organizada e de uma força para estabilizar a identidade, e porque a formação da vontade política cria programas que têm que se implementados. Tais aspectos não constituem meros complementos, funcionalmente necessários para o sistema de direitos, e sim, implicações jurídicas objetivas, contidas in nuce nos direitos subjetivos. Pois o poder organizado politicamente não se achega ao direito como que a partir de fora, uma vez que é pressuposto por ele: ele mesmo se estabelece em formas do direito. O poder político só pode desenvolver-se

272 Ao explicar a origem do termo modernidade, Habermas aponta sua conotação usual: “A palavra modernusfoi utilizada inicialmente no final do século V para diferenciar um presente tornado “cristão” de um passado romano “pagão”. Desde então a expressão possui a conotação de uma descontinuidade proposital do novo diante do antigo. A expressão “moderno” continuou a ser utilizada na Europa – cada vez com conteúdos diferentes – para expressar a consciência de uma nova época.” HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. Tradução de Márcio Siligmann Silva. São Paulo: Litteramundi, 2001. p.168.

273

HABERMAS, Jürgen Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol.I. tradução: Flávio BenoSiebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 171.

através de um código jurídico institucionalizado na forma de direitos fundamentais.

Verifica-se, desta forma, que as instituições são criadas e colocadas à disposição da sociedade para realização de direitos subjetivos, o que, em verdade, justifica a própria necessidade de existência do Estado.

No tocante às instituições Policiais, verifica-se que as mesmas legitimam sua existência no dever simultâneo do Estado de aplicar da norma penal àqueles que ofendem um bem jurídico protegido, e garantir que os direitos fundamentais dos infratores da lei sejam respeitados. Neste contexto, com o passar dos anos, o Inquérito Policial passou a ser enxergado como um instrumento de duplo viés: meio de colheita de elementos para uma futura punição, e meio de garantia de direitos.

Apesar de o Inquérito Policial contar com duras críticas quanto à eficiência e quanto à extensão das garantias à disposição dos envolvidos durante seu desenvolvimento, é de se constatar que permanece, por parte da sociedade, uma confiança de que é o instrumento mais imediato de combate à impunidade.

Não se pode esquecer que a lavratura de auto de prisão em flagrante também é uma forma iniciar um Inquérito Policial, e não há momento em que a “justiça” é realizada de forma mais evidente do que quando um suspeito, interrompido em sua atividade criminosa, é preso em flagrante.

Esta confiança das pessoas no funcionamento de instrumentos e de instituições está relacionada como que Anthony Giddens274 denomina de “sistemas peritos”. Explicando o assunto, discorre o autor:

Por sistemas peritos quero me referir a sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje. A maioria das pessoas leigas consulta “profissionais” – advogados, arquitetos, médicos, etc – apenas de modo periódico ou irregular. Mas os sistemas nos quais está integrado o conhecimento dos peritos influencia muitos aspectos do que fazemos de uma maneira contínua. Ao estar simplesmente em casa, estou envolvido num sistema perito, ou numa série de tais sistemas nos quais deposito minha confiança. Não tenho nenhum medo específico de subir as escadas da moradia, mesmo considerando que sei que em princípio a estrutura pode desabar. Conheço muito pouco os códigos de conhecimento usados pelo arquiteto e pelo construtor no projeto e construção da casa, mas não obstante tenho “fé” no que eles fizeram. Minha “fé” não é tanto neles, embora eu tenha que confiar em sua competência como na autenticidade do

conhecimento perito que eles aplicam – algo que não posso, em geral, conferir exaustivamente por mim mesmo.

Em geral, partindo do pressuposto de que a realização da “justiça” por si mesmo é crime275, e tendo em consideração que o Estado possui o monopólio da persecução penal, o que resta às pessoas é confiar que esta atividade, seja na etapa pré-processual, seja após a propositura da ação penal, será desenvolvida com excelência. Assim, quando da instauração de um Inquérito Policial para apuração das circunstâncias em que uma infração penal ocorreu, a sociedade deposita confiança de que as instituições policiais serão capazes de cumprir sua missão, e que os autores de delitos serão identificados e punidos nos termos da lei.

Vislumbra-se, destarte, uma identificação do Inquérito Policial com a noção de sistema perito, que conforme salienta Giddens, é ainda um mecanismo de desencaixe276 “intrinsecamente envolvido no desenvolvimento das instituições sociais modernas”277

, removendo as relações sociais das imediações do contexto. De acordo com o filósofo “um sistema perito desencaixa da mesma forma que uma ficha simbólica, fornecendo 'garantias' de expectativas através do tempo-espaço distanciados.”278

A garantia de expectativas enunciada por Giddens indica que o sistema perito é baseado na confiança, traduzida para o leigo como um artigo de fé, “baseado na experiência de que tais sistemas geralmente funcionam como se esperam que eles o façam”279

.

A confiança nos sistemas peritos não está relacionada com a credibilidade que se tem nas pessoas, mas na correção de princípios dos quais se é ignorante. Logo, a confiança é

275

CP/1940: Exercício arbitrário das próprias razões

Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite: Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência. Parágrafo único - Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.

Art. 346 - Tirar, suprimir, destruir ou danificar coisa própria, que se acha em poder de terceiro por determinação judicial ou convenção: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.

276 “Que me seja permitido agora considerar o desencaixe dos sistemas sociais. Por desencaixe me refiro ao “deslocamento” das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço. Os sociólogos modernos têm discutido a transição do mundo tradicional ao mundo moderno em termos de conceitos de “diferenciação” ou especialização funcional”. A mudança de sistemas de pequena escala para civilizações agrárias e, então, para sociedades modernas, de acordo com esta concepção, pode ser vista como um processo de progressiva diferenciação interna. Pode-se fazer várias objeções a esta posição. Ela tende a estar vinculada a uma perspectiva evolucionária, não dando atenção ao “problema da limitação” na análise dos sistemas societais e muito frequentemente depende de noções funcionalistas. Mais importante para a presente discussão, contudo, é o fato de que ela não encaminha satisfatoriamente a questão do distanciamento tempo-espaço. As noções de diferenciação ou especialização funcional não são muito adequadas para lidar com o fenômeno da vinculação do tempo e do espaço pelos sistemas sociais. A imagem evocada pelo desencaixe é mais apta a capturar os alinhamentos em mudanças de tempo e espaço que são de importância fundamental para a mudança social em geral e para a natureza da modernidade em particular.” GIDDENS, Anthony. Consequências da Modernidade. Editora Unesp Fundação. São Paulo: 1991, p. 24/25. 277

Idem, p. 25. 278Idem, p. 31 279 Idem, p. 31

depositada no sistema abstrato e não no indivíduo que o representa. Neste sentido, Anthony Giddens define a confiança nos sistemas peritos como

[...] crença na credibilidade de uma pessoa ou sistema, tendo em vista um dado conjunto de resultados ou eventos em que essa crença expressa uma fé na probidade ou amor de um outro, ou na correção de princípios abstratos (conhecimento técnico).

6. Em condições de modernidade, a confiança existe no contexto de: (a) a consciência geral de que a atividade humana – incluindo nesta expressão o impacto da tecnologia sobre o mundo material – é criada socialmente, e não dada pela natureza das coisas ou por influência divina; (b) o escopo transformativo amplamente aumentado da ação humana, levado a cabo pelo caráter dinâmico das instituições sociais modernas.280

Acredita-se, pois, que um instrumento ou instituição criada pela atividade humana irá funcionar, porque se fundamenta em conhecimentos técnicos tidos como corretos, mas que são ignorados281 ou, ao menos, não dominados pelo leigo.

Assim sendo, o Inquérito Policial como um sistema perito está fundamentado em um arcabouço abstrato que leva às pessoas a acreditarem ser o meio mais adequado para dar início à justiça penal.

Mas esta credibilidade do Inquérito Policial é posta em xeque, havendo quebra das expectativas criadas em torno do adequado funcionamento deste sistema, na medida em que são exigidas das instituições policiais, no exercício de suas funções, soluções imediatistas para investigações, tendo como fundamento ora interesse de perpetuação do poder de determinados grupos políticos, ora o intento pseudo-informativo das mídias, ambos servindo ao sempre presente objetivo capitalista.

A solução açodada de crimes, apenas para dar uma resposta à sociedade, seja pela pressão imposta pela mídia, seja pelo controle que os poderes eleitos exercem sobre as Polícias, é um dos fatores que levam a quebra da confiança das pessoas no Inquérito Policial, que deixa de ser um instrumento de garantia, para ser um instrumento de lucro.

Neste ponto, torna-se relevante uma breve exposição acerca da utilização da racionalidade instrumental, evidente nos dias atuais quando se observa o relacionamento entre a mídia e as instituições policiais.

280 GIDDENS, Anthony. Consequências da Modernidade. Editora Unesp Fundação. São Paulo: 1991, p. 36 281 Ao sintetizar a ideia de confiança em sistemas, aponta Giddens que ela “assume a forma de compromissos sem rosto, nos quais é mantida a fé no funcionamento do conhecimento em relação a qual a pessoa leiga é amplamente ignorante”. GIDDENS, Anthony. Consequências da Modernidade. Editora Unesp Fundação. São Paulo: 1991, p. 80.