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3. Sistemas Processuais e Inquérito Policial

3.4 Notas sobre o sistema misto

Nascido no Code d’Instructiun Criminelle francês de 1808224, o sistema misto é caracterizado por uma “investigação preliminar e a uma instrução preparatória, e uma fase final, em que se procede ao julgamento com todas as garantias do processo acusatório.”225

. Quando da entrada em vigor do Decreto-Lei 3.889, de 03 de outubro de 1941 – CPP, ainda na vigência da Constituição de 1937, extraía-se,da motivos da lei processual, a aplicação deste sistema no Brasil. A este respeito, leciona Renato Brasileiro226 que:

Quando o Código de Processo Penal entrou em vigor, prevalecia o entendimento de que o sistema nele previsto era misto. A fase inicial da persecução penal, caracterizada pelo inquérito policial, era inquisitorial. Porém, uma vez iniciado o processo, tínhamos uma fase acusatória.

Neste sistema, o processo é divido em duas etapas diferentes: uma primeira, que objetiva apuração da materialidade e autoria do fato delituoso, de natureza inquisitorial, caracterizado pela forma escrita, secreta e com contraditório mitigado; uma segunda, marcada

222 CPP/1941: Art. 261. Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor.

223

Neste sentido, afirma Geraldo Prado: “Assim, se aceitarmos que a norma constitucional que assegura ao Ministério Público a privatividade do exercício da ação penal pública, na forma da lei, a que garante a todos os acusados o devido processo legal, com ampla defesa e contraditório, além de lhe deferir, até o trânsito em julgado da sentença condenatória presunção de inocência, e a que, aderindo a tudo, assegura o julgamento por juiz competente e imparcial, são elementares do princípio acusatório, chegaremos à conclusão de que, embora não o diga expressamente, a Constituição da República o adotou. Verificando que a Carta Constitucional prevê, também, a oralidade no processo, pelo menos como regra para as infrações penais de menor potencial ofensivo, e a publicidade, concluiremos que se filiou, sem dizer, ao sistema acusatório.” PRADO, Geraldo. Sistema

Acusatório: A conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 4ª edição. Rio de Janeiro: Editora

Lumen Juris. 2006, p. 195.

224 LOPES JR, Aury. Introdução crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista). 3ª edição, revista, atualizada e ampliada. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005, p. 169.

225

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 12ª edição revista e atualizada. São Paulo: Saraiva,2005. p.41. 226 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 2º edição, revista, ampliada e atualizada. Salvador: Editora Juspodivw. 2014, p.47.

pela oralidade, publicidade, com tarefas de defesa, acusação e julgamento desempenhadas por órgãos diferentes (juiz julga, órgão de acusação acusa e réu se defende).

O sistema é chamado por Franco Cordero227 de “monstro de duas cabeças”, recebendo a seguinte análise do autor italiano:

E assim, pela Lei de 17 de novembro de 1808, nasce o chamado processo misto, monstro de duas cabeças: nos labirintos escuros da instruction [instrução preliminar] reina Luís XIV; segue uma cena disputada coram populo. Para alguns parece um capolavoro [obra prima]: segundo os eufemísticos, "a informação preliminar" que aparece nas ordonnance de 1670, "é uma das mais preciosas conquistas da legislação"; habilmente conduzida, "ela protege os direitos dos cidadãos contra medidas imprudentes; ela prepara o julgamento; ela assegura a sabedoria"; em suma, é o legado "mais fecundo" do Quatrocentro [século XV] aos modernos. Jean Constatin, Charles Dumoulin, Pierre Ayrault, julgam-na menos bem: existe uma abismo, nota o último, entre "instrução secreta" e pública; “é fácil a portas fechadas ajustar ou diminuir, produzir brigas ou impressões"; a audiência pública garante um trabalho limpo; "haverá sempre alguma coisa a ser dita novamente" sobre os juízos não produzidos em público, do começo ao fim"; "esta face composta de mais olhos, mais orelhas, mais cabeças que aquelas de todos os monstros e gigantes dos poetas tem mais força... para penetrar até as consciências a ali ler de que lado está o bom direito, que a nossa instrução tão secreta". Até aqueles que louvam o código admitem algum defeito: "ali procuram em vão regras gerais, definições, divisões lógicas"; coisa venial nos textos entendidos como "expedição de trabalhos mais que" uma "satisfação da ciência"; menos perdoável é que falte "uma sanção séria" às poucas "disposições liberais"; "no conjunto das suas formas", entretanto, é "a lei de processo penal a menos imperfeita do mundo.

No mesmo sentido, o sistema misto sofre severas críticas de Aury Lopes Jr228, que igualmente explorando a metáfora do monstro de duas cabeças, expõe as fragilidades do sistema:

É necessário ler com muita atenção para compreender o alcance desse fenômeno, pois ele reflete exatamente o que temos no sistema brasileiro. O monstro de duas cabeças (inquérito policial totalmente inquisitório e fase processual com “ares” de acusatório [...]) é a nossa realidade diária, nos foros e tribunais do país inteiro.

[...]

A fraude reside no fato de que a prova é colhida na inquisição do inquérito, sendo trazida integralmente para dentro do processo e, ao final, basta o belo discurso do julgador para imunizar a decisão. Esse discurso vem mascarado com as mais variadas fórmulas, do estilo: a prova do inquérito é corroborada pela prova judicializada; cotejando a prova policial com a judicializada; e

227 CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale, Trad. de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Roma: UTET, 1986. p. 73

228LOPES JR, Aury. Introdução crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista). 3ª edição, revista, atualizada e ampliada. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005, p. 170.

assim todo um exercício imunizatório (ou melhor, uma fraude de etiquetas) para justificar uma condenação, que na verdade está calcada nos elementos colhidos no segredo da inquisição. O processo acaba por converter-se em uma mera repetição ou encenação da primeira fase.

Ademais, mesmo que não faça menção expressa a algum elemento do inquérito, quem garante que a decisão não foi tomada com case nele? A eleição (culpado ou inocente) é o ponto nevrálgico do ato decisório e pode ser feita com base nos elementos do inquérito policial e disfarçada com um bom discurso.

Outro ponto que recebe críticas no sistema misto é a participação do magistrado na primeira etapa da persecução penal. Assevera-se que ao apreciar as medidas revestidas da chamada cláusula de reserva de jurisdição ainda na fase de Inquérito Policial, o juiz deixa de manter a necessária posição de alheamento, afastamento da arena das partes, ao longo de todo o processo229.

Ademais, o esta participação do juiz na etapa inquisitória pode viabilizar uma certa antecipação de formação do juízo. Nas palavras de Jacinto Coutinho230, abre-se ao magistrado a “possibilidade de decidir antes e, depois, sair em busca do material probatório suficiente para confirmar a 'sua' versão, isto é, o sistema legitima a possibilidade da crença no imaginário, ao qual toma como verdadeiro.”. Questiona-se, assim, o comprometimento da imparcialidade do juiz.

Observa-se, pois, que o sistema apregoado como uma evolução quando de seu surgimento, recebeu e recebe duras críticas da doutrina, dada a sua excentricidade.

Ao analisar a adoção do referido sistema no Brasil, Marcus Montez231 pondera que:

Anunciado como a modernização do processo penal, poucas vozes denunciaram que havíamos importado “gato por lebre”; que o dito sistema misto, de origem no Code d´instruction criminelle de 1808, e influência direta do Código Rocco de 1930, era, na realidade, uma mutação do sistema inquisitivo puro, com clara função utilitarista, que preteria as garantias fundamentais em prol do poder punitivo.

De 1941 até hoje já tivemos algumas reformas processuais. Alimentamos o “mostro” para que ele não devorasse os “convidados” (nós mesmos, cidadãos); retiramos as suas “presas”, para que ele fosse menos hostil; tentamos até domesticá-lo para que ele vivesse civilizadamente no seio da sociedade (outrora conhecida como Estado Democrático de Direito). Frente aos insucessos, alguns o vestiram uma nova roupa, com o fim de que os

229 Idem. p. 172. 230

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos Princípios Gerais do Processo Penal Brasileiro. Disponível em: <

http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:E7VbJy2X4FgJ:www.direitofranca.br/download/Introd ucaoaosPrincipiosGeraisdoDireitoProcessualPenalBrasileiro2005.doc+&cd=2&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>. Acesso em: 11/08/2017.

231 MONTEZ, Marcus. “O monstro de duas cabeças” e o processo penal. Disponível em: <http://esdp.net.br/o- monstro-de-duas-cabecas-e-o-processo-penal/>. Acesso em: 26/05/2017

incautos não percebessem sua presença. Mas o monstro continua lá, vez e outra fazendo suas vítimas.

Neste contexto, observa-se evidente incompatibilidade do sistema misto com os princípios e direitos individuais assegurados a partir da Constituição Federal de 1988, de modo que além da imprescindível uma releitura das normas infraconstitucionais, torna-se imperiosa uma adequação do ordenamento jurídico processual-penal, aproximando-o, paulatinamente, da dos direitos e garantias assegurados pela CRFB.