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3 ATOS DE CURRÍCULO E FORMAÇÃO: OS INÉDITOS ENCONTROS

3.3 Atos de currículo e formação

Atos de currículo é ato da centralidade da formação, porque aprende, ensina, avalia, em contraste. A formação é “interna” ao sujeito, pertence a ele, mas, irredutivelmente, dialética, só acontece em situação de sociabilização, contextualizada cultural, política, histórica e economicamente. “A formação é sempre singular, mas esta singularidade se constrói pelos percursos socializados, habitados por heranças coletivas” (DOMINICÉ, citado por MACEDO, 2013, p. 46).

Quando estive observando atividades realizadas no curso, um estudante, no sexto semestre, falando do seu processo formativo em função das necessidades que tem sentido na construção do seu trabalho de conclusão de curso, disse

Eu só vim cair na real mesmo, começar a levar a sério, quando chegou agora, no sexto semestre, que comecei a sentir falta de todos os conteúdos que já tinham “passado por mim” e isso passou despercebido [...] quando chegou agora eu tive que pegar os textos do início do curso para estudar, porque quando olhei os assuntos que tenho que escrever na monografia, eu vi assim: “dei isso no primeiro semestre, dei aquilo no segundo” [...] se eu pudesse eu tinha aproveitado bastante o meu primeiro, meu segundo, meu terceiro semestres, que eu penso que é a base de tudo [...] eu comecei a me cobrar mais, comecei a sentir a necessidade de estudar mais [...] (ESTUDANTE GIRASSOL).

Em momento da roda de conversa com professores, estudantes e egressos do curso, na qual tivemos como pergunta/provocação central “qual pedagogo me tornei”, uma estudante do último semestre falou

Foi um envolvimento muito grande, como ser humano, fazer o curso de Pedagogia foi o melhor para mim. Não estou falando de conteúdo (não estou dizendo que não seja importante, você passa quatro anos

aqui e precisa ter ressignificado alguma coisa), mas de ser humano, para me entender, para me conhecer. Eu não me conhecia e a gente julga o outro porque não se conhece [...]. E hoje eu sei [...] fazer uma ponte entre o curso de Pedagogia e o que acontece lá fora. [...] A preocupação com o ser humano. Admiro todos os professores, vocês são referências, não só na questão de conteúdo, mas de vocês terem essa utopia de pensar no outro como ser humano (ESTUDANTE IPÊ ROXO).

Pondo a formação em perspectiva, os atos de currículo expõem as políticas de sentido que transitam no contexto formativo. Ao pensarmos/praticarmos, ensinarmos/aprendermos conteúdos formais, acabamos por pensarpraticar,

ensinaraprender nossas concepções, nossos princípios e nossas interpretações de

mundo, em termos individuais e coletivos, que passam a se constituir como conhecimento da/na/com a formação.

Justamente porque a formação não se ajusta à fabricação, à previsão que se quer perfeita, ao controle de produtos finais, ela não pode ser concebida como tal. A formação é assunto do âmbito dos atos de sujeitos humanos, portanto é do âmbito do imprevisto e do

inusitado (MACEDO, 2013, p. 47). (grifo do autor).

O imprevisto e o inusitado, o acontecimento parece ser o que temos de mais comum, ordinário e cotidiano no processo formativo. Desde o acontecimento que arrouba, extasia, surpreende, assusta, até o mais discreto, sutil, quase imperceptível, mas que desloca, desequilibra e, de ambas as formas, extrapola todas as previsões e, às vezes, provisões; exigindo, pois, novas composições que só são possíveis a partir da nossa compreensão de que a “[...] formação como experiência aprendente irredutível e sempre valorada faz parte da emergência da heterogeneidade também irredutível” (MACEDO, 2016a, p. 51). Entretanto, essa compreensão só é possível na admissão do caráter da incompletude humana e, por conseguinte, do caráter necessariamente dialógico do currículo, que só acontece em atos.

Uma professora entrevistada, respondendo sobre a ação do/no currículo diante do acontecimento, diz

[...] a gente sabe muito bem que esse currículo estabelecido não vai responder a situação humana, que é com que nos defrontamos no dia a dia, junto com a questão dos preconceitos, todo tipo de preconceito, junto com o próprio processo de competição, de

desumanidade com o qual a gente tem se enfrentado no dia a dia. Então, lógico, se estamos atentos a esse novo devir, a essa nova situação que se apresenta [...] o que a gente pode chamar a temática transversal, que se bem que não se pode dizer isso, também, que é outra coisa meio complicada, “transversal”; não existe nada transversal à vida. Todas as questões, todos os fenômenos estão dentro da vida [...]. Então, é exatamente, é o resgate disso. Em termos da espontaneidade das educandas, dos educandos, é que a gente procura exatamente ouvir o que que eles têm a dizer (...) (PROFA. VIOLETA).

Atos de currículo, ao mesmo tempo, contrastivamente, realça e desequilibra identidades, nos fluxos cotidianos do movimento das aprendizagens. Primeiro, intencionalmente, por estarmos em um contexto cujo último objetivo é aprender. Pensar em aprendizagem sugere ter acesso a um novo saber, saber o que não se sabe, ao menos da forma que se sabe, ressignificar antigos saberes, o que de algum modo se pretende que provoque mudança de ser, de saber, de fazer e de poder. Para Macedo (2010, p 117),

Como uma atividade humana extremamente complexa, a aprendizagem se caracteriza por um processo em que o sujeito busca, e é desafiado a buscar, compreender a realidade em que vive e a si, através de sua capacidade percepto-cognitiva e de interação estruturantes (nem sempre conscientes), mediadas por suas intenções, interesses, desejos e escolhas, modificando, portanto, seu meio e a si próprio [...] (grifo do autor).

Segundo, condicionalmente, porque, em sendo ensinante somos também sujeitos de comunicação e “[...] educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é a transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados” (FREIRE, 2002, p. 69). Nesse sentido, precisamos, necessariamente, conhecer a linguagem do outro, da cultura, dos afetos para que a comunicação se estabeleça e isso significa aprendizagem contínua e cotidiana. Daí, voltamos ao movimento sugestivo de que a aprendizagem promove mudança de ser, de saber, de fazer e de poder, deslocando, desequilibrando, movimentando, contrastando identidades.

Um professor entrevistado, ao finalizar sua fala, disse:

Eu só sei o que sei sobre pedagogia porque eu vivia pedagogia no curso de pedagogia. Nós construímos uma proposta pedagógica e evidentemente que eu aprendi nesse processo, eu entrei com um

conhecimento que era importante, mas esse conhecimento foi melhorado na medida em que esse colegiado, em que essas trocas, não só entre os professores, mas também com os alunos porque os alunos nos ensinam e [...] eles trouxeram provocações que nos fizeram também mudar a nossa forma de fazer a pedagogia, a nossa forma de ser professor, a nossa forma de conduzir o processo de ensino e de aprendizagem, então eu só sou o professor que eu sou porque eu tive a possibilidade de aprender com a equipe e a essa equipe eu falo professores, alunos, nesses anos todos que nós estávamos juntos. Alguns mais, outros menos, de uma forma ou de outra, mas todos foram significativos no meu crescimento, no que eu sei hoje. O que eu sei sobre a pedagogia foi muito em função dessas relações (PROF. CRAVO).

Do mesmo modo, quase todos os egressos e estudantes do curso, à época das

entre-vistas e das rodas de conversa e memória, de formas diferentes, falaram das

suas mudanças, mas quatro chamaram a atenção: as duas primeiras porque conseguem ampliar conscientemente as mudanças para sua vida. A segunda porque pontua as dificuldades que enfrenta e a terceira porque nunca pensara em estudar Pedagogia.

[...] a pessoa que eu era antes da faculdade, antes da graduação, do estudo de Pedagogia, mudou muito [...] E nesse sentido, assim... eu me tornei uma pessoa melhor. Quando você pensa nisso, menos de estar pontuando os outros, acaba obtendo uma leveza para sua vida, também. Acho que foi isso que trouxe a leveza para minha vida também [...]. Tive uma transformação que se mostra, inclusive, esteticamente (EGRESSA HORTÊNCIA).

[...] Eu não estou saindo daqui como eu entrei, eu estou saindo daqui com outra visão de mundo, eu estou saindo daqui com uma visão mais profunda, um conhecimento mais profundo, me aprofundei [...] ver o outro, a respeitar o outro, a não fazer...Eu era assim...., eu ainda tenho isso né...julgava muito. Eu sou assim calada, eu não fico [...] Eu tinha o meu olhar muito...eu julgava muito, eu ficava olhando minúcias. Hoje, eu já vejo o ser humano diferente, com determinadas disciplinas que eu mudei aqui com vocês. Apesar de já vir com a minha formação, mas vocês me ajudaram muito com determinada disciplina a ver o todo. Você está entendendo o que eu estou falando? A não ficar julgando muito, a não ficar assim, olhando para o outro e querer ver o que você está pensando, está ali, o que está acontecendo. Eu tinha muito isso, hoje já não...hoje eu já procuro, eu tenho outro tipo de visão de não ficar fazendo um julgamento antecipado sobre as coisas (ESTUDANTE LAVANDA).

[...] Para mim o curso está sendo muito bom, e não vou sair daqui de maneira nenhuma como eu entrei. De onde eu vim pode-se dizer que sou uma vencedora e ouço isso das pessoas que moram perto de mim “eu não tenho essa coragem”, “você é corajosa”, porque é muito

difícil e para mim está sendo muito bom o curso [...] (ESTUDANTE HIBISCO).

Para mim foi uma experiência maravilhosa, porque eu não escolhi o curso de Pedagogia [...] Porque acho que é uma conquista minha, testar os meus conhecimentos e saber que eu não vou sair daqui do mesmo jeito que eu entrei e também desconstruir um preconceito que eu tinha sobre o curso de Pedagogia [...] (ESTUDANTE GLADIOLA).

Considero que, fundamentalmente, o conceito de atos de currículo é o que amplia e aprofunda a compreensão de que currículo é uma construção cotidiana, ininterrupta, realizada pelos atores sociais do/no contexto institucional da educação formal. Mesmo que não se tenha muita consciência disso, mesmo que nem se tenha muita consciência do que seja currículo, nem mesmo se tenha clareza de que a força que tem na formação de sujeitos, vai impactar como ondas, na organização da sociedade e da cultura.

Atos de currículo é o que tem impacto direto na transformação e na alteração dos sujeitos da escola, para “o bem” ou para “o mal”, para uma formação edificante ou deformante porque não se fecham e não podem ser fechados a/por desígnios ou mandatos externos. Porque só acontecem em conjunto, só acontecem no coletivo. Na dinâmica dos movimentos de encontros, reencontros e desencontros, traindo e extrapolando toda e qualquer previsão determinista. Até mesmo quando se pensa estar seguindo os padrões, um olhar mais sensível e ampliado, tal como o fotógrafo que, ao olhar a cena, vê o potencial de registro. Como foi afetado pelo ethos estético e já não depende mais das lentes do dispositivo fotográfico, consegue identificar o movimento deslocador, desviante, do inusitado no qual o cotidiano é constituído.

[...] qualquer currículo destinado a introduzir mudanças positivas nas salas de aula irá fracassar, a menos que tal proposta esteja enraizada em uma compreensão das forças que influenciam decisivamente a própria textura das práticas pedagógicas cotidianas em sala de aula [...] (GIROUX, 1997, p. 61).

Assim como uma mesma língua é pronunciada de diversas e diferentes formas, chegando a causar estranhamento, parecer desconhecida - ininteligível, até -, de acordo com o contexto cultural em que está inserida, os atos de currículo são singulares, únicos, próprios de cada contexto específico, não somente pela cultura “externa” que permeia e dá sustentação aos movimentos do contexto “interno”, mas

também pelas construções que são realizadas espaçotemporalmente de forma original e re-existente.

Os atos de currículo, é o que, em última instância, vai definir as marcas da formação: se autoritária ou dialógica, criativa ou reprodutivista, dependente ou autônoma, crítica ou conservadora, fragmentada ou “linkada”. É ação coletiva – composta por especificidades de saberes, fazeres e poderes – que, embora não se dissolvam umas nas outras, mostra-se em suas diferenças, como também produzem, contrastivamente, uma convergência para a unicidade, não para a totalidade, nem para a negação do outro, mas para sua afirmação, garantindo sua identidade no coletivo. Como diria o prof. Saja9, uma “ação em concerto”.

Desse modo, considero que a organização de uma formação profissional necessita da compreensão profunda e ampliada do contexto relacional humano em que se passa todo processo educativo, histórico, social, político, cultural e econômico. Bem como da ciência das forças e interesses que envolvem a criação das políticas públicas para a formação e dos documentos legais, discutindo-os periodicamente, de uma perspectiva intercrítica.

Assim, no próximo capítulo, procuro analisar as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Pedagogia, Licenciatura, tendo em vista a compreensão das políticas de sentido de formação, conforme os objetivos deste trabalho de pesquisa.

9 Fala do Prof. Dr. José Antonio Saja, da UFBA, em momentos de avaliação de trabalhos monográficos, referindo-se à ação colegiada do curso de pedagogia em estudo.

4 DCN PARA O CURSO DE PEDAGOGIA E A POLÍTICA DE SENTIDO DE