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4 DCN PARA O CURSO DE PEDAGOGIA E A POLÍTICA DE SENTIDO

4.3 Curso de Pedagogia: os desenhos da Lei

Inspirada em Macedo (2011), interessa-me saber como a formação é concebida e se organiza nas DCN para o curso de Pedagogia, bem como quais as propostas de mediação de sua realização e quais os “[...] princípios ontológicos, epistemológicos, éticos, políticos e pedagógicos vinculam a formação à concepção curricular?” (p. 31), para me fazer compreender as intenções que sustentam a proposta de formação, lembrando, como Lopes et al. (2013, p. 396), que

“[...] sentidos deslizam submetidos à multiplicidade de interpretações, sedimentações. A instabilidade dos sentidos resulta de condensações e deslocamentos operados pela sobredeterminação simbólica atinente ao tecido próprio do qual é feito o social: a linguagem.”.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Pedagogia, licenciatura, foram regulamentadas pela RESOLUÇÃO MEC/CNE/CP n. 1 de 15 de maio de 2006 e pelo Parecer CNE/CP n. 005 de 13 de dezembro de 2005 e Parecer CNE/CP n. 003 de 21 de fevereiro de 2006. A organização física do documento legal segue as determinações da Lei Complementar n. 95 de 26 de fevereiro de 1998, que

dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona.

O texto cumpre o disposto nos incisos I, II e III do art. 3º da referida lei n. 95/1998, sendo organizado em três partes:

I- parte preliminar, compreendendo a epígrafe, a ementa, o preâmbulo, o enunciado do objeto e a indicação do âmbito de aplicação das disposições normativas;

II - parte normativa, compreendendo o texto das normas de conteúdo substantivo relacionadas com a matéria regulada;

III - parte final, compreendendo as disposições pertinentes às medidas necessárias à implementação das normas de conteúdo substantivo, às disposições transitórias, se for o caso, a cláusula de vigência e a cláusula de revogação, quando couber.

Desse modo, o texto das DCN é composto por quinze artigos. A primeira parte está organizada até o art. 2º. Do art. 3º ao 8º, é claramente perceptível a segunda parte e, do 9º ao 15º, a terceira.

Compreendo que uma lei, por mais prescritiva e autoritária, não consegue explicar nem controlar a formação que acontece no sujeito, no âmbito de suas experiências formativas (JOSSO, 2004), na complexidade dos atos de currículo (MACEDO, 2007a, 2011), nas espaçotemporalidades (ALVES, 2010), nas especificidades de cada contexto. Entretanto, o que pode, como função da regulamentação legal, é explicitar as condições, esclarecer suas bases epistemológicas e referenciar os âmbitos da “[...] gestão político-organizacional e pedagógica” (MACEDO, 2011, p. 34) do projeto formativo.

Nesse sentido, penso que seja relevante a explicitação da organização física da lei, com vistas à compreensão do valor que a norma jurídica quer dar a seu objeto de regulamentação, através da identificação precisa de suas partes – o que é apresentação, o que é normativo, propriamente, e o que é complementar.

Toda a discussão e embate de forças, durante o processo de construção das DCN para o curso de Pedagogia, giravam em torno da identidade do curso, que já vinha em transição há algum tempo. Segundo Bissoli da Silva (2017, p. 8), “[...] sua história pode ser considerada como uma história de busca de afirmação da

identidade”. A isso foi acrescentada a luta contra a regulamentação do Curso Normal Superior e a formação dos Institutos Superiores de Educação, que, ao fim e ao cabo, afastavam a formação docente da universidade e limitava a função do Pedagogo à área estritamente técnica.

Aguiar e outros (2006) argumentam que “[...] as várias identidades atribuídas ao curso de pedagogia, no Brasil [...] revelam, grosso modo, conflitos atinentes ao estatuto teórico e epistemológico da pedagogia e do curso de pedagogia” (p. 821). Sabemos que o que marca a nossa identidade é exatamente a diferença; o que nos diz quem somos é exatamente o que não somos. Contudo, Silva (2000) nos diz que nossa identidade, não é uma essência, não é um dado, não é fixa, não é estável, nem centrada, nem unificada, nem homogênea, nem definitiva. É instável, contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. É uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo. Mesmo sem o saber, somos, como diz o poeta baiano, uma “metamorfose ambulante”.

Para Nóvoa (2016)13, “[...] identidade não se ensina, é um processo que está sempre

em caminho [...] mas essa caminhada deve começar no primeiro dia na universidade”. Podemos, então, perguntar, de acordo com Moreira e Cunha (2007), que identidades docentes ajudamos a formar no curso de Pedagogia? Em quem se estão convertendo os/as estudantes? De que modo os significados partilhados nas interações das salas de aula reforçam, desafiam ou desorganizam as identidades que estão construindo? Deveria/poderia ser diferente? Como?

Também compreendo a identidade como representação de todos e de todas as pessoas e contextos por onde passamos e com quem e onde estivemos, pois, como nossa identidade é sempre construída em relação, os que “passam” acabam “ficando” um pouco em nós nas diversas e muitas identidades nas quais vamos nos metamorfoseando.

Nesse sentido, a histórica dicotomia entre bacharelado e licenciatura, que se materializa no currículo, ainda não superada em muitos casos, simplifica e minimiza a docência à transmissão pura e simples de saberes disciplinarizados em uma lógica de estabilidade, isolamento e fragmentação, caracterizada pela

13 Fala proferida em palestra na Universidade Federal da Bahia, intitulada “A universidade e a Educação Básica: Falando da formação de professores”, em 07/07/2016.

[...] concepção da Licenciatura como subproduto do Bacharelado (BARONE, 2008), ensino centrado excessivamente no instrumental teórico em detrimento da reflexão sobre o universo natural e prático (MENEZES, 1998), como alguns dos problemas levantados por pesquisadores acerca da formação. Todos eles de um modo ou de outro afetam concepções de currículo, ensino, aprendizagem, conhecimento, avaliação e, transversalmente, formação (PAIM, 2013, p. 87).

No entanto, a docência, base do trabalho do professor, tem saberes e fazeres específicos, para além da “[...] transmissão dos conhecimentos já constituídos [...]” (TARDIF, 2005, p. 36), puramente, pois é um trabalho que acontece nos âmbitos das complexas relações pessoal, profissional e institucional, portanto com uma complexidade muito mais ampla (NÓVOA, 2002), todas no universo do mundo humano, mediado, interativo, afetivo, interpretativo, acontecimental, instável, movediço, escorregadio.

As DCN, no §1º do Art. 2º, definem

[...] a docência como ação educativa e processo pedagógico intencional, construído em relações sociais, étnico-raciais e produtivas, as quais influenciam conceitos, princípios e objetivos da Pedagogia, desenvolvendo-se na articulação entre conhecimentos científicos e culturais, valores éticos e estéticos inerentes a processos de aprendizagem, de socialização e de construção do conhecimento, no âmbito do diálogo entre diferentes visões de mundo.

Assim, as DCN definem o trabalho docente contextualizando-o radicalmente no universo do mundo humano. “O sentido da docência é ampliado, uma vez que se articula à ideia de trabalho pedagógico” (AGUIAR et. al. 2006, p. 830). Contempla o seu caráter irredutivelmente interativo e compósito, bem como original e irrepetível, tendo em vista as diferentes e diversas dinâmicas que se passam no cotidiano dos encontros e contextos. Inclui os saberes disciplinares, curriculares e experienciais (TARDIF, 2005), necessários à formação profissional do professor que tem suas itinerâncias no campo da formação de outros sujeitos e, no sentido da lei, em experiências educativas em espaços escolares e não-escolares (RES CNE/CP 1/2006).

[...] o trabalho docente e a docência implicam uma articulação com o contexto mais amplo, com os processos pedagógicos e os espaços educativos em que se desenvolvem, assim como demandam a capacidade de reflexão crítica da realidade em que se situam. Com efeito, as práticas educativas definem-se e realizam-se mediadas pelas relações socioculturais, políticas e econômicas do contexto em que se constroem e reconstroem (AGUIAR et al., 2006, p.830).

Deste modo, a lei amplia a atuação do pedagogo, desde que seja em “[...] áreas nas quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos” (Art. 2º). Isso significa dizer que toda e qualquer ação profissional do pedagogo tem por base a intenção de ser educativa, portanto de provocar problematizações, reflexões, ressignificações, modificações e construções de saberes. Nessa perspectiva, necessita ser crítica e dialógica, no sentido freireano. A segunda dependente da primeira, pois só há possibilidade de comportar o diálogo se houver a compreensão de que a visão de mundo é interpretativa, dependente das referências que foram possíveis de ser construídas nas diversas itinerâncias formativas.

Nesse sentido, a compreensão de Macedo (2010, p. 21) da formação “[...] como um fenômeno que se configura numa experiência singular, profunda e ampliada do Ser humano, que aprende interativamente, de forma significativa, imerso numa cultura, numa sociedade, através de suas diversas e intencionadas mediações”, permite-me dizer que a função do pedagogo, para além da gestão das aprendizagens – que entendo ser função de todo professor – é a gestão da formação, propriamente, uma vez que seu foco são os processos educativos, quer se passem na escola ou fora dela. E, em qualquer contexto, compreender, obrigatoriamente, as articulações

dentrofora (ALVES, 2010).

[...] Para Dominicé, nomear a formação é designar a educação pela via das relações, do contato, como se inspirou Carl Rogers. Estabelecer ligações entre espaços em geral dissociados, colocar em relação tempos frequentemente decompostos (MACEDO, 2010, p. 51).

Assim, fica o pedagogo legalmente responsabilizado pela construção de um “[...] conjunto de condições e mediações para que certas aprendizagens socialmente legitimadas se realizem” (MACEDO, 2010, p. 21) dentro e fora das escolas. Deste modo, o Parecer 005/2005 elege como princípios para a organização do curso de Pedagogia

Os constitucionais e legais; a diversidade sociocultural e regional do país; a organização das Unidades Federativas do Estado brasileiro; a pluralidade de ideias e de concepções pedagógicas; a competência dos estabelecimentos de ensino e dos docentes para a gestão democrática.

Merece destaque, no Art. 6º, a organização curricular do curso em três núcleos de estudos:

[Um] Núcleo de estudos básicos, que sem perder de vista a diversidade e a multiculturalidade da sociedade brasileira, por meio do estudo acurado da literatura pertinente e de realidades educacionais, assim como por meio de reflexão e ações críticas (inciso I),

articula campos de saberes que subsidiam o estudo do fenômeno educativo e embasam a compreensão das ciências da educação. Um segundo

Núcleo de aprofundamento e diversificação de estudos voltado às áreas de atuação profissional priorizadas pelo projeto pedagógico das instituições e que atendendo às diferentes demandas sociais (inciso II),

possibilita a articulação de estudos dos diferentes campos em que o pedagogo poderá trabalhar. E um terceiro “Núcleo de estudos integradores que proporcionará enriquecimento curricular e compreende participação em [...]” (inciso III) atividades de práxis educativa.

O propósito dos estudos destes campos é nortear a observação, análise, execução e avaliação do ato docente e de suas repercussões ou não em aprendizagens, bem como orientar práticas de gestão de processos educativos escolares e não-escolares, além da organização, funcionamento e avaliação de sistemas e de estabelecimentos de ensino (PARECER CNE/CP Nº 005/2005, p. 6).

No conjunto da proposta curricular, podemos identificar com clareza a articulação entre os três âmbitos da formação do pedagogo, proposta pelas DCN, o estudo dos fenômenos educativos cujo elemento central são as aprendizagens, que se passam no universo do humano, portanto são relacionais – fundamentadas na comunicação e esta nas linguagens – e situadas em um específico contexto histórico, político, cultural e econômico; a pesquisa como dispositivo de compreensão da realidade e produção de novos saberes e a gestão das espaçotemporalidades, do contexto

material e das relações em/de/no/com instituições e sistemas, tendo a docência como base de sustentação dessas ações.

A proposição de um currículo está atrelada à proposição de uma formação, compreendida como constituída e constituinte por/de experiências afetivas plurais, de sujeitos, irredutíveis e imanentes ao próprio processo de suas construções – da formação e da experiência -, em movimento dialético e dialógico com aquelas proposições as quais acabam por encaminhar processos de construções identitárias individuais e coletivas em contexto sócio-histórico, político, econômico e cultural presente, visando a sua transformação ou reprodução.

De uma ou de outra forma, o resultado só poderá ser avaliado, em termos macro, a médio e a longo prazo. A proposição de um currículo, portanto de uma formação é sempre como projeção, pois, por seu caráter provisório, não se esgota em si mesmo nem no espaço nem no tempo, é passível de necessidade de modificações, nunca é suficiente pela própria natureza dinâmica do currículo, do tecido social e da cultura. Para Macedo (2010, p. 90), “[...] é preciso estar consciente de que as necessidades e os recursos podem ser previstos, mas, também, que a própria dinâmica formativa implica a emergência das necessidades e dos recursos.”.

Interessante observar, no Art. 3º, a lei admitir que a formação não será esgotada no currículo

O estudante de Pedagogia trabalhará com um repertório de informações e habilidades composto por pluralidade de conhecimentos teóricos e práticos, cuja consolidação será

proporcionada no exercício da profissão, fundamentando-se em

princípios de interdisciplinaridade, contextualização, democratização, pertinência e relevância social, ética e sensibilidade afetiva e estética. (grifo meu).

Bem como o Parecer 005/2005 já chama a atenção para que “[...] a consolidação da formação iniciada terá lugar no exercício da profissão que não pode prescindir da qualificação continuada” (p.6).

Assim, temos, no texto legal, duas afirmativas quanto à formação do Pedagogo, a primeira diz respeito ao caráter “insuficiente” e transitório de uma proposta de formação, tendo em vista a dinâmica dos contextos em que a ação profissional irá

acontecer. A segunda, a de que essa insuficiência deverá ser suprida, complementada, “consolidada” na própria ação profissional, no contexto da práxis e, no caso do pedagogo, no contexto dos atos de currículo.

É nestes termos que ao perspectivarmos os atos de currículo como

práxis, bem como o processo de formação no seu acontecer como

uma atividade de sujeitos-atores coletivos, isso vai implicar em atividades de alteridades que alteram, tanto aquele que experimenta a formação quanto o seu entorno formativo, ou seja, a formatividade da qual faz parte e está implicado (MACEDO, 2010, p. 88).