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3 ATOS DE CURRÍCULO E FORMAÇÃO: OS INÉDITOS ENCONTROS

3.2 Atos de currículo em movimentos

O conceito de atos de currículo nos ajuda a compreender o processo humano da formação porque põe em evidência, realça, contrasta os devaneios, as contradições, as ranhuras, as rasuras, as antinomias da/na/com/pela formação, porque humana, porque pensada, planejada, organizada, realizada na dinâmica do processo humano de viver. Ajuda-nos a compreender as errâncias, as potências e também as itinerâncias que podemos propor, mas que não irão apagar o que foi construído até ali. “A formação é um objeto movente, que implica ser compreendido através de seus processos, das suas dinâmicas, das evoluções, em geral contraditórias” (MACEDO, 2010, p. 51).

Atos de currículo anuncia, denuncia e expõe o nosso limite, como condição humana, temporal e espacial. Não podemos tudo, não fazemos tudo, não sabemos tudo, não somos tudo. Por isso, atos de currículo é ato irredutivelmente relacional. Precisamos do outro para aprendermos a ser quem somos, não sendo o outro, nas diferenças que nos distanciam, mas o contendo nas identificações, que nos aproximam. Por isso, também é ato ético.

Um professor, falando sobre os graus de importância atribuídos aos conteúdos específicos do campo de ação da Pedagogia, diz que

[...] no planejamento de um dos componentes curriculares que trabalho, considero importante que a pedagoga precisa ter um conhecimento de psicomotricidade, identificar problemas de motricidade da criança, lateralidade, noção espaço-temporal, coordenação fina, coordenação ampla, mas não me prendo aos meios de avaliação ou às atividades para corrigir essas dificuldades, porque já entra na alçada de um outro profissional. A pedagoga pode sim, identificar o problema, mas encaminhar ao profissional mais especializado para detectar a pertinência ou não de sua a avaliação e os devidos encaminhamentos (PROF. VINCA).

Atos de currículo é ato político. Ato que se passa em meio ao conflito entre interesses diferentes, divergentes, incompatíveis e excludentes entre si, tanto no plano individual quanto no coletivo, que é a matéria prima da política. Onde há ato humano, há ato político. Nesse sentido, atos de currículo realça também o caráter provisório da dinâmica política das propostas formativas curriculares tanto no âmbito

macro, da história e da cultura, quanto no micro, das relações cotidianas no interior do processo formativo curricular, institucionalizado, bem como do conhecimento, do currículo e da formação.

Atos de currículo é produto e produtor de diálogos cotidianos, criando e recriando o contexto formativo. Por mais prescritivos que os currículos possam ser, sua realização é ato criativo e autoral dialogado, mediado pelas concepções e interpretações de ser humano e de mundo, culturalmente situadas, dos sujeitos curriculantes, advindas dos seus processos formativos. Currículos são criados cotidianamente.

[...] compreendermos o currículo como criações cotidianas dos

praticantespensantes das escolas, produzidas por meio dos usos

singulares que fazem das normas e regras que lhes são dadas para consumo, num diálogo permanente [...]. (OLIVEIRA, 2012, p. 12). (grifo da autora).

Ball (2011) compreende que as políticas são recontextualizadas em práxis não lineares, nem automáticas, mas em processos complexos e problemáticos uma vez que envolvem as interpretações e as necessidades dos contextos. Em termos de políticas educacionais, considera que os professores trazem suas experiências para o processo de “conversão” das políticas em práticas. Isto significa dizer que compreende que os professores são atores sociais e têm histórias de vida relacionadas à escola e ao currículo.

Para além da visão de Ball, Alves (2012, p. 51), postula que políticas são práticas comuns de exercício do poder presentes nas relações; são “[...] práticasteorias, necessariamente, coletivas que problematizam os modos de existência hegemônicos e instauram outros possíveis, levando em conta a complexidade e a variedade de contextos em que essas ações e pensamentos se dão.” Nesse sentido, políticas são muito mais que políticas de estados ou de governos porquanto são construídas nas escolas, ultrapassando as determinações oficiais, negando-as e criando as suas próprias. Mesmo que superficialmente deem a impressão de “obediência” às prescrições, estão extrema e radicalmente articuladas aos seus contextos, histórica e culturalmente, situados.

Destarte, atos de currículo é ato radicalmente formativo, porque o currículo é uma proposta formativa, que se realiza através, nos/com/dos/pelos atos dos sujeitos implicados. Os atos de currículo é ato da formação. E como tal, não se esgota. Segue em processos, em fluxos, em cursos, em movimentos complexos, únicos e inexplicáveis, mas compreensíveis.

Os atos de currículo instituem a práxis formativa, trazem o sentido de não se encerrar a formação num fenômeno exterodeterminado. Por consequência, não vislumbram os formandos, e quaisquer outros atores da formação, como meros atendentes de demandas educacionais, nem como aprovadores ou receptáculos de padrões pedagógicos. A potência práxica do conceito de atos de currículo Implicado à formação é, ao mesmo tempo, uma maneira de resolução epistemológica e pedagógica para compreendermos a relação profundamente imbrincada entre currículo e formação, bem como um modo de empoderar/radicalizar, em termos acionalistas e de forma multirreferencial, o conceito de currículo, como uma pauta vinculada aos âmbitos da intimidade e do bem comum socialmente

referenciados (MACEDO, 2011, p. 108). (grifos do autor).

Atos de currículo é ato pedagógico8, compreendido aqui, por sua vez, como a

docência em movimentos generativos e compósitos de atos de currículo, porque está presente na mediação da construção de conhecimento, nas escolhas e decisões da organização do trabalho pedagógico, dos dispositivos, dos métodos, da avaliação, do conteúdo, não só durante o processo de planejamento, mas no momento mesmo em que as atividades estão acontecendo em uma dinâmica própria, não reproduzida, única daquele espaçotempo, com os sujeitos e suas redes de significação.

Um professor entrevistado, respondendo sobre o caráter dos procedimentos metodológicos, também evidenciou o caráter dinâmico e autoral do currículo, da formação e das mediações, dizendo que

[...] é planejado alguma coisa e de repente [durante a atividade] surge uma coisa nova, alguém traz alguma coisa interessante e ai a gente reconstrói todo o plano de aula que era para aquele dia, reconstrói todo o plano de curso, se for necessário, para incluir esses novos assuntos, esses novos contextos, esses novos conhecimentos [...]. (PROF. VINCA).

8 O conceito de ato pedagógico, comum no campo da Pedagogia, diz respeito à ação docente especifica e direcionada à dinâmica dialógica e dialética da mediação pedagógica, no encontro planejado e sistematizado entre ensinante, aprendente e conhecimento.

Em uma das observações que fiz durante o processo de construção da pesquisa, presenciei que essa “uma coisa nova” tem a ver com as experiências e articulações as quais estudantes e professores fazem entre os saberes construídos nos espaços

dentrofora da academia. Trazem, pois, para as atividades cotidianas, pressões e

tensões às quais tiveram acesso no mundo do trabalho, de casa, nas suas relações com familiares, amigos que, muitas vezes, são desdobramentos de aprendizagens que levaram da academia para esses outros espaços, que acabaram por mudar suas relações fora e, por conseguinte, mudam as de dentro.

Ao observar uma aula do componente curricular “Educação e Relações de Gênero”, ouvi estudantes dizerem, publicamente, à turma que suas vidas mudaram depois que passaram a estudar aquele componente. Uma delas disse que passou a enxergar como era violentada, cotidianamente, pelo companheiro de formas sutis como se

[...] estivesse dormindo, anestesiada, não sei. E o que me fez acordar foi quando meu companheiro reclamou quando disse que tinha assistido a um determinado filme aqui, nessa aula. Contei isso aqui na turma (lembram?). E a professora, na época, perguntou, o que a gente pensava que poderia ser o motivo dele ter reclamado. Naquela hora, olhei bem para ela, mas era como se olhasse para dentro de mim, e disse assim, ‘sabe, professora, entrei nesse curso porque ele me disse que era fácil, até brinquei um dia com a coordenadora, dizendo que fui enganada (risos), e estou saindo transformada’. Moral da história: me libertei, pedi para ele ir embora. (ESTUDANTE IPÊ ROXO)

Por conseguinte, atos de currículo é movimento contínuo e dinâmico. Inclui a experiência e o acontecimento. Desloca, altera, transforma, gera. Acontece e só avança, necessariamente, no contraste dialético e dialógico da tensão/relaxamento dos elementos que os compõe, com ritmo e cadência próprio, locais, contextuais, irrepetíveis. Realça conteúdos e formas, diferenças e identificações, dizíveis e indizíveis, compondo uma estética única.

Aqui falamos dos movimentos como a dinamicação dos deslocamentos, que se processam a partir dos corpos, individuais e coletivos e não se limitam a um só plano, mas ao ser pleno (FREIRE, 2009). Os movimentos macro, os corpos celestiais em suas trajetórias cósmicas, e os micro, como os movimentos das partículas em suas vibrações, transcendem as expectativas dos planejamentos. Portanto, este conjunto de deslocamentos é do corpo que “cria e, ao mesmo tempo é habitado pela experiência” (MACEDO, 2015, p. 25) e

neste sentido marca as nossas relações, enredando-nos individual e coletivamente (DANTAS, 2005) promovendo as mudanças, as transformações, que se dão em processo de reciprocidade (MOURA, CARVALHO, MOURA, 2016, p. 2). (grifo dos autores).

Atos de currículo é ato comunicante. É ato pensadopraticado, é ato compósito pelos

pensaresfazeres dos sujeitos em formação, sempre. Uns, formando, formam-se,

outros formam-se, formando. Sujeitos afetados e afetando pelos múltiplos encontros consigo, com o outro e com o mundo, em recíproco processo de formação.