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4 DCN PARA O CURSO DE PEDAGOGIA E A POLÍTICA DE SENTIDO

4.1 O texto e o contexto

A coexistência da dimensão relacional do ser humano, sua necessidade de convivência e suas características pontuais, singulares e individuais compõem o contexto propício para o surgimento de conflitos que tornariam impossível a vida humana se não houvesse a mediação das regras sociais, tendo em vista os objetivos comuns, o “[...] estabelecimento de prioridades e a criação e escolha dos meios para atingi-los” (BITTAR, 2005, p. 15). Neste sentido, a vida social humana foi possibilitada pela criação de regras e normas, inicialmente, a partir dos costumes e, posteriormente, com a complexificação das relações sociais, acrescidas de elementos que acabaram por criar novos costumes, dialeticamente.

A partir do surgimento do Estado Moderno, a legislação, como um conjunto de leis, passa a ser instituída por este, ao mesmo tempo em que integra a sua organização (SCHMIEGUEL, 2010). Sendo um instrumento de normatização e regulamentação oficial das ações humanas em sociedade, “[...] em geral, [...] têm a finalidade de proteger alguns valores considerados socialmente relevantes, tais como a vida, a honra, a liberdade, a justiça, a segurança, a igualdade, a integridade física e moral, o trabalho, o bem-estar e outros dessa natureza” (SCHMIEGUEL, 2010, p. 131). Nesse sentido, faz-nos dimensionar nossas possibilidades e limites, tanto individual quanto coletivamente, que vão variar de acordo com a direção que dermos às nossas ações.

Desse modo, em uma sociedade que se pretenda democrática, a legislação precisa ser entendida em sua pertinência ao campo do Direito, uma vez que é a responsável pela garantia do cumprimento das regras estabelecidas, e esse, por sua vez, em sua relação intrínseca com o campo da política, no qual as ações humanas (ARENDT, 2008) se dão sempre em direção a/com outro ser humano e às coisas, de forma

intencional, não neutra. A legislação, por conseguinte, acaba também por representar e expressar o movimento de embates ideológicos que perpassam a tomada de decisões na/para/da pólis, em seu específico contexto social, político, histórico e cultural.

No Brasil, antes da homologação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB n. 9.394/96, o curso de Pedagogia era regulamentado pela Resolução CFE n. 2/1969 (BRASIL, 1969), que teve sua base legal na Lei da Reforma Universitária n. 5.540, de 1968 (BRASIL, 1968). Portanto, de 1968 até 1996, tivemos vinte e oito anos sem grandes modificações, aí incluídos os vinte anos de ditadura militar, significando mais de duas décadas de proibições da participação do povo nas decisões emanadas do poder estatal.

A partir de 1988, o regime de governo brasileiro passa a ser democrático, de direito, com a Promulgação da Constituição Federal. Ainda no caminho, a uma velocidade possível, em busca da garantia da efetivação dos princípios democráticos, negamo- nos a aceitar ordens de um poder centralizador e coercitivo, entretanto, ainda há, de forma geral, dificuldade de compreender a organização necessária para as conquistas efetivamente democráticas. Nesse processo, não há resultados imediatos, uma vez que implica em diálogo, conflitos, estabelecimentos de acordos, tendo em vista a necessidade do equilíbrio de forças opostas. Portanto, não foi surpresa que levássemos dez anos de discussão e debates, entre o Ministério da Educação e Associações representativas de várias instâncias de educadores e seus coletivos, após a atual LDB, para que pudéssemos ter a regulamentação do curso de pedagogia.

Nesse sentido, após os vinte anos de silenciamento imposto, também não surpreendeu a profusão de documentos, resultantes daquelas lutas dos movimentos da sociedade civil organizada, acerca das diretrizes curriculares para os cursos de formação de professores e para o curso de Pedagogia o que sinalizava para a grande preocupação com a formação democrática dos professores no Brasil. Assim, desde 1975, ainda no contexto de luta pelo fim definitivo da ditadura militar e pela garantia de meios para que não voltasse a acontecer e pela (re)democratização do país, a partir da campanha das “Diretas Já”, foram iniciados os debates sobre a reformulação dos cursos de formação de professores e de Pedagogia, com a

participação do coletivo de educadores, representados, por exemplo, pelo Comitê Nacional Pró-formação do Educador que, em 1983, para a ser a Comissão Nacional dos cursos de Formação de Educadores – CONARCCFE, Comissão de Especialistas do Ensino de Pedagogia – CEEP10, Associação Nacional de Pós-

graduação e Pesquisa em Educação – ANPEd, Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação – ANFOPE, Associação Nacional de Política e Administração da Educação – ANPAE, Associação Nacional de Educação – ANDE, Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior – ANDES, Fórum de Diretores das Faculdades/Centros de Educação das Universidades Públicas Brasileiras – FORUMDIR, Fórum de Diretores das Faculdades/Centros de Educação das Universidades Privadas Brasileiras, Fórum Paulista de Pedagogia, Fórum Paulista de Educação, Fórum Paulista de Educação Especial, Fórum em Defesa da Formação de Professores, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC, Executiva Nacional dos Estudantes de Pedagogia.

Os educadores e suas entidades acompanharam de perto este movimento, e estiveram presentes, em todo este período, mobilizando-se por meio de encontros, reuniões, documentos, orientados sempre pelo princípio fundamental que desde a promulgação da LDB se firmara junto ao MEC, SESU e CNE: as

discussões das diretrizes da pedagogia se inserem na discussão das orientações, políticas e Diretrizes da Formação dos Educadores da Educação Básica, não podendo, portanto, serem aprovadas fora deste contexto (AGUIAR et al., 2006, p.826).

Assim, o Ministério da Educação, através do Edital MEC/SESu 04/97, “[...] torna público e convoca as Instituições de Ensino Superior a apresentar propostas para as novas Diretrizes Curriculares dos cursos superiores, que serão elaboradas pelas Comissões de Especialistas da SESu/MEC” (BRASIL, 1997, p. 1). Por conseguinte, muitas dessas IES, também passaram a movimentar os estudantes e professores de seus cursos de Pedagogia para discutir e construir suas propostas, coletivamente. No entanto, a partir de 1998, a CEEP amplia o processo de discussão nacionalmente, com a participação mais efetiva da comunidade acadêmica representada pela ANFOPE, FURUMDIR, ANPAE, ANPED, CEDES e Executiva Nacional dos Estudantes de Pedagogia.

Destaque para o fato de que – não obstante todos os esforços convergidos para a luta pela construção de uma política pública de caráter democrático para a formação de professores e do pedagogo, coerente e consistente com as necessidades contextuais, nos aspectos éticos, técnicos e políticos – havia os interesses particulares de cada grupo, específicos às suas causas, naquele momento. Desse modo, é bom lembrar que as disputas de interesses, concentradas especialmente sobre a identidade e organização do curso, davam-se tanto externa quanto internamente aos campos.

Em 1999, A CEEP apresentou ao MEC/CNE uma proposta das Diretrizes para o curso de Pedagogia, entendendo que a visão predominante “[...] não representava simplesmente um senso comum a respeito do tema, mas [...] o acúmulo das discussões nacionais que vinham sendo realizadas em amplo processo de mobilização em torno da formação dos educadores [...] desde o início da década de 80” (SCHEIBE, 2007, p. 48). Essa proposta foi bem recebida pela comunidade acadêmica, primeiro por contemplar o que já vinha sendo realizado em muitos cursos, depois, e principalmente, por constituir a docência como base da ação profissional do pedagogo para além do espaço institucional escolar, sem manter a dicotomia entre bacharelado e licenciatura, duas questões que estavam na base dos interesses comuns de todos os grupos.

Entretanto, a referida proposta somente foi enviada ao CNE pelo MEC após forte pressão das entidades de representações do coletivo de professores e estudantes de pedagogia, pois o interesse era o de “[...] construir as diretrizes para o curso normal superior, criado pela LDB e prestes a ser regulamentado” (AGUIAR et. Al., 2006, p.825).

Depois de seis anos de “silenciamento”11 do MEC/CNE, em 2005, o CNE divulgou

“minuta das DCN” para apreciação da sociedade civil; rejeitada, porém, pela comunidade acadêmica por “[...] encaminhar, para o curso de Pedagogia, diretrizes claramente identificadas com o Curso Normal Superior” (SCHEIBE, 2007, p.53), essa era a intenção desde que a LDB fora homologada. Seguiu-se, então,

11 O referido silenciamento diz respeito especificamente às DCN para o curso de Pedagogia. Pois em 2002 foram homologadas as Resoluções MEC/CNE/CP n. 1 e 2, que instituem Diretrizes para Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, graduação plena.

formulação e entrega ao CNE de documento solicitando uma audiência pública e críticas à minuta.

Fato é que toda a pressão social resultou em que em 2005, o CNE elaborou o Parecer 005/2005, com fortes influências da proposta da CEEP, entregue ao MEC/CNE em 1999, aprovado em reunião do Conselho Pleno, com a presença de representantes da Anfope, Cedes e Forumdir. Este Parecer ampliou a formação do pedagogo, aproximando-a mais daquela proposta elaborada pelo coletivo de educadores.

Desse modo, no intervalo, entre a promulgação da LDB e a homologação das DCN para os cursos de Pedagogia, atravessado por várias discussões em várias instâncias, imposição e “derrubada” de decreto-lei (nº 3.276/99 e nº 3.554/00, respectivamente)12, o

Estado brasileiro, declarou a extinção gradual da maioria dos cursos Normais em nível médio e, através das suas Instituições de Ensino Superior - IES, as universidades prioritariamente, organizaram cursos de formação em Pedagogia destinados às professoras e professores em serviço que já atuavam nos anos iniciais do Ensino Fundamental, em escolas das redes públicas. Também naqueles dez anos, as IES procuraram reorganizar os currículos dos cursos de Pedagogia, a partir da legislação em vigor, que era geral para todos os cursos de formação de professores, [RES. CNE/CP 1, de 18 de fevereiro de 2002 e RES. CNE/CP 2, de 19 de fevereiro de 2002] (MOURA e CARVALHO, 2016, p. 6).

Interessante também observar que o coletivo de profissionais e estudantes da área da Educação, mobilizado, foi citado formalmente no documento pelo MEC/CNE. Acredito, no entanto, que menos por reconhecimento do que por interesse em se mostrar democrático. Sua participação foi incluída no primeiro parágrafo do texto do Parecer MEC/CNE/CP n. 005 de 13/12/2005, como seu primeiro ato na definição das DCN para o curso de Pedagogia,

[...] rever as contribuições apresentadas ao CNE, ao longo dos últimos anos, por associações acadêmico-científicas, comissões e grupos de estudos que têm como objeto de investigações a Educação Básica e a formação de profissionais que nela atuam, por sindicatos e entidades estudantis que congregam os que são partícipes diretos na implementação da política nacional de formação desses profissionais e de valorização do magistério, assim como

12 O primeiro determina em seu parágrafo 2º do artigo 3º, que a formação de professores para atuação na Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental, far-se-á, exclusivamente, em cursos normais superiores e o segundo, relativizando-o, substitui o termo “exclusivamente” por “preferencialmente”.

individualmente por estudantes e professores do curso de Pedagogia.

Em 21 de fevereiro de 2006, é aprovado o Parecer CNE/CP 003/2006, retificando o Art. 14 do então Projeto de Resolução, o qual especificava que

A formação de profissionais de educação para administração, planejamento, inspeção, supervisão e orientação educacional para a educação básica, será feita em cursos de graduação em pedagogia ou em nível de pós-graduação, a critério da instituição de ensino, garantida, nesta formação, a base comum nacional (p. 2).

Para

Art. 14. A Licenciatura em Pedagogia nos termos do Parecer CNE/CP nº 5/2005 e desta Resolução assegura a formação de profissionais da educação prevista no art. 64, em conformidade com o inciso VIII do art. 3º da Lei nº 9.394/96.

§ 1º. Esta formação profissional também poderá ser realizada em cursos de pós-graduação, especialmente estruturados para este fim e abertos a todos os licenciados.

§ 2º. Os cursos de pós-graduação indicados no § 1º deste artigo poderão ser complementarmente disciplinados pelos respectivos sistemas de ensino, nos termos do Parágrafo único do art. 67 da Lei nº 9.394/96.

Desse modo, retirou a exclusividade das funções de administração, planejamento, inspeção, supervisão e orientação educacional do curso de Pedagogia, possibilitando a abertura a outros licenciados, desde que formados em curso de pós- graduação, embora não especifique se em lato ou stricto sensu. O principal argumento da modificação, para além do cumprimento dos artigos em referência da LDB, é o entendimento de que assim está garantindo o cumprimento da gestão democrática da escola pública brasileira, uma vez que possibilita as funções gestoras da escola a todos os licenciados, desde que haja formação para tal.

Ao tempo em que identificamos a profusão de documentos legais durante o processo de discussão, negociação e construção das DCN, também identificamos a grande quantidade de produção acadêmico-científica, especialmente de professoras e professores participantes diretos desses processos, após a aprovação do Parecer 005/2005, que já explicitava formalmente a pretensão do projeto de lei. Algumas dessas produções explicitam e analisam o debate ético-político-epistemológico que

foi base das argumentações dos grupos envolvidos e outras, ainda, fazem uma minuciosa análise dos resultados do processo, materializados naquele Parecer. Algumas dessas produções fazem a análise do processo e do resultado argumentando que a lei acaba por ampliar a função do pedagogo. Outros defendem que a lei “[...] transforma o curso de Pedagogia em um curso genérico e desfigurado” (PARECER CNE/CP Nº 3/2006, p. 4), como faz o conselheiro que vota contrariamente ao parecer em referência. Há também produções que criticam severamente as DCN por considerá-las “[...] uma expressão da epistemologia da prática” (RODRIGUES e KUENZER, 2007, p. 35). Outras produções compreendem que, apesar da

[...] fragilidade que reveste o curso de Pedagogia, enquanto campo de conhecimento [...] Não se pode negar, também, que esse campo vem se afirmando no que se refere ao reconhecimento de sua especificidade e que avanços significativos vêm sendo empreendidos quanto à definição de seu estatuto teórico (BISSOLI DA SILVA, 2017, p. 15).

Ainda existe quem considere que “[...] abre-se assim, amplo horizonte para a formação e atuação profissional dos pedagogos” (AGUIAR et al. 2006, p. 829). Longe de se caracterizar em uma unanimidade, mas como um acordo negociado para a solução, “[...] mesmo que provisória, para uma controvérsia que se estende há pelo menos 25 anos” (SCHEIBE, 2007, p. 60), as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para o Curso de graduação em Pedagogia, licenciatura, regulamentam, sistematizam e organizam o curso de Pedagogia a partir do previsto na Lei de Diretrizes e Bases n. 9.394/96, acerca da formação de professores no Brasil. Têm força de lei e foram homologadas como Resolução n. 1 pelo Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação, em 15 de maio de 2006.