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Atos jurisdicionais típicos

CAPÍTULO III – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR ATOS

3.1.   DIVERGÊNCIAS DOUTRINÁRIAS 111

3.1.3.   Atos jurisdicionais típicos

Edmir Netto de Araújo diz que, na verdade, a melhor técnica para a conceituação da atividade judicial é o enfoque ratione personae. Assim, tudo que emerge do magistrado do Poder Judiciário será atividade judicial, quer se considere o aspecto formal, quer o material de seus atos.

Portanto, teremos a atividade judiciária como gênero, do qual decorrem duas espécies: a atividade contenciosa (aplicação contenciosa da lei ao caso concreto), que é a

atividade jurisdicional, básica e específica, atividade fim do Poder Judiciário; e a de natureza voluntária, graciosa (não contenciosa), qualificada em termos gerais como administrativa,

exercida também intensamente pelo Poder Judiciário, mas como atividade-meio, e por isso, secundária e inespecífica95.

O ato jurisdicional não esgota, entretanto, toda a atividade do poder judiciário, embora seja, repetimos, a manifestação inerente àquele poder. É que, ao lado da função

jurisdicional, tendente à aplicação da lei ao caso concreto, sempre que ocorre contestação,

existe outra função, de natureza administrativa, voluntária, graciosa ou não contenciosa, desenvolvida de maneira intensa no âmbito do Poder Judiciário 96.

A posição de José Cretella Júnior é idêntica à de Edmir Netto de Araújo quanto aos atos típicos do Poder Judiciário, entendendo aquele primeiro autor que “os atos do Poder Judiciário ou são atos jurisdicionais, decorrentes da correspectiva função jurisdicional, ou são

94DERGINT, Augusto do Amaral. Responsabilidade do Estado por atos judiciais. São Paulo: RT, 1995. p. 189. 95ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 835.

96CRETELLA JÚNIOR, José. Responsabilidade do Estado por atos judiciais. Revista de Direito Administrativo.

atos administrativos, oriundos da função judicial, lato sensu, que é gênero do qual as duas

outras funções, a contenciosa e a voluntária, são espécies” 97.

Ainda segundo José Cretella Júnior, os atos administrativos materiais, praticados pelo Poder Judiciário, tais como nomeações e demissões de funcionários, concessão de licenças, férias, correições, se causam danos aos administrados, empenham a responsabilidade civil do Estado, de acordo com o regime comum da responsabilidade do Estado por atos de seus funcionários.

Os atos da chamada jurisdição voluntária, tais como os referentes às contas de tutelas ou curatelas, arrecadações de espólios, quando causam prejuízo aos administrados, empenham a responsabilidade do Estado, conforme orientação pacífica da jurisprudência (RT, 135:686)98.

Diogenes Gasparini aponta que a lei e a sentença, atos típicos do Poder Legislativo e do Poder Judiciário, dificilmente poderão causar dano reparável (certo, especial, anormal referente a uma situação protegida pelo Direito e de valor economicamente apreciável). A sentença não pode propiciar qualquer indenização por eventuais danos que possa acarretar às partes ou a terceiros, dado que é ato da essência da soberania (posição já contestada)99 .

Não obstante a excelência do autor e de sua posição, pedimos vênia ao ilustre administrativista para dele divergir, pelos fundamentos já anteriormente expostos.

A função jurisdicional é típica e iniludível incumbência do Estado, prestada através do Poder Judiciário.

Conforme assinala José Cretella Júnior, reivindicando para o campo do direito administrativo o estudo da responsabilidade civil do Estado,

em consequência dos danos causados pelo mau funcionamento do serviço judiciário que é, antes de tudo, serviço público, dividiremos a indagação em dois momentos, o de obrigatoriedade do Estado de indenizar em consequência de ato não jurisdicional danoso e, depois, a obrigação de indenizar em consequência de ato iminentemente jurisdicional100.

97CRETELLA JÚNIOR, José. Responsabilidade do Estado por atos judiciais. Revista de Direito Administrativo.

Rio de Janeiro, n. 99, p. 13-32, jan./mar. 1970. p. 37.

98 Idem. O Estado e a obrigação de indenizar. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 259. 99GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 905. 100 Op.cit., p. 142.

Como observa Edmir Netto de Araújo: “a expressão ato jurisdicional tem sentido

lato, compreendendo a própria sentença e as circunstâncias em que é prolatada”101.

Galeno Lacerda sustenta que os atos judiciais, decisórios ou não, inserem-se logicamente no exercício da função jurisdicional, uma vez que, para decidir sobre a res in

iudicium deducta, o juiz desenvolve uma série de atos legais, com que dirige o processo à

prolação da sentença de mérito, ponto culminante da prestação da tutela jurisdicional102. Segundo Juary C. Silva, nem sempre no âmbito de suas atribuições o juiz está a exercer a jurisdição. Aderentes à função judicante estão também atribuições de índole não- jurisdicional, como a erroneamente designada jurisdição voluntária, cuja natureza é administrativa, a fiscalização da atividade de serventuários e auxiliares da Justiça e diversas outras tarefas de cunho administrativo. À guisa de exemplos: certas incumbências do juiz na administração da falência; a composição do Júri; o alistamento eleitoral; determinadas providências burocráticas em relação a menores etc.

Por extensão lógica, são designados como jurisdicionais os atos praticados pelo juiz no curso do processo, muito embora sem conteúdo decisório, atributo primacial do exercício da jurisdição. Os atos do juiz, decisórios ou não, se inserem logicamente no desempenho da função jurisdicional 103.

Anota Carlos Roberto Gonçalves que cumpre distinguir as diversas atividades desenvolvidas no âmbito do Poder Judiciário. O gênero “funções judiciais” comporta diversas espécies, como as funções “jurisdicionais” (“contenciosas” ou “voluntárias”) e as “administrativas”. Neste último caso, o juiz ou o tribunal atua como se fosse um agente administrativo. É quando, por exemplo, concede férias a servidor, realiza concurso para provimento de cargos ou faz tomada de preços para a aquisição de materiais ou prestação de

101ARAÚJO, Edmir Netto de. Responsabilidade do Estado por ato jurisdicional. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1981. p. 179. Sobre a obrigação de indenizar, em decorrência de ato jurisdicional, veja-se o recurso extraordinário 38.529 (acórdão de 14.07.1959 – RDA 66, p. 160-163), do STF, relator Min. Afrânio da Costa, sobre a condenação da União a ressarcir perdas e danos porque o Dr. Péricles Pinto teria perdido a sua posição na ordem dos suplentes em favor do Dr. Carlos Campos: Ementa – “Cabe à União indenizar o suplente de deputado, afastado do exercício por decisão da Justiça Eleitoral, afinal reformada”.

102LACERDA, Galeno. Comentários ao Código de Processo Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990. v. 8, t.

1, p. 25.

103SILVA, Juary C. Responsabilidade do Estado por atos judiciários e legislativos. São Paulo: Saraiva, 1985. p.

serviços. A responsabilidade do Estado, então, não difere da dos atos da Administração Pública.

A atuação judiciária propriamente dita, a atividade jurisdicional típica de dizer o direito no caso concreto contencioso ou na atividade denominada de jurisdição voluntária sujeita o magistrado à responsabilidade de que trata o art. 133, do Código de Processo Civil104.

Em suas conclusões, porém, Carlos Roberto Gonçalves reconhece que as mais modernas tendências apontam no sentido da admissão da responsabilidade civil do Estado pelos danos experimentados por particulares, decorrentes do exercício da atividade judiciária

105.

A atividade ou função jurisdicional manifesta-se, em essência, pelo julgamento ou

ato jurisdicional. O ato jurisdicional, clímax do funcionamento dos serviços judiciários, pode

produzir danos os mais variados, entre os quais o mais grave é o erro judiciário, que implica a própria negação da justiça, a não ser que possibilite, no devido tempo, a respectiva reparação

106.

Considerando-se que o serviço judiciário é um serviço público (consoante já demonstrado no decorrer desta tese), todo e qualquer ato jurisdicional (isto é, ligado ao exercício da jurisdição), é potencialmente apto a deflagrar a responsabilidade estatal.

“Na realidade, é serviço público toda atividade que o Estado exerce para cumprir seus fins”, pondera Mário Masagão, identificando dois tipos de serviço público – o judiciário e o administrativo: a atividade do Estado divide-se em duas espécies: a judiciária e a administrativa. Daí a circunstância de o serviço público abranger as duas províncias.

Essa distinção funda-se diretamente na natureza das coisas. Na esfera administrativa, o Estado exerce operação primária, decidindo sobre o seu próprio procedimento, ao passo que, na esfera judiciária, desempenha função de terceiro, a apreciar o procedimento das partes, tanto no cível como no crime. Ainda quando a Fazenda Pública se acha em juízo como parte, o

104GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 210-211. 105 Id., Ibid., p. 215.

106CRETELLA JÚNIOR, José. Responsabilidade do Estado por atos judiciais. Revista Forense. Rio de Janeiro,

Estado, pelo poder judiciário, conserva a sua posição de terceiro imparcial, a distribuir justiça107.

Serviço público, portanto, “é toda atividade exercida pelo Estado, através de seus poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), para a realização direta ou indireta de suas finalidades”108.

A acepção de serviço público não se cinge, pois, à atividade administrativa do Estado. Como assevera Pontes de Miranda, “serviço público é todo aquele que concerne ao desenvolvimento da atividade do Estado, nos seus três ramos: legislativo, judiciário e executivo”109.

E em matéria de responsabilidade do Estado, adverte Edmir Netto de Araújo, deve-se considerar

não só o ato jurisdicional em si, pontualmente, como também os momentos ou estágios processuais, como um encadeamento ininterrupto de atos tendentes à realização da prestação jurisdicional, anteriores ou posteriores à sentença, tudo em direção à execução da vontade da lei manifestada na sentença definitiva110.

O Estado é civilmente responsável por danos causados ao administrado em decorrência de ato jurisdicional. A atividade jurisdicional é uma função do Estado: não é serviço administrativo, mas é serviço público.

Se a sentença produz prejuízo, cabe à doutrina indagar do nexo causal entre o agente, o dano e as circunstâncias que informaram o magistrado ao sentenciar.

A sentença pode ser errada, tanto no cível como no crime. No campo penal, poderá levar o réu à prisão, e causar-lhe prejuízos morais e patrimoniais de relevância. Descoberto o erro, em qualquer caso, o prejudicado move ação ordinária de indenização contra o Estado, e o Estado paga, em dinheiro, nos termos constitucionais.

107MASAGÃO, Mário. Curso de direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1974. p.

267-268.

108ARAÚJO, Edmir Netto de. Responsabilidade do Estado por ato jurisdicional. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1981. p. 45.

109MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 - com a Emenda n. 1, de

1969. 2. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1970. p. 421.

Cremos ter respondido à sábia indagação feita de início deste capítulo por João Santo Sé, linhas atrás, (p. 41, de seu livro: Responsabilidade civil do Estado por atos judiciais), quando ele pergunta: “pode-se cogitar de uma responsabilidade civil do Estado por atos jurisdicionais?” E o fizemos com apoio no admirável voto do então Ministro Aliomar Baleeiro proferido no julgamento do Recurso Extraordinário nº 32.518, do Supremo Tribunal Federal que manteve seu velho ponto de vista de que o Estado, em relação aos membros do Poder Judiciário, responde apenas nos casos expressamente declarados em lei.

Como se vê, nesse acórdão do STF julgado em 21.6.66 (Recurso Extraordinário nº 32.518), publicado na Revista Trimestral de Jurisprudência, vol. 64, páginas 689, a mais alta Corte de Justiça considerou necessário um texto expresso prevendo a responsabilidade civil do Estado por atos do Poder Judiciário. Na ocasião, o voto magistral do então Ministro Aliomar Baleeiro, conforme relato de João Sento Sé111:

De início, admito a tese do Recorrente: ‘funcionários’, no art. 105 da C.F. de 1967, ou 194 da C.F. de 1946, são os mesmos ‘representantes’ do art. 15 do C. Civ., inclusive os órgãos e agentes dos três poderes, e não apenas aqueles que as leis antigas chamavam de ‘empregados públicos’ da Administração. ‘Critério estritamente objetivo e, portanto, mais largo, exige que se considerem funcionários públicos do art. 194 todos os que praticarem atos, ou incorrerem em omissão, no exercício de função pública, sem se dever entrar, sequer, na apuração da legalidade ou ilegalidade da investidura’, adverte Pontes de Miranda (Comentários C.F. 1946, VI, pág. 370).

Assim, a meu ver, o art. 105 da C.F. de 1967 abarca em sua aplicação os órgãos e agentes do Estado, como os chefes do Poder Executivo, os Ministros e Secretários do Estado, os Prefeitos, ainda que não sejam funcionários no sentido do Direito Administrativo. E, com maior razão, também os juízes, como agentes do Estado para a função jurisdicional deste, que os coloca sob regime especial de garantias no interesse de tal função. Esse regime especial e a natureza específica de sua atividade não lhe tiram o caráter de funcionários, lato sensu112.

As considerações feitas ao longo desta tese autorizam a conclusão de que não se justifica essa exigência de texto expresso 113.

111 SÉ, João Sento. Responsabilidade civil do Estado por atos judiciais. São Paulo: Bushatsky, 1976. p. 76-77. 112 Nesse sentido, voto do Ministro Relator Aliomar Baleeiro: RE 32518 / RS - Rio Grande do Sul - Julgamento:

21/06/1966 - Órgão Julgador: STF: Segunda Turma: 1) Ação criminal privada. Demora no seu andamento. 2) A atividade jurisdicional do Estado, manifestação de sua soberania, só pode gerar a responsabilidade civil quando efetuada com culpa, em detrimento dos preceitos legais reguladores da espécie. 3) Recurso extraordinário conhecido e não provido.

CAPÍTULO IV - RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR