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O Poder Judiciário é soberano, exercendo suas funções acima da lei, não

CAPÍTULO III – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR ATOS

3.1.   DIVERGÊNCIAS DOUTRINÁRIAS 111

3.1.2.   Argumentos que refutam a responsabilidade civil do Estado por atos jurisdicionais e

3.1.2.1.   O Poder Judiciário é soberano, exercendo suas funções acima da lei, não

No que diz respeito à soberania, José Cretella Júnior aponta diversos autores estrangeiros e nacionais que demonstram que a soberania é atributo do Estado, e não dos poderes constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário), sobrelevando a posição de Léon Duguit, o qual diz que “Se a soberania é uma realidade, ela não se manifesta de modo mais intenso no ato administrativo, e se ela não se opõe à responsabilidade do Estado administrador, não há motivo para que se oponha à responsabilidade do Estado Juiz” (Traité

de droit constitutionnel, 2. ed. vol. III, p. 499)28.

Com relação à soberania, Maria Sylvia Zanella Di Pietro refuta esse argumento dizendo que seria o mesmo para os demais poderes; a soberania é do Estado e significa a inexistência de outro poder acima dele; ela é una, aparecendo nítida nas relações externas com outros Estados. Os três Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – não são soberanos, porque devem obediência à lei em especial à Constituição. Se fosse aceitável o argumento da

27 SÉ, João Sento. Responsabilidade civil do Estado por atos judiciais. São Paulo: Bushatsky, 1976. p. 77. 28CRETELLA JÚNIOR, José. Responsabilidade do Estado por atos judiciais. In: Revista de Direito

soberania, o Estado também não poderia responder por atos praticados pelo Poder Executivo, em relação aos quais não se contesta a responsabilidade29.

No mesmo sentido, João Sento Sé:

A soberania do Poder Judiciário não desobriga o Estado de indenizar os prejuízos oriundos dos seus atos: (a) porque é uma concepção ultrapassada a de que existe antinomia entre a responsabilidade e a soberania; (b) porque, a prevalecer o argumento, a prerrogativa não seria apenas do Judiciário, mas também do Executivo, em relação ao qual ninguém sustenta, hoje, o privilégio30.

Maria Emília Mendes Alcântara afirma que a soberania deve ser reconhecida ao Estado como unidade e não a qualquer de seus poderes. No Estado de Direito inexiste um poder que, à diferença dos demais, seja em si mesmo soberano31.

Como observou o Min. Aliomar Baleeiro, “[...] o Poder Judiciário não será responsável se nós acobertarmos com o manto da indulgência, ou com essa figura misteriosa da soberania do Estado – para usar a expressão de Duguit – a falta, culpa ou dolo dos juízes”

32.

Os que invocam tal argumento aduzem que a função jurisdicional é uma manifestação da soberania do Estado. Assim, o Poder Judiciário, no exercício de suas funções, era colocado em uma posição de supra legem.

Para Odoné Serrano Júnior, tal argumento representa um pedantismo arcaico que, ao invés de salvaguardar o prestígio do Poder Judiciário, o transforma em um “monstro”, isento do controle da sociedade.

O “monstro judiciário” que pode tudo, posto que intocável e imbatível, não é a figura que queremos enxergar ao lembrarmos do Estado-Juiz.

29DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 662- 663. 30SÉ, João Sento. Responsabilidade civil do Estado por atos judiciais. São Paulo: Bushatsky, 1976. p. 99-103. 31ALCÂNTARA, Maria Emília Mendes. Responsabilidade civil do estado por atos judiciais. Curitiba: Juruá,

1996. p. 27-28.

32BALEEIRO, Aliomar. RE 70.121 – STF – Relator Min. Djaci Falcão. Ementa: “O Estado não responde

civilmente pelos atos praticados pelos órgãos do Poder Judiciário, salvo nos casos expressamente declarados em lei, porquanto a administração da justiça é um dos privilégios da soberania”. RDA, 114/298.

Ao revés, ao lembrarmos do Poder Judiciário, queremos lembrar do valor justiça, da virtude de ponderação, independência, maturidade e, principalmente, do valor responsabilidade.

Cada vez que o argumento da soberania absoluta do Poder Judiciário é invocado, quer-se ressuscitar das tumbas a vetusta e já mofada filosofia do “The king can do no wrong”.

A soberania não é um atributo exclusivo do chamado Poder Judiciário; ela é um atributo da pessoa jurídica do Estado, de forma una, indivisível e inalienável. Soberano é o Estado e não seus órgãos administrativos, legislativos e judiciários33.

Segundo José Cretella Júnior,

não militam a favor da irresponsabilidade do Estado, por atos judiciais, nem o argumento da soberania, nem o da incontrastabilidade da coisa julgada, em primeiro lugar porque soberano é o Estado, em segundo lugar porque a

coisa julgada pode ser atacada no cível pela rescisória, ou pela revisão no

crime 34.

Na observação de Léon Duguit35:

si la souveraineté est une réalité, elle ne se manifeste pas d’une manière plus intense dans l’acte jurisdictionnel que dans l’acte administratif, et si elle ne s’oppose pas à la responsabilité de l’Etat administrateur, il n’y a pas de raison qu’elle s’oppose à la responsabilité de l’Etat juge 36.

Este argumento de soberania, nos dias de hoje, conforme assinala Philippe Ardant, “ne constitue plus qu’un argument de musée”37. Ainda, nas palavras de João Sento Sé, “não se diga que, sendo o Poder Judiciário soberano, o Estado está desobrigado de indenizar os prejuízos provenientes dos seus atos. Esse argumento não resiste à menor análise”38.

33SERRANO JÚNIOR, Odoné. Responsabilidade civil do estado por atos judiciais. Curitiba: Juruá, 1996. p.

135.

34CRETELLA JÚNIOR., José. O Estado e a obrigação de indenizar. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.

260 (grifos do autor).

35DUGUIT, Léon. Traité de droit constitutionnel. Paris: Boccard, 1930. v. 3, p. 537.

36 Se a soberania é uma realidade, ela não se manifesta de modo mais intenso no ato jurisdicional do que no ato

administrativo, e se ela não se opõe à responsabilidade do Estado-administrador, não há razão para que se oponha à responsabilidade do Estado-juiz (tradução livre).

37ARDANT, Philippe La responsabilité de l’état du fait de la fonction juridictionnelle. Paris: LGDJ, 1956. p.

179.

Eis a observação de Lafayette Ponde, que fulmina o argumento da soberania: Relativamente aos atos judiciários, ninguém pode hoje acobertá-los de imunidade, sob pretexto de serem expressão de soberania. Este argumento provaria de mais, porque daria com a irresponsabilidade mesmo da administração e do Legislativo, já que o Judiciário não é um super-poder colocado sobre estes dois. Aquela arguição é destituída de todo e qualquer fundamento jurídico. O serviço judiciário é um setor de funcionamento do Estado, como o são todos os demais serviços públicos: distingue-se deste tão só pela função jurisdicional, que preferentemente ele exerce. Isto, porém, não o eleva acima da ordem jurídica, a cuja fiel e exata aplicação ele se destina. E, até mesmo por esta sua destinação específica, os danos que ele cause devem ser mais prontamente reparados, para que não permaneça sem remédio a violação sofrida pela vítima, que buscaria sedenta de justiça 39.

No mesmo sentido, Maria Helena Diniz afirma:

A soberania, no Estado de Direito, é reconhecida à Nação e não a qualquer de seus poderes, em si mesmo. Mesmo que se admitisse a soberania do Judiciário, este fato não exonera o Estado do dever de ressarcir danos causados por atos judiciais, por não haver autonomia entre soberania e responsabilidade, pois soberania não quer dizer infalibilidade ou irresponsabilidade40.

A soberania, cabe lembrar, é atributo do Estado e não pode ser confundida com atuação arbitrária, ilegal e inconstitucional dos poderes. A admitir essa tese, que por vezes prevalece nos tribunais, inclusive no Supremo Tribunal Federal, não seria o caso de se indagar se soberanos também não são os poderes Legislativo e Executivo? Admitida a tese, não seriam acaso os demais poderes também soberanos? A questão é, nesse aspecto, mal compreendida. Não há que se confundir independência com soberania, visto que nenhum exercício de soberania pode se sobrepor à Constituição da República.

Assim, para concluir, podemos afirmar que o argumento da soberania, se fosse aceito nos limites em que alguns autores o colocaram e defenderam, levaria à irresponsabilidade total do Estado por seus atos e não apenas pelos atos judiciais.

39PONDÉ, Lafayette. Da responsabilidade civil do Estado por atos do Ministério Público. In: Revista Forense.

Rio de Janeiro, n. 152, p. 44, 1952; In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade da Bahia. Salvador, v. 28, p. 174-188, 1953.

40DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1992.

3.1.2.2. A independência dos juízes como fator de irresponsabilidade do Estado por atos