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Teoria da irresponsabilidade ou regaliana 51

CAPÍTULO II – EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO

2.2.   TEORIAS SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO 51

2.2.1.   Teoria da irresponsabilidade ou regaliana 51

Inúmeras teorias a respeito da responsabilidade do Estado foram elaboradas e estudadas no curso dos tempos, inexistindo unanimidade entre os doutrinadores a respeito da sua elaboração, terminologia e classificação. Abordaremos, em apertada síntese, a teoria da irresponsabilidade do Estado, as teorias do risco e da culpa.

A responsabilidade civil do Estado evoluiu do conceito de irresponsabilidade para o da responsabilidade sem culpa. Passou-se da fase da irresponsabilidade do Estado para a fase da responsabilidade civilística e dessa para a fase da responsabilidade publicística; do Estado irresponsável, ou da teoria regaliana, até as teorias do risco integral e do risco administrativo.

A evolução das teorias da responsabilidade civil do Estado comporta três fases, segundo José de Aguiar Dias: (a) fase da irresponsabilidade, de cunho absolutista; (b) fase civilística – de cunho individualista; e (c) fase do Direito Público – de cunho social 20 .

A doutrina da responsabilidade civil do Estado evoluiu do conceito da irresponsabilidade até a fase atual da responsabilidade com culpa; desta para a da

19 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil do Estado. XI. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.

773,775.

responsabilidade civilística e desta para a atual fase da responsabilidade objetiva ou sem culpa.

Primeiramente, o Estado não respondia, em uma fase chamada de Estado de

Polícia21.

Na visão de José de Aguiar Dias, citando Paul Duez, a fase da irresponsabilidade revela uma noção de fundo essencialmente absolutista. Paul Duez assinala, por exemplo, que, já vigente a Constituição do ano VIII, os particulares não tinham à sua disposição senão procedimento fundado na responsabilidade pecuniária pessoal dos agentes perante os tribunais judiciários. Acrescenta que a autorização para a demanda era manejada como processo governamental e que, frequentemente, como hoje, o funcionário era insolvável22.

A teoria da irresponsabilidade está ligada ao período absolutista (Estados Absolutistas), e nasce da ideia de soberania: o poder absoluto do Rei ou Monarca se fundava, de acordo com certas convicções, na teoria divina dos reis, que eram os representantes de Deus e em seu nome agiam. Essa teoria predominou nos primórdios do Estado despótico e absolutista, que colocava os soberanos acima das leis, e no qual monarcas e agentes não respondiam, em qualquer que fosse o caso, pelos danos causados aos súditos23.

Durante séculos prevaleceu a teoria da irresponsabilidade do Estado, também conhecida como teoria feudal, regalista ou regaliana (de regalis, e, adjetivo de res, regis, rei),24 segundo uma concepção político-teocrática de

soberania, na qual o poder do monarca ou soberano teria origem divina. Em consequência, impossível que o detentor desse poder, ao executá-lo, pudesse causar dano a alguém. A partir dessa concepção, soberania e responsabilidade eram termos que expressavam ideias antitéticas. Assim, o dogma da infalibilidade do soberano, que encarnava a divindade, dela recebendo os atributos da onipotência e da onisciência, repelia a ideia de que o Estado fosse responsabilizado pela prática de atos lesivos às pessoas25.

21BÜHRING, Márcia Andréa. A natureza jurídica do poder de polícia é discricionária? 2001. Monografia de

Pós-Graduação (Disciplina de Princípios do Direito Administrativo, ministrado pela Prof.ª Ângela Cássia Costaldello). Curso de Mestrado Interinstitucional em Direito, Universidade Federal do Paraná e Universidade de Caxias do Sul, Curitiba, 2001.

22 DIAS, José de Aguiar. . Da responsabilidade civil do Estado. XI. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 784. 23MOREIRA NETTO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,

1997. p. 458.

24CRETELLA JÚNIOR, José. O Estado e a obrigação de indenizar. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 58. 25DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional. Belo Horizonte:

Na lição de Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias,

esses foram os fundamentos da teoria da irresponsabilidade do Estado nos regimes autocráticos e absolutistas, que vigoraram na Europa a partir do século XVI, gerando as máximas de que o rei não pode fazer mal (‘le roi ne

peut mal faire’), ou o rei não pode errar (‘the king can do no wrong’),

induzindo Luiz XVI (sic), na França,26 a identificar-se como o próprio

Estado, em sua célebre exclamação: ‘L’État c’est moi’27.

Na observação de George Jellinek28, essa concepção teocrática surgiu de teoria conhecida como das “duas espadas”, calcada em interpretação mística de passagem do Evangelho segundo São Lucas, pela qual se entendia que Deus havia concedido duas espadas para proteger a cristandade, a espiritual e a terrena. Para os membros da Igreja, ambas foram dadas ao Papa, que conservou a espada espiritual, entregando a espada terrena ao soberano. Os súditos, entretanto, entendiam que o soberano havia sido investido diretamente por Deus com o poder temporal, dele recebendo a espada terrena.

Celso Antônio Bandeira de Mello anota que é sobejamente conhecida a frase de Laferrière: “O próprio da soberania é impor-se a todos sem compensação”; bem como as fórmulas regalengas que sintetizavam o espírito norteador da irresponsabilidade: “Le roi ne

peut mal faire”, como se afirmava na França, ou: “The King can do no wrong”, que é a

equivalente versão inglesa29.

Resenha Edmir Netto de Araújo que, na época dos Estados despóticos e absolutistas, a concepção da responsabilidade, ou melhor dizendo, da “irresponsabilidade” do Poder Público por atos ou omissões de seus representantes era estabelecida a partir da “razão

do príncipe”. Na verdade, o problema se resumia na aplicação da máxima “The King can do no wrong” (o Rei não erra, ou não pode errar): o Estado é o próprio Rei e vice-versa, e sendo

infalível, obviamente não comete erros, pois é o próprio Direito, e está então desvinculado do ato danoso do seu agente. Assim, os agentes do Estado, quando faltassem ao dever ou violassem a lei, seriam pessoalmente responsáveis pelos danos que causassem, pois o Estado

26Rei de França, Luiz XIV, e não Luiz XVI, como consta do texto.

27DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional. Belo Horizonte:

Del Rey, 2004. p. 22-23.

28JELLINEK, George. Teoria general del Estado. Traducción de la segunda edición alemana por Fernando de

los Rios Urruti. Granada: Comares, 2000. p. 182.

não pratica atos contrários ao Direito e os seus representantes só têm essa condição dentro dos estritos limites da prática de atos de acordo com a lei e compatíveis com o Direito. Essa teoria era conhecida como regaliana. É a tese “feudal”, reflexo do absolutismo no Estado Moderno, a merecer o mais firme repúdio jurídico30.

Na observação de Diogenes Gasparini,

a fase da irresponsabilidade civil do Estado vigorou de início em todos os Estados, mas notabilizou-se nos absolutistas. Nestes, negava-se tivesse a Administração Pública a obrigação de indenizar os prejuízos que seus agentes, nessa qualidade, pudessem causar aos administrados. Seu fundamento encontrava-se em outro princípio vetor do Estado absoluto ou Estado de polícia, segundo o qual o Estado não podia causar males ou danos a quem quer que fosse. Era expressado pelas fórmulas: “Le roi ne peut mal faire” e “The King can do no wrong”, ou, em nossa língua: “O rei não pode fazer mal” e “O rei não erra” (sic)31.

Nesse sentido, para Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

A teoria da irresponsabilidade foi adotada na época dos Estados absolutos e repousava fundamentadamente na ideia de soberania: O Estado dispõe de autoridade incontestável perante o súdito; ele exerce a tutela do direito, não podendo, por isso, agir contra ele; daí os princípios de que o rei não pode errar (The King can do no wrong; le roi ne peut mal faire) e o de que ‘aquilo que agrada o príncipe tem força de lei’ (quod principi placuit habet legis

vigorem). Qualquer responsabilidade atribuída ao Estado significaria colocá-

lo no mesmo nível que o súdito, em desrespeito a sua soberania. Essa teoria logo começou a ser combatida, por sua evidente injustiça; se o Estado deve tutelar o direito, não pode deixar de responder quando, por sua ação ou omissão, causar danos a terceiros, mesmo porque, sendo pessoa jurídica, é titular de direitos e obrigações32.

Nesse sentido, José Cretella Júnior afirma que a doutrina que prevaleceu durante muito tempo foi a denominada teoria regalista, regaliana, feudal ou da irresponsabilidade. Por essa teoria, que consagra o princípio da irresponsabilidade do Poder Público pelos danos oriundos da atividade de seus agentes, o Estado desconhece quaisquer prejuízos que a ação ou omissão das pessoas físicas, na qualidade de funcionários, causem a terceiros. Essa teoria

30ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de direito administrativo, 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 771.

31GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 898. Como consta no

texto (grifos do autor).

estava na base da política dos Estados absolutistas e consagrava a irresponsabilidade como corolário normal do sistema33. O Estado é infalível, não comete erro. Daí, a exclusão34.

Como lembra Rui Stoco, na tentativa de resolver a questão da responsabilidade civil do Estado surgiram três teses: (a) da culpa administrativa; (b) do risco administrativo; (c) do risco integral, todas elas descendentes do tronco comum da responsabilidade objetiva da Administração Pública, mas com variações de fundamentos e aplicação35.

Embora a teoria da irresponsabilidade patrimonial do Estado esteja hoje superada, abandonada, as últimas nações a sufragar a doutrina da irresponsabilidade foram a Inglaterra e os Estados Unidos que a abandonaram, respectivamente, por meio do Crown Proceeding Act, de 1947, e pelo Federal Tort Claims Act, de 1946, ingressando no regime de responsabilidade patrimonial do Poder Público, não obstante sob moldes civilistas e com acentuadas limitações. Caíram, assim, os últimos redutos da irresponsabilidade civil do Estado pelos atos de seus agentes36.