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Teoria civilista da culpa: atos de império e atos de gestão 55

CAPÍTULO II – EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO

2.2.   TEORIAS SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO 51

2.2.2.   Teoria civilista da culpa: atos de império e atos de gestão 55

No início do século XIX, podia-se perceber que o princípio da irresponsabilidade do Estado não poderia subsistir por muito tempo37e a teoria da irresponsabilidade do Estado estava definitivamente prescrita (sic) como doutrina38.

33CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito administrativo. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 69. 34 CRETELLA JÚNIOR, José. O Estado e a obrigação de indenizar. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 58. 35 STOCO, Rui. Responsabilidade Civil e sua Interpretação Jurisprudencial: Doutrina e Jurisprudência. 6. ed.

São Paulo: RT, 2004. p. 958.

36MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 622. 37BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Responsabilidade civil extracontratual das pessoas jurídicas de direito

privado prestadoras de serviço público. Interesse Público, Sapucaia do Sul, n. 6, p. 18, 2000.

38 DIAS, José de Aguiar. . Da responsabilidade civil do Estado. XI. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 784 –

Aponta Maria Sylvia Zanella Di Pietro que foi no século XIX que a tese da irresponsabilidade ficou superada. Porém, ao se admitir, inicialmente, a responsabilidade do Estado, adotavam-se os princípios do Direito Civil, apoiados na ideia de culpa; daí falar-se em

teoria civilista da culpa39.

É à fase civilista, de fundo individualista, que se filia ainda, segundo a maioria dos nossos autores, o sistema brasileiro, até porque regula no Código Civil a responsabilidade do Estado 40.

José Cretella Júnior41 lembra que, no século XIX, a tese feudal da completa

irresponsabilidade do Estado, no terreno extracontratual, vai sendo deixada de lado e substituída por teorias de fundamento jurídico.

O mesmo autor acrescenta que domina a teoria civilista que possibilita a reclamação perante a Fazenda Pública por danos causados sempre que se trate dos chamados

atos de gestão.

Na prática dos atos de gestão, como se sabe, o Estado age do mesmo modo que o particular na administração de seus bens, diferindo, sob esses aspectos, dos denominados atos

de império, nos quais o Estado age como “síntese dos poderes soberanos”, exercendo o ius imperis42.

Segundo José Cretella Júnior, imperium e gestio eram palavras tradicionais no campo do direito, empregando-se a primeira no direito público, e a segunda no campo do direito privado. Não tinham, entretanto, sido empregadas na distinção dos atos administrativos. Durante a grande convulsão por que passou a França, após a queda da realeza, o patrimônio móvel e imóvel do particular foi afetado. Mobiliário, casas, parques, jardins, foram danificados pela senha popular, impossível de ser controlada pelo poder público. Em consequência, inúmeras ações foram propostas contra a Administração, responsabilizando-a, civilmente, pelos prejuízos causados aos particulares. A situação

39DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 24. ed. São Paulo: 2011. p. 644.

40 DIAS, José de Aguiar. . Da responsabilidade civil do Estado. XI. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 784. 41CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito administrativo. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 70. 42 Id., Ibid., p. 70.

econômica da França era precária, e se os administrados obtivessem ganho de causa, o tesouro francês, já exaurido, ficaria insolvente, agravando ainda mais a economia do país.

Para remediar a situação, foi elaborado um artifício jurídico, ad usum delphini, vedando ao Judiciário tomar conhecimento dessas demandas, que seriam julgadas pela própria Administração, por serem referentes ou ligadas a atos de império (ou de mando) praticados pelo Estado no exercício do poder de polícia, que lhe é inerente. Aos atos de império opõem- se os atos de gestão, atos esses que o Estado pratica, como o particular, quando administra seu patrimônio43.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, discorrendo sobre essas teorias, acrescenta que, numa primeira fase, distinguiam-se, para fins de responsabilidade, os atos de império e os

atos de gestão. Os primeiros seriam os praticados pela Administração com todas as

prerrogativas e privilégios de autoridade e impostos unilateral e coercitivamente ao particular, independentemente de autorização judicial, sendo regidos por um direito especial, exorbitante do direito comum, porque os particulares não podem praticar atos semelhantes; os segundos seriam praticados pela Administração em situação de igualdade com os particulares, para a conservação e desenvolvimento do patrimônio público e para a gestão de seus serviços; como não difere a posição da Administração e a do particular, aplica-se a ambos o direito comum44. Representa esta teoria uma grande evolução relativamente às anteriores, mas era, ainda, insuficiente.

No mesmo sentido, Yussef Said Cahali aponta que, agindo o Estado no exercício de sua soberania, na qualidade de poder supremo, supraindividual, os atos praticados nessa qualidade, atos jure imperii, restariam incólumes a qualquer julgamento e, mesmo quando danosos para os súditos, seriam insuscetíveis de gerar direito à indenização. Todavia, na prática de atos jure gestionis, o Estado equipara-se ao particular, podendo ter sua responsabilidade civil reconhecida, nas mesmas condições de uma empresa privada, pelos atos de seus representantes ou prepostos, lesivos ao direito de terceiros; distinguia-se, então,

43 CRETELLA JÚNIOR, José. O Estado e a obrigação de indenizar. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 63-

64.

conforme tivesse havido ou não culpa do funcionário: havendo culpa, a indenização seria devida; sem culpa, não haveria ressarcimento do dano45.

Sobre a distinção entre atos de império e atos de gestão, Edmir Netto de Araújo afirma:

O agente público poderia praticar atos de gestão, tais como alienações, contratos, trocas, aquisições, em suma, atos que o Estado pratica como se fosse um particular administrando seu patrimônio. Todavia, poderia também praticar determinados atos que seriam a manifestação de soberania, na autoridade pública, como requisições e atos relativos à segurança da nação e sua defesa: em resumo, todos aqueles que envolvessem uma parcela do exercício do poder soberano estatal, permitindo, negando ou determinando algo aos membros dessa sua coletividade. Tais são os atos de império. Os primeiros, onde o Estado se equipara ao particular na gestão patrimonial, se regeriam pelo direito comum, sendo objeto de responsabilidade do Poder Público quando ferissem bens ou direitos dos administrados. [...] Já os atos de império, de origem, manifestações da vontade pública soberana, escapariam ao domínio do direito privado, não sendo, em consequência, responsabilizado o Estado por prejuízos causados por seus agentes agindo nessa qualidade46.

Para Amaro Cavalcanti, dentro da própria teoria civilista houve uma modificação de pensamento, restringindo-se a responsabilidade do Estado, agindo este ora como se fosse privado, ora como se fosse público. A partir do século XVIII, muitos doutrinadores defendiam a responsabilidade do Estado, baseados nas regras gerais do Direito Civil 47.

A concepção civilista da responsabilidade estatal não satisfazia, contudo, às exigências da justiça social, pois exigia a demonstração, por parte dos lesados, do dano e, também, da culpa do agente público 48.

Com a finalidade de se responsabilizar tanto a pessoa do rei como o próprio Estado, eram distinguidos os atos de Império dos atos de Gestão. O primeiro movimento em que se aceitou essa responsabilização ocorreu logo após a Revolução Francesa de 1789 49.

45CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 20. 46ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 772.

47CAVALCANTI, Amaro. Responsabilidade civil do Estado. 2. ed. atualizada por José de Aguiar Dias. Rio de

Janeiro: Borsoi, 1956. v. 1, p. 167.

48DERGINT, Augusto do Amaral. Responsabilidade do Estado por atos judiciais. São Paulo: Ed. Revista dos

Tribunais, 1994. p. 38.

49BÜHRING, Márcia Andréa. Responsabilidade civil extracontratual do Estado. São Paulo: Thomson-IOB,

O crescimento de ideias individualistas liberais no século XIX, mediante o fortalecimento dos ideais civilistas, ou patrimonialistas, revelou, nos atos estatais, duas modalidades jurídicas distintas. Assim, houve uma cisão entre os atos de Império e os atos de Gestão.

Odoné Serrano Júnior observa que

os atos de Império seriam aqueles inerentes à ação soberana do Estado (jure

imperii), pelos quais não poderia haver responsabilidade por eventuais atos

lesivos; atos de Gestão seriam aqueles em que o Estado agia como pessoa privada, gerindo seu patrimônio como qualquer particular, e onde seria responsável por seus atos como qualquer pessoa comum, devendo reparar os prejuízos que causasse por dolo ou culpa. Essa reparação excluía da pessoa do rei (soberano e não-passível de erro) os atos de gerenciamento patrimonial praticados pelos demais agentes (prepostos) do Estado 50.

Então, nos atos de Império, não cabia qualquer responsabilização do Estado. Os atos praticados pelo rei continham todos os privilégios e eram impostos coercitivamente, à diferença dos atos de Gestão, em que se responsabilizava o Estado, que agia de modo semelhante ao particular na administração dos bens, desde que houvesse culpa do agente.

Todavia, essa diferenciação não obteve êxito, uma vez que era insatisfatória, pois ambos os atos demonstravam a atuação estatal, sendo na prática abandonada.

Na verdade, o conceito só interessa ao próprio Estado, em termos de controle interno e suas atividades, de império ou gestão, não interessando ao particular saber se o ato foi praticado em uma ou outra circunstância: qualquer que seja a caracterização, esta não eliminará o prejuízo injusto causado, nem devolverá o equilíbrio ao seu patrimônio afetado por um ato ou acontecimento, estranho à sua vontade51.

A teoria civilística da culpa foi abandonada, e a noção dessa modalidade de culpa foi ultrapassada pela ideia denominada de faute du service entre os franceses 52.

Propondo resolver a questão da responsabilidade do Estado por princípios de Direito Público, surgiram as teorias da “culpa do serviço” (“culpa administrativa”, “acidente

50SERRANO JÚNIOR, Odoné. Responsabilidade extracontratual do Estado por atos judiciais. Revista da Faculdade de Direito de Curitiba. Curitiba, ano 11, n. 9, p. 87-88, 1995.

51ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 718.

52MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p.

administrativo” ou “falta do serviço” e a teoria do “risco”, que se desdobra, segundo alguns autores, em teoria do “risco administrativo” e teoria do “risco integral) 53.

O pressuposto da culpa, como condição da responsabilidade civil do Estado, acabou sendo definido como injustificável pela melhor doutrina: em especial naqueles casos em que o conceito de culpa civilística, por si ambíguo, já não bastava para explicar o dano que teria resultado de falha da máquina administrativa, de culpa anônima da Administração, buscando-se, então, supri-la mediante a concepção de uma culpa publicística 54.

A verdade é que o Direito Público tem de ser explicado a partir de outros princípios – princípios publicísticos. Dessa maneira, as várias teorias civilistas, nas modalidades em que se desdobram, são insuficientes para explicar um instituto peculiar ao Direito Administrativo. Surgiram, pois, diversas teorias de cunho publicístico, informadas por outros princípios, para explicar a responsabilidade civil do Estado por ato de seu agente. Entre elas, cumpre mencionar a da culpa administrativa, a do acidente administrativo e a do risco

integral 55.