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“As pessoas não se dão conta de que as séries são um retrocesso” (Marcos, 2018, s.p.) Em que medida os serviços de Video on Demand (VoD) aproximam-se da televisão, superam-na ou se constituem como um meio televisivo em si? Essa é uma questão que vem inspirando diversas investigações, como as de Corrêa (2019), Castellano e Meimaridis (2016), Almeida, Gouveia e Costa (2015), e mesmo outras, anteriores à popularização do VoD, como a de Miller (2009). De fato, justamente por ter sido motivo de diferentes pesquisas, o tema não consiste em campo inexplorado e, talvez possa se dizer, a pergunta que inicia este parágrafo já tenha sido até mesmo respondida. Bolter e Grusin (2000), ainda que se refiram a um contexto anterior à popularização do VoD, defendem que, a respeito dos meios de comunicação, discussões que pretendem sinalizar a possibilidade de substituições ou superações mediáticas são, de fato, problemáticas. Os autores indicam como mais profícua a busca por adaptações ou reconfigurações dos meios, e não sua extinção, pura e simplesmente. Meimaridis (2017, p. 10), por sua vez, e para escapar de classificações demasiadamente limitadoras, recorre à elaboração de Thompson e Mittel para definir a televisão como modo de “ver e ouvir de longe sons e imagens de um tempo ou espaço distantes”, enquanto Miller (2009, p. 22) concebe a internet como “apenas mais uma forma de enviar e receber a televisão”, defendendo, assim, também, a televisão como produto maior que seu aparato distributivo.

A partir das elaborações destas/es autoras/es é possível inferir que a discussão a respeito dos limites televisivos, ainda que encontre certo consenso – qual seja, o de que uma compreensão limitada pode causar uma simplificação danosa aos estudos da área – , também apresenta importantes incongruências. Por exemplo, a partir da ampla concepção de Thompson e Mittel (apud Meimaridis, 2017), poderia se acrescentar o próprio cinema também como meio

80 televisivo, ou, num sentido mais aproximado do próprio VoD, o Youtube37. Na mesma direção, a partir de Miller (2009), seria possível inferir que não há transformações na relação televisão e internet que provoquem modificações na primeira para além do seu meio de distribuição. Sem dúvida, o intuito aqui não é desqualificar ou mesmo invalidar a compreensão destes autores, cujas contribuições têm lugar importante na constituição do campo de estudo televisivo nacional e internacional. No entanto, ainda que uma perspectiva mais ampla, como perfilhada pelos autores citados, seja o caminho mais profícuo, importa sinalizar também os efeitos das tensões estabelecidas nas fronteiras entre meios, uma vez que acepções demasiadamente genéricas podem efetivar a desqualificação do próprio meio televisivo ou operar em direção a uma eventual superação. Assim, é a partir da compreensão de que a televisão não pode ser resumida a plataformas e modos de distribuição, mas que compõe sobretudo linguagens, gêneros e fórmulas (Castro, 2019) que precisam partilhar de um mínimo denominador comum, que o lugar das narrativas seriadas é aqui investigado, entendimento que se erige como um primeiro pressuposto investigativo.

Em consonância também com um pressuposto que atravessa esta pesquisa de modo mais amplo, esta seção assume a ambivalência que pode emergir dos deslocamentos fronteiriços acima mencionados como produtiva, recorrendo a um elemento provocador ao suscitar a seguinte pergunta: qual o lugar das narrativas seriadas no jogo de tensões entre os limites televisivos? Trata-se de uma pergunta, portanto, que assume a narrativa seriada como um produto (sobretudo) televisivo, e que, como efeito, faz emergir o segundo pressuposto a ser considerado neste texto: que, para responder a tal pergunta, é necessário questionar algumas apropriações, tanto da televisão quanto das serialidades audiovisuais, que recorrem a juízos de valor para estabelecer certos limites. Um exemplo se faz presente na epígrafe deste texto. Importa assinalar que a epígrafe não foi proferida pelo autor da notícia, mas sim por Lucrecia Martel, aclamada diretora de cinema. Ela não consiste, contudo, em mera opinião isolada, e nem mesmo impopular. Antes disso, e como demonstra Esquenazi (2011), essa é uma comum concepção, e o surgimento das séries (e sua popularização, hoje) não resume a questão, mas sim faz aparecer uma certa suspeição historicamente recorrente em relação ao meio a elas relacionado: a televisão. O autor mostra ainda uma crítica francesa, baseada principalmente em Serge Daney (célebre crítico francês do antológico Cahiers du cinéma) que classifica a televisão

37 Ainda que existam pesquisas que defendam esta perspectiva, como a de Murolo (2010), é importante

compreender que os modos de distribuição, de produção e mesmo de recepção dos produtos audiovisuais da plataforma pouco se assemelham àqueles produzidas tradicionalmente na televisão. As web séries são um importante exemplo desse descompasso, uma vez que, por seu baixo orçamento e pelas limitações impostas pelo próprio YouTube, diferem substancialmente daquelas produzidas e distribuídas em broadcasting ou em VoD.

como incapaz de expressar-se visualmente, refém de públicos abjetos e, por isso, desnecessária aos estudos de imagem. Neste sentido, não é novidade ouvir que a televisão (e aquilo que se produz para ela) é incapaz de produzir críticas, inovação, criação, ou, ainda, pejorativamente, conceituá-la como “meio das massas”, numa explícita referência a um elitismo disfarçado de crítica técnica ou artística. São esses ditos que Lucrecia Martel aciona quando situa as séries como retrocesso em relação ao cinema.

Para além, portanto, de apontar para limites e impossibilidades sobre a televisão, entendo aqui a narrativa seriada como aquela que estabelece uma relação de distanciamento e proximidade muito peculiar com o campo frequentemente denominado televisivo. Para além dos deslocamentos promovidos pelas diferentes plataformas ocupadas pelas narrativas seriadas, conceitos como o de “narrativas complexas” ou expressões como “drama de prestígio”, caracterização frequentemente utilizada pela crítica especializada (Castellano, Meimaridis e Ferreirinho, 2019), elevam essas narrativas a outro patamar, produzindo tensões que permitem identificar outros deslocamentos nos limites televisivos.

Com base nestas discussões sobre as fronteiras televisivas e suas relações com as narrativas seriadas, esta seção se propõe a discutir as possibilidades transmidiáticas intensificadas por essas narrativas e as contribuições de algumas mudanças ocorridas em seus modos de produção e de distribuição para os estudos de/sobre televisão. Defende-se aqui que tensionamentos entre televisão e VoD, provocados pelas narrativas seriadas, produzem uma ambivalência produtiva que favorece, inclusive, o tensionamento de algumas compreensões bastante caras aos estudos tanto sobre a televisão como sobre o VoD.

A importância de tal discussão para a presente pesquisa se dá na medida em que, como material empírico, foram eleitas quatro séries: uma oriunda do broadcasting, isto é, da radiodifusão, duas dos serviços de VoD e uma híbrida, isto é, que teve seu lançamento concomitantemente no broadcasting e no VoD. Neste sentido, a investigação sobre os limites televisivos acabou compondo parte da própria construção metodológica, já que discutir tais atravessamentos exigiu olhar para as peculiaridades de ambos os espaços, e, com isso, formular também as possibilidades investigativas.

Para dar conta destes aspectos ligados ao campo metodológico mais amplo da pesquisa, este texto foi organizado da seguinte forma; primeiramente, apresento uma discussão sobre a narrativa seriada de modo a situar sua gênese transmidiática antes mesmo do VoD tornar-se uma possibilidade. Em um segundo momento, as reflexões direcionam-se para o VoD especificamente, de modo a delinear seus limites e possibilidades em relação ao broadcasting (e aqui tendo como base as narrativas seriadas). Tal exercício visa caracterizar a importância

82 desse formato narrativo para o entendimento do VoD como televisão, assim como trazer para o debate as próprias fronteiras que tradicionalmente definiram não apenas a televisão, mas também os seriados televisivos.

É importante destacar, novamente, que não tenho a intenção de selecionar uma série isoladamente, uma vez que o interesse desta pesquisa reside na análise das múltiplas formas pelas quais se efetivam e se constituem o devir-sapatão. Mais precisamente, acredito que a escolha por séries distintas – algo que será explicitado a seguir –, permite dar conta de algo central: o movimento pelo qual as personagens emergem como estratos que, nessa condição, oferecem pistas de relações singulares e precisas – e, mais ainda, de acontecimentos – em direção a uma espécie de visibilidade do devir-sapatão. Como é de se esperar, tais relações são postas em ato em momentos limitados não apenas às cenas com as personagens, mas sobretudo às relações que ali operam. Assim, optei por dar destaque a personagens de determinadas séries, sem, com isso, desconsiderar o contexto mais amplo em que essa personagem está inscrita, isto é, uma narrativa seriada específica. Como efeito, entendo que se faz pertinente para a própria análise compreender a linguagem seriada, sua constituição transmidiática e seus formatos – justamente para que seja possível mostrar, com mais clareza, a construção das personagens que interessam.