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Judith Butler (2003, p. 216), ao construir a sua teoria performativa, não utiliza o conceito de heteronormatividade, mas nomeia matriz heterossexual a “uma grade de inteligibilidade cultural por meio da qual os corpos, os gêneros e desejos são naturalizados”. Nessa perspectiva, a autora evidencia a estrita relação entre gênero e sexualidade, uma vez que os localiza como componentes da mesma matriz, isto é, de uma espécie de modelo que serve de fonte, de referência. No entanto, a proposta de nomeação do conceito apaga uma delas: o gênero, e,

170 consequentemente, elege a sexualidade como a origem ou, senão origem, pelo menos a fonte talvez “primária” da matriz. De fato, Butler (2003) assume que cunhou o conceito com base nas teorias de Wittig e Rich; como já abordado, trata-se de autoras críticas à heterossexualidade e que voltam suas considerações mais para esse âmbito (para a sexualidade) do que exclusivamente para o gênero, divergindo de grande parte das teóricas feministas brancas e heterossexuais naquele momento (década de 1980 em diante).

É explícito nos escritos destas autoras (assim como nos de Butler) que o gênero está implicado nesta matriz, no entanto, pode acabar invisibilizado quando a sexualidade é eleita, mais do que como nome do conceito, como princípio. A respeito disso, Butler (2002) explica que procurou, em Bodies That Matter e em Gender Trouble, dar destaque sobretudo à implicação da matriz heterossexual nas relações de gênero por entender que estas questões ainda permaneciam invisibilizadas nas críticas feministas. Para exemplificar a importância da inversão que propôs à época, a autora evoca os limites entre “próprio” e “impróprio” no que tange à sexualidade feminina, argumentando que grande parte das feministas, mesmo dentro do âmbito do “impróprio”, priorizavam apenas questões heterossexuais. Nesse sentido, Butler (Ibidem, p. 165) assume que esteve “disposta a cometer certo exagero retórico para manter viva a questão da homossexualidade, particularmente a do lesbianismo (sic)”, ainda que defenda que seu intento não foi o de eleger a heterossexualidade como “opressão primária”.

Para além do confesso exagero teórico, há ainda uma segunda pertinente limitação na discussão sobre a matriz: a eleição exclusiva de uma matriz heterossexual impossibilita a leitura complexa a partir de outros vetores sociais fundamentalmente implicados em tal matriz, como raça, etnia, classe social. A ausência desse envolvimento é revelada por teorizações de feministas descoloniais, que denunciam as categorias de gênero e de sexualidade como colonialistas. A primeira, enquanto matriz, pressupõe a invisibilização de outras raças que não a branca, uma vez que elege a branquitude como a referência universal. María Lugones (2014) aborda brilhantemente essa invisibilização, ao expor a condição das mulheres negras escravizadas, sobre as quais recaiam fundamentalmente expectativas de sexo (no sentido de desumanização do corpo negro) em detrimento daquelas de gênero. Mara Vieros (2008), no mesmo sentido, mas em relação à sexualidade, revela a racialização desta, que se constrói, por exemplo, a partir da invisibilização de sexualidades divergentes em povos indígenas ou quilombolas. Como efeito, a heterossexualidade como matriz acaba reiterada de outras formas nesses povos, o que permite evidenciar que a matriz heterossexual é, também ela, racializada. Ainda que entenda a força analítica da matriz heterossexual aliada à performatividade, e que tenha recorrido sobretudo a ela para investigar o devir-sapatão, como resultado de aventuras e

desterritorializações teóricas que tenho vivido no tempo em que escrevo esta seção, proponho explorar aqui uma espécie de linha de fuga teórica.

Ochy Curiel (apud Teixeira, Da Silva e Figueiredo, 2017) afirma que articular diversos vetores sociais em análises complexas permite com que a discussão converta-se de uma questão identitária para a compreensão (científico-política, acrescento eu) das relações sociais e das micro e macro estruturas. Tal articulação possibilita um entendimento mais amplo dos limites das matrizes que encerram as mais diversas categorias e seus atravessamentos, como gênero, sexualidade, raça, etc. e, consequentemente, demanda a constituição de uma matriz mais ampliada, que compreenda que tais vetores sociais funcionam de forma interseccional81.

Patricia Collins (2000) cunha o conceito de matriz de dominação para designar esta organização complexa de vetores sociais que possibilita a criação e a manutenção de opressões, evidenciando não seu caráter de origem, mas sobretudo de fonte mutável de organização e jugo social. Collins (Ibidem) defende que tal matriz se reorganiza em diversos períodos históricos, abandonando formas antigas e produzindo novas formas de dominação, numa contínua relação de poder com os grupos sociais, suas lutas e reivindicações. O conceito de matriz de dominação, portanto, evidencia um princípio que a autora vê como universal: o de que as opressões funcionam de forma interseccional. Collins (Ibidem) assume que tal matriz interseccional possibilita o entendimento de que a produção de lugares sociais se dá de forma entremeada e também social e historicamente localizada, produzindo formas diferentes de opressão e domínio. No entanto, quando tais fenômenos sociais são analisados sob apenas um prisma - seja ele o do gênero, o da raça, ou o da sexualidade –, acabam tendo o mecanismo de sua produção reduzido a ele, o que invisibiliza a implicação de outros vetores e seus efeitos sociais. Ao mesmo tempo, a compreensão de matriz interseccional de dominação também coloca em questão a quimera que concebe a existência de vítimas e/ou opressoras/es puros (Collins, 2000). Isso devido aos quatro domínios de poder pelos quais uma matriz de dominação organiza (Ibidem, p. 276):

[...] os domínios estrutural, disciplinar, hegemônico e interpessoal. Cada domínio serve a uma finalidade específica. O domínio estrutural organiza a opressão, enquanto o domínio disciplinar a gerencia. O domínio hegemônico justifica a opressão e o

81 Curiel (apud Teixeira, Da Silva e Figueiredo, 2017) tece uma relevante crítica à ideia de interseccionalidade.

Para ela, o grande problema é que essa noção compreende que, em algum momento, os vetores sociais agem de forma separada, interseccionando-se apenas em determinado ponto. Ainda assim, opto por permanecer com a ideia de interseccionalidade, defendendo, no entanto, a construção justaposta de todos os vetores sociais.

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domínio interpessoal influencia a experiência cotidiana vivida e a consciência individual que dela deriva (tradução minha).82

Tal organização apresenta a existência de diversos níveis de interação social que podem produzir sujeição. Ainda que faça distinção entre os quatro domínios, os três primeiros, de acordo com Collins (2000), fazem a manutenção de uma organização social no nível macro, enquanto o último se efetiva no âmbito do indivíduo. No nível macro, o domínio estrutural é caracterizado pela autora como correspondente às organizações, às instituições e mesmo à constituição jurídica e sua forma de organização que produz exclusão e discriminação danosa de minorias. O domínio disciplinar, por sua vez, corresponde a sistemas de controle por meio da burocracia institucional e da vigilância. Como exemplo, Collins (2000) cita dois movimentos disciplinares envolvidos na produção acadêmica de mulheres negras: a qualificação da produção teórica negra-feminista como teoria, que, ao mesmo tempo, pode reforçar a desqualificação da produção ativista de mulheres negras.

Por sua vez, o domínio hegemônico do poder lida, segundo a autora, com as dimensões culturais e ideológicas, bem como com a produção de consciência e seus limites. Nesse sentido, opera como lócus que justifica as práticas dos outros domínios de poder: “pela manipulação ideológica e cultural, o domínio hegemônico atua como um elo entre as instituições sociais (domínio estrutural), suas práticas organizacionais (domínio disciplinar), e a interação social cotidiana (domínio interpessoal)” (Collins, 2000, p. 284). Collins fala de manipulação da consciência nesse domínio, compreendendo sua estrita relação com o nível individual, com os preconceitos, mas também com as resistências que engendram nossas práticas diárias.

O domínio interpessoal, último entre os quatro, é particularmente relevante para esta tese porque ele lança um olhar sobre as práticas diárias da/o “sujeita”/o produzidas em relação; isto é, que são produzidas nas interações individuais atravessadas por vetores sociais. De acordo com Collins (2000, p. 287-288), no que diz respeito ao domínio interpessoal, “tais práticas são sistemáticas, recorrentes e tão familiares que muitas vezes passam despercebidas”, no entanto, “estratégias de resistência neste domínio podem ser tão diversas e numerosas quanto seus indivíduos”83.

82 No original: “[…] the structural, disciplinary, hegemonic, and interpersonal domains. Each domain serves a

particular purpose. The structural domain organizes oppression, whereas the disciplinary domain manages it. The hegemonic domain justifies oppression, and the interpersonal domain influences everyday lived experience and the individual consciousness that ensues."

83 No original, referente aos dois excertos: “Such practices are systematic, recurrent and so familiar that they often

Da forma como Collins (2000) organiza sua teoria, torna-se explícito que sua matriz tem enfoque muito mais no efeito opressivo e repressivo das relações institucionais e sócio- histórico-sociais do que na ideia de produção, como o faz Butler (2013). Um pressuposto que consiste, inclusive, em um dos motivos pelos quais a teorização de Collins alinha-se com os estudos de(s)coloniais, enquanto a de Butler estaria, talvez, mais próxima daqueles autointitulados pós-coloniais. Por meio da matriz heterossexual, Butler (Ibidem) expôs o processo de tornar-se sujeita/o de gênero e sexualidade, evidenciando uma construção que emerge como fonte; como, de fato, matriz. Nessa perspectiva, a autora focaliza sobretudo o processo produtivo da matriz, ou seja, o que ela busca produzir e como ela produz. Collins (2000), por sua vez, ainda remete à ideia de que a matriz sobretudo oprime e reprime, respaldando a formação de um território não apenas anterior à opressão, como por ela restringido; um território que não seria, portanto, produzido e, com isso, favorecendo, em certo sentido, compreensões essencialistas sobre os vetores sociais que, de acordo com sua teoria, seriam oprimidos. De fato, trata-se de uma divergência de pressupostos que, no entanto, e da forma como entendo, não inviabiliza o trabalho articulado entre a teoria performativa de Butler (2013) e a matriz de dominação de Collins (2000). Isso porque Collins oferece o domínio interpessoal como recurso de resistência, permitindo explorar o potencial produtivo da matriz de dominação, por ser um domínio em que o poder é compreendido, ao que parece, como efeito de relações. Assim, de forma bastante divergente dos outros domínios, o teor e o efeito contingencial das práticas a que a autora se refere nesse domínio em especial (o interpessoal) emerge como espaço para operar com a performatividade butleriana e, consequentemente, encontrar formas de resistência e de deslocamento para a emergência do devir-sapatão É esse domínio, pois, que permite colocar em questão a própria produção dos vetores sociais de maneira essencialista, também porque possibilita à Collins contestar noções puras de vítima e opressor, da forma como o faz em sua teoria.

Assim, operar com a matriz de dominação de Collins mostra-se mais produtivo do que operar apenas com a matriz heterossexual de Butler no exercício de análise aqui proposto – ainda que seja necessário, certamente, atentar para os pressupostos que distanciam ambas as teorias. Resta, agora, pensar como o conceito eleito pode operar em relação com a performatividade. Poderia este último conceito contemplar a abrangência necessária à matriz de dominação?

Ao voltar-me sobretudo para o domínio interpessoal da matriz de dominação, mantenho o objetivo de pensar nas relações entre vetores sociais, também elas, em ato. Neste sentido, a performatividade pode ser um conceito estratégico. Se esta assume, justamente, o efeito

174 performativo da língua na produção de gênero, do sexo e da sexualidade, por que não admitiria o mesmo na construção de raça, por exemplo?

Para além de pesquisas já referenciadas que operaram com a performatividade tanto em investigações sobre sexualidade quanto raça, no sentido de corroborar tais investidas no conceito, recupero o exemplo de Lugones (2014) sobre a prevalência do vetor de sexo no corpo das mulheres negras em situação de escravidão. Como explica a autora, o que efetivava a mudança de expectativas sobre o corpo negro em relação ao branco era justamente a produção de um lugar de raça branca em detrimento da raça negra, de modo a comprometer o próprio sentido ontológico do negro, seu status de ser humano. Como efeito, produzia-se o vetor de sexo em detrimento do vetor de gênero no corpo dessas mulheres, destituídas de humanidade, reduzidas a corpo explorado (inclusive sexualmente), animalizadas pelo branco que limpava o sangue negro de suas mãos sob o falso pretexto de subjugar um ser inferior.

Com isto, podemos dizer que, se gênero, raça e sexo estão invariavelmente articulados neste processo, o efeito performativo não pode atuar apenas sobre o gênero. Pelo contrário, ele permite explicitar de que forma o sexo se produziu no lugar do gênero num corpo racializado de determinada forma, desde que o processo de vetorização racial não seja invisibilizado na análise. Racializar-se e ser racializado, no marco teórico-analítico que assumo, não constituem apenas uma característica imutável do corpo, mas são produções performativas na medida em que tais características incidem diretamente sobre o que pode um corpo e como ele pode. Dessa forma, ser mulher, ser lésbica e ser negra, por exemplo, produzem efeito performativo na medida em que se relacionam com uma matriz de dominação que é racializada, generificada e sexualizada, a qual se está invariavelmente destinada a referenciar, ainda que seja para dela apartar.

Na aproximação entre matriz de dominação e performatividade, no entanto, reside ainda um outro problema (no caso, para além daquele ligado à relação entre opressão e dominação e aos essencialismos aí operantes): Butler mostra-se relutante com a noção de dominação, uma vez que ela não deixa margem para agência. A autora aproxima seus esforços teóricos das concepções de regulação, ou mesmo de vigilância – esta última sobretudo derivada dos estudos de Foucault. Considerando esses aspectos, o objetivo que estabeleço aqui é o de trabalhar com o conceito de matriz de dominação também no sentido de desconstruir seus pressupostos de opressão e dominação, buscando mostrar sobretudo sua potência produtiva. Vale destacar que, nesta discussão, “produtivo” se constitui como efeito intrínseco à própria noção de opressão com a qual Collins (2000) opera, na medida em que o que oprime também produz: modelos, modos de existência e, principalmente, modos de resistência. A intenção de utilizar

pressupostos teóricos de Butler (2003) (assim como parte de sua teoria) e a matriz de dominação de Collins (2000) é sobretudo evitar uma possível relação dicotômica entre produção/repressão- opressão-dominação. Neste movimento, reside a possibilidade de explorar os interstícios efetivados entre tais construções discursivas, adotando uma espécie de ambivalência que favorece uma aproximação mais efetiva da complexidade da vida contemporânea.

Por último, antes de adentrar o domínio do desejo, talvez seja necessário evidenciar que, ao operar com a matriz de dominação e, portanto, dar lugar também ao vetor racial, o faço tendo em vista duas personagens mulheres, tomadas por desejos lésbicos e brancas. Para algumas leitoras, talvez, revele-se certa incompreensão do motivo pelo qual exploro aqui também a raça, uma vez que trabalho com pessoas brancas. Explico, então, que, assim como a matriz heterossexual é efeito de uma construção linguística, cultural e histórica (o que evidencia a importância de desconstruir a heterossexualidade), da mesma forma, a branquitude não se resume à biologia, mas a um modo de organização social calcado na lógica hierárquica que racializa quaisquer corpos sem passabilidade branca, enquanto eleva a branquitude ao lugar de referente de humano. Nesse sentido, estudar corpos brancos é empreender o esforço de racializá-los e, assim, expor o caráter produzido da própria noção de raça, promovendo sua desconstrução.

Por fim, reitero que o aporte teórico para análise do material empírico não se resume à matriz de dominação de Collins (2000) e à performatividade de Butler (2013). Tais conceitos são dinamizados neste texto no sentido de dar forma ao devir-sapatão, que, por sua vez, se constitui nas personagens a partir de sua relação com o desejo. Retorno, portanto, à teoria de Deleuze, agora não apenas em relação com Guattari, mas também com Parnet, para explorar a possível relação entre estes elementos.