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GÊNERO, SEXUALIDADE E PODER: O QUE PODE A PERFORMATIVIDADE?

Mark: Posso... te fazer uma pergunta? Jenny: Sim. Mark: Quer um cigarro? Jenny: Sim. Mark: Esta não era a pergunta. Mark: Estas garotas [as garotas que estão na piscina, divertindo-se], elas são todas

gays, certo?

Jenny: Sim... basicamente. Mark: E você? Jenny: O que tem eu? Mark: Você é gay? Jenny: Eu não sei, o que você acha? Mark: [Fita Jenny por alguns segundos, em silêncio] Se eu te visse em um bar, assumiria que você é heterossexual Jenny: Hmm... [em tom de desaprovação] Mark: Mas isso não significa nada, certo? Jenny: Não, não significa. Mark: Nunca se sabe nos dias de hoje. Jenny: Não, não se sabe. Exceto que você sabia sobre elas. Mark: É verdade. Jenny: E então, o que você acha que é? Mark: Eu não sei, parece ter a ver com a atitude delas... Não que elas sejam masculinas ou algo do tipo - até porque algumas delas são bem femininas... [faz uma pausa e olha para a

piscina]. Elas têm esses cortes de cabelo. Esses cortes de cabelo muito legais... [Jenny ri, em tom irônico]. Certo, não me entenda mal, obviamente não é apenas o corte, é algo que elas emanam... [faz uma pausa, enquanto Jenny continua sorrindo] Eu vou tentar entender o que é.

Jenny: Bem, me avise quando entender. (The L Word, temporada 2, episódio 4)

The L Word (2004) é provavelmente a série de televisão mais rememorada quando o

tema é a lesbianidade. De fato, o seriado dedicou seis temporadas a narrar a vida cotidiana de um grupo de amigas, lésbicas em sua maioria. Com muitos momentos importantes para a construção dos pressupostos mais amplos que organizam esta pesquisa, há um diálogo em especial – e seus desdobramentos – que permite movimentar as discussões realizadas neste texto. A cena em questão foi apresentada na segunda temporada – mais precisamente, no quarto episódio –, e acontece entre as personagens Jenny Schecter, que está em processo de reconhecer-se como lésbica, e Mark, homem heterossexual e colega de casa de Jenny. Nessa cena, como indica a epígrafe que dá início a esta seção, os dois conversam sobre as mulheres que estão na piscina, sobre sua sexualidade e o quanto elas, as mulheres da piscina, diferenciam- se de Jenny, que, segundo Mark, “parece” heterossexual. Jenny, logo após a conversa com o colega, pede a sua amiga, Shane, que corte o seu cabelo. Sem trocarem palavras, apenas olhares, Shane o faz, enquanto Jenny, por sua vez, chora. A continuidade da cena do corte de cabelo só aconteceria no episódio seguinte, já na abertura, em que a dupla caminha pelas ruas de Los Angeles e uma mulher troca olhares com Jenny, agora de cabelo curto. Trata-se de acontecimento chave para entender algo definitivo que se passa ali: Jenny parece ser agora, finalmente, reconhecida como uma mulher lésbica.

Mas o quê, afinal, tem a ver o corte de cabelo com a sexualidade? Ou, ainda, o quanto ele se distancia ou se aproxima das nuances de e entre feminilidade e masculinidade – ou seja, do gênero? Antes de assumir, de imediato, que tratar-se-ia de mera “confusão” entre gênero e sexualidade – o que também ocorre ali –, é a partir desta que pode ser considerada uma imprecisão conceitual que este texto busca explorar um outro olhar: um olhar que valorize saberes como os das lésbicas de The L Word, ou do próprio Mark, que, justamente por não serem apenas deles (individualmente), constituem sujeitos; um olhar, portanto, que procure produzir a partir das incongruências de gênero e sexualidade, que partem, sim, de discursos com valor de verdade que pretendo questionar, de forma, talvez, mais demorada, atenta para suas produções e possibilidades.

De fato, não há dúvidas de que a discussão sobre os limites entre gênero e sexualidade é uma importantíssima contribuição dos estudos feministas e de gênero, tendo em vista as imprecisões do senso comum que se colocam entre esses dois termos. Evidência disso é a constante confusão que ocorre entre homossexualidades e transgeneridades. Assim, separar a dimensão do gênero daquela da sexualidade possibilita considerar os limites entre suas constituições.

58 Dito isto, a cena entre Jenny e Mark é um exemplo sintomático das amarras que prendem o gênero e a sexualidade, sendo complexo, inclusive para as/os teóricas/os do campo, definir empiricamente onde efetivamente termina um e inicia o outro. Desse modo, pode-se dizer que o que a cena faz é justamente jogar com essas fronteiras, propondo que a sexualidade excede a si mesma, assim como o gênero. É, pois, a partir de tais provocações que o presente texto objetiva desdobrar uma das dimensões teóricas desta pesquisa, tendo como pano de fundo a seguinte pergunta: a partir dos modos de constituição de determinadas personagens mulheres, como é possível tensionar as matrizes de gênero e sexualidade de modo a produzir o que aqui convencionou-se nomear (e conceituar) devir-sapatão? Ao propor isso, portanto, a intenção não é meramente equivaler a sexualidade ao gênero, mas, ao contrário, assumir a mútua dependência entre eles quando se trata de uma lógica normativa, e, assim, expor o quanto o desvio da heterossexualidade pode culminar na desestruturação da própria norma de gênero, e vice-versa – num movimento que se aproxima, cautelosamente20, daquele pensado por teóricas/os como Monique Wittig (1981), Teresa de Lauretis (2005) e Adrienne Rich (2010).

Entendo que dar conta desta questão envolve assumir o gênero em uma dimensão que difere substancialmente daquela concebida pelas referidas autoras. E é justamente em função disso que o conceito de performatividade compõe este texto: é ele que, tomado a partir de Butler (2013), possibilita uma discussão a respeito da dimensão pragmática do gênero e, como buscarei mostrar, também da sexualidade; ele se compõe, portanto, como ferramenta teórica importante para a investigação das séries propostas nesta pesquisa.

A teorização butleriana possui grande tradição sobretudo nos estudos feministas e de gênero e sexualidade pós-estruturalistas. No entanto, e talvez por isso, Butler sempre foi uma autora bastante criticada. Ganhadora, inclusive, de um concurso promovido pelo periódico acadêmico Philosophy and Literature, em 1998, que elege os piores excertos retirados de livros e artigos (The Guardian, s.a.), Butler recebeu e recebe críticas também a respeito dos limites e possibilidades dos conceitos que construiu. Trata-se de críticas que advêm de diversas correntes feministas, como as de Julieta Paredes (2014), poeta e feminista descolonial boliviana, por exemplo, a partir do que convencionou nomear de feminismo comunitário, e mesmo de autoras/es que respaldam boa parte de seu trabalho nos escritos de Butler, como demonstrou

20 A cautela reside sobre os exercícios teóricos realizados na seção anterior, em que também me afastei

investigação realizada por Colling, Arruda e Nonato (2019), ao resgatar alguns tensionamentos e incongruências atribuídas à performatividade butleriana.

Seu conceito de performatividade de gênero é, talvez, o que mais recebe atenção no âmbito dos estudos de gênero e sexualidade, seja porque se constitui como uma importante ferramenta teórico-metodológica, seja porque é foco de severas críticas e importantes questionamentos. Enquanto conceito de grande destaque para estes estudos, entendo ser necessário o retorno a alguns pontos fundamentais da performatividade. Por uma questão de proximidade e até certa complementaridade entre suas críticas, sobretudo pelo apelo materialista que elas evocam, ainda que a partir de áreas de estudo distintas, foram eleitos uma autora e um autor para a discussão: Michel Kail, (2017), especialista no trabalho de Simone de Beauvoir e que parte observações realizadas pela psicanalista socialista britânica Juliet Mitchell ao trabalho de Butler, e Isabel Magalhães (2010), portuguesa especialista em literatura e feminismo.

Tal como dinamiza o diálogo entre Mark e Jenny, os limites entre gênero e sexualidade são difusos, na medida em que desviar de um convoca, em alguma medida, também ao desvio do outro21. Consequentemente, resumir as análises apenas ao nível do gênero ou da sexualidade pode limitar as possibilidades de problematizar, inclusive, a própria sexualidade. É nesse sentido que, além de abordar as críticas já realizadas ao conceito, procuro, também, discutir os limites da performatividade enquanto ferramenta analítica voltada sobretudo para o gênero.

Como efeito, o presente texto foi assim organizado: primeiro, as concepções butlerianas de gênero e de performatividade são brevemente apresentadas, e, a partir delas, realizo algumas discussões a respeito das potencialidades de se trabalhar com o conceito de performatividade também como dinamizador analítico da sexualidade. Posteriormente, são apresentadas algumas críticas a ambas as concepções – de gênero e performatividade –, a partir dos autores citados. Por último, na terceira parte, retorno à teoria de Butler, de forma a encontrar possibilidades resposta às críticas apresentadas.

21 Um exemplo da relação de manutenção entre gênero e sexualidade pode ser encontrada no vídeo de uma

youtuber lésbica chamada Thaís Ribeiro, em que ela discute o fato de ser percebida como heterossexual por ter uma expressão de gênero feminizada. Thaís afirma que tal tratamento extrapola as relações com pessoas que não sabem de sua sexualidade lésbica, pois, com frequência, assinantes de seu canal – no qual já afirmou várias vezes ser lésbica – questionam sua sexualidade, sugerindo que ela seja, na verdade, bissexual ou mesmo heterossexual. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ndKMsIRffco Acesso em: 03/11/2017

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