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Reterritorialização para a Trivialização: Enterre suas LBs

De fato, é psicologicamente exaustivo e traumatizante apegar-se a personagens lésbicas e vê-las morrer(Deshler, 2017, p. 43).

Por já ter sido tema de, pelo menos, uma pesquisa brasileira (Almeida, 2018) e uma estadunidense (Deshler, 2017), o tropo Bury Your Gays – aqui também referenciado, em uma tradução minha livre e adaptada52, como Enterre suas LBs – será a primeira regularidade serial a ser abordada. Interessadas nesse fenômeno, assim cunhado desde 2010 pelo site

TVTropes.com (Ibidem), ambas as pesquisadoras se dedicaram a mostrar como tem ocorrido

especialmente a morte de mulheres queerem séries, a ponto de se tornar uma constante nas narrativas.

De fato, personagens morrem. No entanto, a morte de mulheres não heterossexuais nas séries é caracterizada por três aspectos que a tornam mais do que uma simples morte. O primeiro diz respeito à quantidade: 20853, de acordo com Riese, do site Autostraddle54, que vem atualizando a lista desde 2016. Tal número torna-se significativo quando comparado com o banco de dados do site LGBT Fans Deserve Better, dedicado a contabilizar o número total de

52 A substituição de gay por LGBT se deu por entender que o primeiro não abarca as nuances sexualidade feminina

em português, como já referido.

53 Foram contabilizadas personagens de quaisquer programas televisivos.

54 Link para a matéria: https://www.autostraddle.com/all-65-dead-lesbian-and-bisexual-characters-on-tv-and-

personagens lésbicas e bissexuais em programas televisivos: 613 (391 lésbicas e 222 bissexuais). Ou seja, pelo menos 33% das personagens tiveram um final trágico.

O segundo aspecto tem a ver com o histórico da construção de personagens LGBTs. Em 1976, Julie, da série Executive Suite (1976-1977), vem a ser a primeira personagem não heterossexual a ser morta em um seriado, e o evento ocorre instantes após seu interesse amoroso descobrir sua sexualidade (Riese, 2016). Antes de Julie, algumas personagens aparecem principalmente em seriados médicos ou sobre saúde mental e, ainda que não tenham sido mortas, suas preferências sexuais são tratadas como doenças e distúrbios (Almeida, 2018). Nas telenovelas, narrativa em certo sentido próxima das séries e muito importante para o Brasil, verifiquei que, apesar da inserção de lésbicas remontar a 1988, com a novela Vale Tudo, somente em 2003, em Mulheres Apaixonadas, as duas mulheres que compõem o casal lésbico chegam ao final da trama vivas (Marques, 2003). O caso de Julie e dos casais lésbicos de telenovelas brasileiras, no entanto, é ainda mais significativo historicamente quando o olhar sobre personagens LGBTs é ampliado para outras narrativas.

Dos anos 1930 até o ano 1968, o código Hays, responsável por regular e censurar o conteúdo veiculado no cinema estadunidense, proibia a inserção explícita de personagens homossexuais no cinema. Alguns filmes, como Queen Christina (1933), Suddenly Last Summer

(1958) e The Children’s Hour (1961), que abordavam relações ou personagens homossexuais

de forma talvez menos implícita dedicaram um final, no mínimo, duvidoso à/ao personagem. Destaco, sobretudo, os dois últimos, em que ambos (um homem no primeiro e uma mulher no segundo) morrem.

No Brasil, Naiade Bianchi (2017) evidencia que, nas décadas iniciais do cinema, estendendo-se até o final da década de 80, os poucos filmes encontrados reservaram lugar punitivo à mulher que desvia da heterossexualidade, com destaque para o filme Soninha Toda

Pura (1971), em que a protagonista é estuprada por seu padrasto logo após beijar outra mulher.

O filme termina com Soninha desmaiada (ou morta, não se sabe ao certo) na praia.

Anterior ao cinema, a literatura é um dos lugares onde os relacionamentos entre mulheres encontraram um pouco mais de liberdade, quando comparada com as décadas iniciais do cinema. No entanto, os finais trágicos também aqui fazem-se presentes. The Well Of

Loneliness (1928), considerado o primeiro romance inglês a discutir a homossexualidade,

também reserva a morte à personagem principal (Deshler, 2017). Em 1872, no arsenal literário que tangenciava o tema da homossexualidade, há Carmilla, de Sheridan Le Fanu, com uma personagem vampira, vilã e lésbica, que também morre ao final. Em um contexto escasso de

120 literatura sobre mulheres que amam mulheres, tais histórias acabam por dar início a uma regularidade ficcional.

A respeito da literatura brasileira, Cassandra Rios foi uma das pioneiras a escrever sobre romance e mulheres de sexualidade não heterossexual, tendo seu primeiro livro publicado em 1948. Neste, Lyeth, personagem principal, suicida-se ao final. Mais de vinte anos depois, em

Copacabana Posto 6 – A Madrasta (1969), o mesmo final trágico é destinado agora ao casal de

mulheres.55

As citações a filmes, novelas e livros específicos são valorizadas aqui por se relacionarem a um tópico que historicamente teve espaço bastante limitado nesses formatos narrativos, sobretudo no passado. Como efeito, a existência de um ou dois livros, filmes e novelas que destinaram a morte à personagem não heterossexual constitui parte importante de uma tradição que se forma nestas narrativas, bastante escassas, em conjunto com as séries televisivas. Tal resgate também permite identificar, quando comparado com o atual momento das séries televisivas, a presença de uma tradição que atravessa barreiras temporais. Ainda que os números contabilizados por Riese (2016) compreendam séries das mais diversas décadas, na atualidade, sobretudo no ano de 2016, as estatísticas permanecem praticamente as mesmas: 27 (Deshler, 2017) de um total de 92 (GLAAD, 2017), ou seja, quase 30%.

A recorrência histórica e atual da morte de personagens mulheres não heterossexuais, seja no Brasil, seja em nível internacional, leva ao terceiro aspecto deste bloco de

Reterritorialização para a Trivialização, o mais subjetivo, uma vez que concerne à forma como

essas personagens têm sido eliminadas. O Queerbating constitui uma das fórmulas de destaque e posterior apagamento da personagem não heterossexual. Esse termo sugere o despertar de produtoras/es, roteiristas e diretoras/es para um nicho bastante ativo, sobretudo online, e muito consumista de narrativas ficcionais: o público LGBT, e apresenta três formatos. Primeiramente, por meio do “episódio gay” (Almeida, 2018, p. 14), que se utiliza da tensão romântico-sexual entre duas personagens (provavelmente mulheres) e de algum envolvimento mais efetivo, como um beijo, sem a intenção de desenvolver a história. Há também as personagens que permanecem apenas na tensão sexual, sem necessariamente consumirem o ato ou sem assumirem uma sexualidade não heterossexual (Deshler, 2017). Séries como Xena, A Princesa

Guerreira, Person Of Interest (2011), utilizaram-se desses subtexto - ainda que seja importante

destacar que em Xena havia uma forte censura que impossibilitava formas mais explícitas de

55 Autora muito criticada por reforçar um arquétipo de lesbianidade, algo comum na maior parte das literaturas

homossexuais da época. É esta concepção que leva, na década de 1990, ao lançamento do selo GLS, dedicado a “melhorar” a imagem das/os LGBs nos romances.

demonstração, que ocorrem apenas ao final da série, já em 2001. O terceiro formato foi identificado por usuárias/os online como “Neo Queerbating” (Deshler, 2017), e compreende a extensa divulgação da presença de uma personagem ou de um casal queer em uma narrativa para, posteriormente, marginalizar tal/tais personagem/ns em prol de outras/os heterossexuais. O Queerbating, portanto, consiste na apropriação de personagens e/ou tensões não heterossexuais visando à adesão de um grupo que consome em peso essas narrativas, sobretudo devido à escassez de variedade.

Dentro do Queerbaiting, a morte torna-se um dos recursos de apagamento da personagem LB. Ainda que Almeida (2018) e Deshler (2017) tenham realizado investigações mais extensas desse fenômeno, destaco um modo recorrente de morte dessas personagens, devido aos sentidos que pode fazer emergir: o assassinato (Almeida, 2018). No passado, em que tais sexualidades eram equiparadas a doenças e distúrbios, o suicídio emergia como a forma mais patologizante de finalização. No presente, no entanto, o assassinato tem constituído uma fórmula recorrente, fazendo emergir outro sentido, ainda que igualmente problemático. A morte de duas personagens em séries bastante similares agrega aspectos importantes desta fórmula, possibilitando uma discussão profunda sobre os sentidos que o assassinato pode carregar em tais narrativas: Tara, em Buffy The Vampire Slayer e Lexa em The 100.

A primeira, Tara, é namorada de Willow, personagem permanente na série. Tara é morta na sexta temporada, episódio 19 de 2002, por uma bala perdida que visava atingir Buffy, e sua morte ocorre em frente à Willow. Na cena, as duas encontram-se no quarto, conversando, logo após a primeira noite de sexo, que aqui é parcialmente filmada, portanto, em nada subentendida. Elas haviam voltado a se relacionar após um término recente; Tara estava com Willow desde a quarta temporada, mas apenas nesse episódio ambas foram tratadas de forma equivalente a outros casais heterossexuais da série, no sentido de expressar um relacionamento sexual explicitamente.

Mais de dez anos depois, em 2016, é a vez de Lexa morrer, agora no sétimo episódio da terceira temporada de outra série, The 100. A personagem também morre com um tiro que não é dirigido a ela, mas à Clarke, mulher com quem se envolve na série. É importante destacar que, assim como Tara com Willow, Lexa não estava tentando salvar Clarke: apenas o atirador erra o tiro e a acerta. Menos de um minuto antes dessa cena, as duas personagens entendem-se pela primeira vez e acabam transando. Como observa Deshler (2017), essa é provavelmente a primeira vez que o público vê Lexa esboçar felicidade.

A semelhança entre as duas cenas é indiscutível. Cada aspecto parece reproduzido propositadamente: a morte logo após um momento de felicidade relacionado ao casal – nos

122 casos aqui explorados, o sexo –, a parceira sendo testemunha ocular da morte da outra – ato recorrente em mais de 23% das mortes analisadas por Almeida (2018), dado que solidifica a recorrência de, pelo menos, parte desta fórmula –, a morte “por acidente”, que sequer possibilita à personagem um ato heroico ou uma espécie de dignidade que pode emergir da morte que ocorre em outras condições. E as semelhanças são mais intensas considerando-se que ambos são casais extremamente poderosos: Tara e Willow são bruxas (Willow inclusive prova ser mais poderosa que a personagem principal, Buffy) e Lexa e Clarke são duas líderes de clãs do universo narrativo e possuem habilidades de luta e sobrevivência.

Ainda dentre as semelhanças, outro aspecto merece destaque: o momento de felicidade que antecede a supressão da vida, geralmente relacionado a um ato mais íntimo com aquela que se ama. Como explica Rogério Tomaz (2011) ao analisar o homoerotismo na literatura de Nelson Rodrigues, o sexo parece emergir como algo destrutivo para essas personagens, causando recorrentemente sua morte. Aqui, de modo semelhante, o sexo precede a morte. No entanto, mais do que o ato sexual, o que parece ser imperativo para a o final trágico é o momento anterior de intensa felicidade. The Walking Dead, apenas semanas após a morte de Lexa, realiza evento parecido com Denise (Deshler, 2017). Ainda que sua morte não ocorra logo após o ato sexual, ela se dá instantes após Denise assumir seu interesse romântico em Tara, outra personagem da trama. Esse é apenas mais um exemplo, dentre tantos outros possíveis de serem citados aqui. O que é relevante destacar nessa discussão, sobretudo, não é exatamente a quantidade de vezes que determinada fórmula se repetiu ou se repete, mas sim os sentidos que podem fazer emergir de, pelo menos, duas séries bastante aclamadas e reconhecidas pelo público fã de séries56, sobretudo aquele que compõe a sigla LGBT+.

A recorrência tão frequente do clichê Bury Your Gays, acompanhada da repetição de modos específicos de morte, produz sentidos e sustenta discursos que constituem as possibilidades e limites da existência de mulheres não heterossexuais. Os pontos em comum compartilhados por essas mortes permitem a identificação de um efeito performativo que produz a interrupção da vida – e, consequentemente, da constituição de um casal – como forma de punição, sobretudo por suceder um momento romântico e íntimo de felicidade da personagem.

56 De acordo com o site Wikipedia, Buffy esteve entre as séries mais assistidas nos Estados Unidos do canal WB,

chegando a uma média de 4,6 milhões de espectadoras/es. No Brasil, foi a série de TV a cabo mais assistida em sua quinta temporada.Quando foi ao ar na Rede Globo, atingiu mais de 20 pontos de audiência. The 100 chegou a ser a série mais assistida na emissora The CW, atingindo quase 3 milhões de espectadores. Não há dados sobre sua recepção no Brasil.

Almeida (2018), em sua leitura dos efeitos deste clichê, assemelha o ato de matar mulheres não heterossexuais a uma espécie de estupro corretivo simbólico, uma vez que, assim como o ato referenciado, visa apagar a existência não heterossexual feminina por meio da reafirmação de uma heterossexualidade redentora, porque permanece, simbolicamente e literalmente, viva. Ainda que a equivalência seja questionável, uma vez que morte e estupro são, de fato, fenômenos radicalmente distintos e que produzem sentidos também distintos, destaco alguns aspectos que aproximam os dois atos, no caso do apagamento de mulheres não heterossexuais: no limite, os dois buscam erradicar a existência violentada. Deshler (2017), por sua vez, entende que a ligação estrita entre morte e personagens queer se dá sobretudo porque se entende tal expressão de vida como errática. Por meio da matriz heterossexual, essa que sustenta apenas uma forma de expressão de sexualidade como a ideal ou normal, expressões não heterossexuais oferecem um risco à centralidade de um modelo (Ibidem). Ainda que a busca seja por uma oferta baseada na pluralidade de existências, a própria noção de pluralidade é inviabilizada na medida em que tal matriz é estruturada pela constituição de uma existência em detrimento de outras. É por isso que uma expressão não heterossexual desperta uma espécie de temor da extinção de um arsenal de valores tradicionais.

Como efeito, a recorrência das mortes também efetua performativamente uma espécie de familiaridade, em que o público acaba até mesmo por esperar pela morte de personagens. O efeito de regularidade excede as telas, ou o ficcional, produzindo reações como a que compõe a epígrafe desta primeira reterritorialização: dor e sofrimento em um público que anseia por contato com modos de existência LGBT+ que escapem dos efeitos intensos e, por vezes, letais dos modos hegemônicos de produzir a diferença.

Assim, a recorrência “Enterre Suas LBs” emerge como a primeira reterritorialização efeito do olhar cisgênero e heterossexual na produção de sexualidades não heterossexuais em personagens mulheres; um movimento de trivialização, na medida em que produz a presença não heterossexual como passageira, trivial e passível de ser extinguida a qualquer momento. O segundo movimento a ser explorado é a construção dessas sexualidades (não heterossexuais) por meio de uma figura masculina, que aqui é identificada como uma reterritorialização para

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Reterritorialização para a Estabilização da Matriz Heterossexual: a