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Ao final deste texto talvez uma dúvida, ainda, persista: por que não me apropriei do devir-mulher ou, pelo menos, não assumi algumas das considerações de Deleuze e Guattari específicas para esse devir, como o fiz sobre o devir-animal, por exemplo? Primeiramente, destaco que Deleuze e Guattari (1997, p. 71) promoveram em seus escritos o distanciamento entre sexualidade e o próprio devir-mulher ao definirem que “A sexualidade coloca em jogo devires conjugados demasiadamente diversos que são como n sexos, toda uma máquina de guerra pela qual o amor passa”. Dessa forma, mesmo que as relações assumidas aqui perpassem a questão de gênero e, nesse ponto, o devir-mulher possa ser produtivo, as análises voltam-se principalmente para a questão da sexualidade em relação com o gênero – o que torna o devir- mulher insuficiente para dar conta das discussões implicadas nesta pesquisa.

Em segundo lugar, é, justamente, pelo modo como a teoria feminista vem se apropriando das teorias de Deleuze e Guattari que julguei ser apropriado afastar-me do devir-mulher. Autoras como Luciana Parisi (2004) utilizam tais teorias para resgatar uma suposta “volta ao corpo” aí implicada, porém num outro sentido daquele sugerido pelo materialismo, que Parisi nomeia materialismo abstrato. Nas palavras de Parisi (2004, p. 29),

O materialismo abstrato implica as redes simbióticas entre os corpos mais díspares onde camadas singulares de composição constituem uma essência mutante de um corpo. Ao contrário do biologismo, do organicismo ou do existencialismo, esta essência está ligada à dinâmica distanciada do equilíbrio da matéria: o surgimento de mutações imprevisíveis que geram a auto- montagem de diversos corpos (tradução minha)19.

Certamente, o intuito aqui não é fazer uma análise aprofundada das teorias da autora, mas sim mostrar sua incompatibilidade com os pressupostos que adotei nesta pesquisa. Ao que parece, mesmo que ressignificada, Parisi coloca em jogo uma essência que, por sua vez, emerge como parte primária de um corpo. Ainda que esta essência remeta diretamente à disposição à mutabilidade, as noções de auto-montagem e mesmo de mutações imprevisíveis talvez deixem inatingíveis, da forma como as entendo, os campos de constituição destes processos, possibilitando o deslocamento para uma ordem naturalista. Em outras palavras, enquanto essência de um corpo, a imprevisibilidade, ainda que estabeleça uma relação paradoxal potencialmente produtiva com a própria noção de essência, parece evocar também uma construção de “sujeita” capaz de mínima ou de nenhuma intervenção em mutações do si, ou do

19 Do original: “Abstract materialism entails the symbiotic networks between the most disparate bodies where

singular layers of composition constitute a mutating essence of a body. As opposed to biologism, organicism or existentialism, this essence is linked to the far-from-equilibrium dynamics of matter: the emergence of unpredictable mutations generating from the auto-assemblage of diverse bodies”.

54 corpo (para fazer uso restrito dos termos da autora). No mesmo sentido, a cultura, a linguagem, a história parecem não ter lugar neste fenômeno. Os limites entre auto-constituir-se e ser constituído tornam-se, assim, bastante difusos.

Braidotti (2002), outra teórica feminista que se vale das teorizações de Deleuze e Guattari, afasta-se dos autores por recorrer a um feminino molar sob a denúncia de que, em seus trabalhos, ambos condenaram a mulher à inexistência enquanto “sujeitas” (Bensusan et. Al., 2002), utilizando-se do homem como referente universal e, portanto, o único passível de ser sujeito. Trata-se, sem dúvida, de uma crítica importante, porém, como alternativa, a autora propõe um retorno às diferenças sexuais consideradas primárias para servir de ponto de partida para a problematização sobre o processo de hierarquização dos sexos. Aparentemente, para Braidotti, devir-mulher equivale à mulher. No entanto, Deleuze e Guattari (1997) reforçam, como foi visto, que os elementos que qualificam o conceito não tem relação com identidade – ainda que importe questionar se o devir-mulher, da forma como foi concebido pelos autores, não implicaria, também, em alguns momentos, e de modo paradoxal, essa equivalência, deixando margem para o desdobramento teórico realizado por Braidotti. Ainda assim, o retorno a características sexuais proposto pela autora reduz o sexo a uma lógica binária de gênero (Bensusan et. al., 2008), no limite, macho-fêmea. Ou seja, ainda que procure, a partir desses caracteres, propor uma outra compreensão, afastada da lógica hierárquica, a autora acaba mantendo o mesmo ponto de partida, o qual, em sua gênese, ao classificar determinados carácteres biológicos como sexuais, estabelece, aí mesmo, uma relação dicotômica e, portanto, hierárquica.

Com isso, assumo que algumas questões de base para estas autoras, de fato, oferecem elementos importantes para a discussão do devir; no entanto, o diálogo direto com elas não se faz de todo produtivo a partir do que venho propondo aqui, uma vez que nossos pressupostos diferem substancialmente. Importa, sim, a partir delas, encontrar pontos de tensionamento teóricos que permitam levantar eixos de debates caros às discussões mais amplas sobre gênero e sexualidade. Exemplo disso pode ser visto a partir das reflexões de Braidotti (2002) a respeito da molaridade “mulher” e do quanto elas resgatam uma questão ligada à hierarquização inerente à formação de dicotomias, principalmente nas relações de gênero e de sexualidade. Mesmo ao definir relações entre molaridade e molecularidade, maioria e minoria, etc., Deleuze e Guattari permanecem, em certo sentido, reforçando uma lógica dualista e, consequentemente, reforçando também uma relação hierárquica. Entendo, como poderá ser visto na seção seguinte, que justamente o conceito de performatividade, tal como proposto por Butler (2013), pode auxiliar a identificar e, assim, expor tais relações conflituosas no nível teórico; ao mesmo

tempo, e talvez paradoxalmente, são as próprias elaborações de Deleuze e Guattari sobre conceitos como multiplicidade e des/reterritorialização que podem também potencializar a dissolução de dicotomias. Claro que desses arranjos, outras questões fundamentais parecem ganhar evidência – muitas delas de fundo, tais como: é possível trabalhar fora de uma lógica hierarquizante? Não seria ela parte integrante da norma, com a qual estamos destinadas/os a viver em relação? Como provocam Hilan Bensusan et. Al. (2008, p. 45-46), “O desafio da diferença sexual [...] é o desafio de encontrar o pensamento que possa ser dado como tal fora do pensamento falogocêntrico”.

Certamente, ainda não há respostas precisas para estas questões. Espera-se, contudo, que o foco nos processos, nas relações em ato que ambas as teorizações que servirão de base para as análises priorizam, possibilite encará-las de outra forma, aqui mesmo, nesta pesquisa. A ambição não é a de respondê-las, mas mantê-las próximas de minhas discussões, como uma espécie de aviso de cautela. Assumir os limites, trabalhar com e contra eles pode ser uma ambivalência produtiva. Perigosa, mas produtiva. Ousemos.

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GÊNERO, SEXUALIDADE E PODER: O QUE