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AUDIOVISUALIDADES CONTEMPORÂNEAS: MUTAÇÕES ENTRE A FORMA DANÇA-CINEMA E A VIDEODANÇA AUTORREFERENTE

É melhor não fazer nada que

COMO PODEM QUERER DISSOCIAR ISSO DE MIM?

3.2 AUDIOVISUALIDADES CONTEMPORÂNEAS: MUTAÇÕES ENTRE A FORMA DANÇA-CINEMA E A VIDEODANÇA AUTORREFERENTE

Os processos de criação em videodança autorreferente disponíveis na web 2.0 manifestam-se na atualidade por condicionantes técnicas e culturais do meio digital que a videodança enquanto linguagem híbrida não alcançou durante seu desenvolvimento analógico em boa parte do século XX. Em que medida esse cenário pode ser um estímulo das atuais condições de produção das tecnologias digitais, tão imersas na cultura da publicidade e do entretenimento, ou apenas uma estratégia pouco debatida dentro das práticas artísticas em que as imagens em movimento e o corpo dançante se hibridizam?

A pesquisadora Paula Sibilia, por exemplo, ao debater a espetacularização da intimidade na internet a partir de uma crítica aberta às “estéticas de si”, observa a autorreferência do cenário virtual a partir de suas ambiguidades, numa análise cautelosa sobre as relações de poder que acompanham o desenvolvimento tecnológico do ciberespaço. A organização da experiência virtual seria, portanto, baseada numa relação corpo-câmera que tem por finalidade gerar imagens para consumo, aproximando a cultura digital de uma complexa cadeia de entretenimento em que a exibição da vida privada se justificaria por meio do consenso da maioria dos internautas: as selfs e uma narcísica conduta de expor a si mesmo em troca de seguidores ou público. A espera de fãs que elegem suas celebridades em idolatrias fugazes.

A necessidade de registrar o cotidiano e indexá-lo numa rede mundial de computadores muito se aproxima das expectativas de uma sociedade do espetáculo, que não precisaria mais convencer o consumidor de suas mercadorias, pois este e sua vida privada acabariam por se tornar mais uma no vasto catálogo. Se a autorreferência nas audiovisualidades digitais está relacionada e, muitas vezes, se conecta à demanda de consumo gerida pela indústria cultural, em que medida poderíamos falar sobre uma experiência estética de resistência, que não tem por objetivo servir a cadeia hegemônica de entretenimento? Como a reprodutibilidade técnica,

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reforçada pela globalização do consumo no ciberespaço, afetaria a expressão fílmica da videodança enquanto experimento de um corpo dançante na internet?

Se pensarmos como as experiências online da autoficção na literatura, ou do cinema autorreferente, estão situadas enquanto estratégias contemporâneas que questionam o sistema de representação ficcional e, ao mesmo tempo, são parte de uma cultura da espetacularização da vida privada nas redes, é possível problematizar as ambiguidades que também se estendem aos experimentos autorreferentes em videodança no ciberespaço. Sibilia aponta, de forma crítica, como a interface corpo-câmera modificou, a partir das imagens em movimento (em todos os seus avanços tecnológicos), as expectativas sobre a vida privada enquanto a representação de um filme. A sociedade do espetáculo teria se tornado tão atraente durante todo o século XX que qualquer um que deseje transformar seu cotidiano em um diário aberto pode fazê-lo, na atualidade, por meio das tecnologias digitais portáteis.

Entretanto, não se trata de meras “evoluções” ou adaptações práticas aos meios tecnológicos que apareceram nos últimos anos. Se observarmos todas essas mudanças sob uma nova luz, o que está acontecendo ganha o perfil de uma verdadeira mutação: em nosso espetacularizado século XXI, o jogo dos espelhos complicou-se inexoravelmente. Em vez de reconhecer na ficção da tela – ou da folha impressa – um reflexo da nossa vida real, cada vez mais avaliamos a própria vida “segundo o grau em que ela satisfaz as expectativas narrativas criadas pelo cinema”, como insinua Neal Gabler, em seu provocador estudo sobre os avanços do entretenimento e da lógica do espetáculo. Valorizamos a própria vida em função da sua capacidade de se tornar, de fato, um verdadeiro filme. (SIBILIA, 2008: 49).

Se a experiência fílmica produz expectativas na vida social dos indivíduos que consomem a forma cinema, é quase inevitável supor o quanto as imagens em movimento se tornaram um dos principais recursos estéticos da vida virtual. A autorreferência nas audiovisualidades se apropriam dessa expectativa fílmica sobre a vida real para constituir-se enquanto uma ambiguidade de mise-en-scène, que explora os acontecimentos da esfera privada e as ficções de uma exposição exagerada de si para câmeras e telas. Torna-se, então, uma tarefa complexa identificar quais os limites da ficcionalização de vidas privadas no contexto das imagens virtuais. Observar como o cinema autorreferente abre possibilidades criativas (de ruptura com o cinema de representação) à linguagem da videodança está, em parte, numa análise crítica das tecnologias digitais e suas interfaces com os dispositivos cinematográficos (considerando os processos de subjetivação inerentes à relação corpo-câmera na atualidade e à espetacularização da internet) a partir das evidências históricas que demonstram mutações nos processos criativos em videodança, bem como as consequências de sua proximidade com o ciberespaço da web. Interessa pensar, sobretudo, como a autorreferência na internet e nas

imagens em movimento pode contribuir aos experimentos em videodança, sem que isto recaia sobre as expectativas cênicas provenientes de uma cultura do espetáculo ou entretenimento.

Quando a pesquisadora Eurídice Figueiredo descreve a experiência da extimidade (2011) como um dos recursos da autoficção na literatura, essas ambivalências entre espetáculo e vida real se tornam ainda mais evidentes no ambiente da internet. As narrativas do eu, centradas em estéticas que exibem a intimidade do autor, demonstram como o ciberespaço da web estimula recursos ambíguos de narratividade. Se por um lado temos um autor que se utiliza dos dispositivos a fim de criticar a representação da própria vida, do outro não é difícil encontrar personagens interessados em vender sua autoimagem como um espetáculo midiático. Paralelamente à autoficção, conceitos como bioficção (ficcionalização da vida) e ciberficção (biografemas33 disponíveis na Internet) apresentam-se domo estratégias contemporâneas de ficcionalização da existência, tanto no ciberespaço quanto na vida cotidiana (FIGUEIREDO, 2011: 29). Sem o pressuposto de veracidade da autobiografia ou mesmo da total fantasia sobre a vida representada, a ambiguidade do autor na literatura contemporânea traça novas perspectivas de relação com o espectador/leitor, abrindo conjecturas que extrapolam a obra para a experiência de “realidade”. A autoficção, portanto, permite um “retorno do autor, não mais como instância capaz de controlar o dito, mas como referência fundamental para ‘performar’ a própria imagem de si que surge nos textos” (AZEVEDO, 2008: 31).

Caso estendamos essa perspectiva ambígua e performativa ao cinema autorreferente, algumas questões precisam ser problematizadas a partir da própria condição epistemológica das imagens em movimento. Segundo a pesquisadora Juliana Cardoso, a imagem fotográfica é autorreferente per si, quando unifica a realidade a partir de um olhar específico, autoral. Se formos pensar em como a dinâmica contemporânea da autorreferência nas audiovisualidades explora essa condição da imagem, entramos naquilo que, especificamente, vai além das contribuições da autoficção, ainda limitadas ao campo da literatura. A autonomia da imagem em materializar realidades, sem carecer de uma justificativa anterior circunscrita a um sistema linguístico, evoca a imediata exterioridade existente entre os acontecimentos da relação corpo- câmera. A potência do cinema autorreferente está, portanto, nas imagens.

Por outro lado, é preciso questionar o próprio estatuto da imagem autorreferente. Mais do que um cinema autoral, uma certa produção dos anos 1960 para cá parece evidenciar a estratégia lançada pelo cinema direto norte-americano, ainda que também aposte em

33 O biografema é uma estratégia biográfica que se utiliza de uma característica do personagem protagonista, algum detalhe específico para narrar a vida do sujeito. Ao contrário de um retrato mais aprofundado, o biografema oferece a precária fragmentação do indivíduo, numa contínua construção. Disponível em: <https://leiturascontemporaneas.org/2016/10/27/o-que-pode-um-biografema/ > Acesso: 18/02/2018

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uma transformação desses preceitos: a imagem é um agente autorreferente por definição. Não só por sua condição ontológica frente ao real, posta em relevo no pensamento de André Bazin, mas porque toda imagem espelha uma unicidade em si, é um processo de unificação frente ao que denominamos “real”. A imagem é autônoma e não precisa de um sistema linguístico para qualificá-la, pois estaria retirando seus significados de sua exterioridade imediata. Ou seja: pensar como o ato de se autobiografar audiovisualmente pode se constituir de modos diversos, a partir de regimes de imagens diversos pertencentes ora ao cinema moderno, ora ao cinema contemporâneo, faz parte também do objetivo de refletir sobre a própria construção da imagem autorreferente. (FRANCO, 2010: 14)

As estéticas de si no cinema autorreferente se traduziriam pelas variadas formas de inscrever a própria vida às imagens em movimento, constituindo regimes de unificação da realidade organizados por meio dos acontecimentos imediatos ao corpo-câmera e à condição de autoria. Portanto, a figura de um narrador está subposta à condição da imagem e sua exterioridade inata. Na autoficção, esse autor da literatura precisa construir, por meio da evidência de uma extimidade (a exposição de sua intimidade), os princípios de sua realidade como autor-personagem. A performance de si mesmo, então, não se depara com o imediatismo das imagens autorreferentes, mas com um sistema linguístico que exige a exploração de uma ambiguidade mediada entre interior e exterior (vida privada e ficção narrada, por exemplo). Quando analisa essas características do autor da autoficção, Sibilia anuncia alguém que se desenvolve no domínio da internet a partir de um isolamento disfarçado de sociabilidade, no contexto das tecnologias digitais. A pesquisadora relaciona esse sistema de autoria à morte do narrador na sociedade contemporânea, anúncio feito por Walter Benjamin em texto homônimo de 1936. A figura de alguém que contava histórias para grupos de pessoas é então substituída no século XVIII pelo escritor solitário, que novamente se modifica na atualidade, mas por um autor ainda mais distante, apesar do paradoxo de visibilidade e aparência gerado pela exposição de vidas no regime fotográfico de imagens reprodutíveis.

A simulação de uma maior proximidade e de transparência na vida virtual tem se consolidado a partir da multiplicação da narratividade em relatos pessoais, de fotografias publicadas em páginas e redes sociais, bem como de inúmeros vídeos caseiros que, por vezes, se tornam “virais” na internet. Indivíduos do “próximo link”, que se exibem, opinam, contam histórias nem sempre fidedignas, pessoas que fotografam e filmam suas vidas, expondo detalhes privados na internet. Alguém que o tempo inteiro (re)inventa e registra sua autoimagem, consequentemente modificando a representação do corpo e da própria vida segundo os interesses do momento, a fim de reunir espectadores e comentaristas. Observamos no domínio do ciberespaço da web o desenvolvimento de um autor que se apresenta próximo pelos extenuantes estímulos que lança, mesmo que esteja a quilômetros de distância de seu interlocutor, de quem sequer é íntimo. A simulação, contudo, tende a ser priorizada num cenário

como esse e é uma das marcas que Paula Sibilia aponta enquanto características de uma sociedade espetacularizada pela mídia, em detrimento das experiências comunitárias de narratividade (que existiam antes do advento da literatura e da reprodução fotográfica).

Se pensarmos em estratégias como a autoficção, que ainda se organiza em torno de um sistema linguístico para criar um autor ambíguo na literatura contemporânea, especialmente em ambientes como a internet, quais seriam os limites de um cinema autorreferente, cuja exterioridade imediata não enfrenta necessariamente uma narratividade e produz significados ambivalentes a partir das imagens em movimento? Essa experiência fílmica, que produz ambiguidades por sua própria natureza autorreferente, desenvolve-se nas estéticas de si como o principal modus operandi no ciberespaço da web. De que maneira, então, um cinema do eu, que se torna uma importante estratégia audiovisual na internet, afetaria a linguagem da videodança produzida para esse domínio? Quais seriam as reconfigurações do corpo-câmera?

Nossos relatos autobiográficos não copiam mais aqueles romances que se liam com fruição desvelada durante horas a fio. Em vez disso, e cada vez mais, nossas narrativas vitais ganham contornos audiovisuais. Episódios triviais ou demoníacos são adestrados dessa forma; assim, os gestos cotidianos mais insignificantes revelam certo parentesco com as cenas de videoclipes e das publicidades. Ou pelo menos nelas se inspiram, e parece desejável que com elas se assemelhem. Em certas ocasiões, chegam até a se converter nesses pequenos filmes, que são lançados ao mundo nas vitrines do YouTube, do videolog ou de uma webcam (SIBILIA, 2008: 49).

A aproximação entre as experiências autobiográficas34 e as estéticas do vídeo na internet reforça os experimentos de um cinema do eu por meio do que Sibilia chama de “pequenos filmes”. Imagens que exploram o cotidiano, trivialidades da vida privada e suas experiências espaço-temporais. Ao observamos a linguagem da videodança inserida num cenário múltiplo de incessantes estímulos audiovisuais, evidenciam-se as condições estéticas para suas variações autorreferentes. O hibridismo em dança-cinema, em suas especificidades digitais no ciberespaço, se depara com condições técnicas que privilegiam uma relação corpo-câmera menos determinada pela hegemonia narrativa e espetacular do cinema. Se quaisquer pessoas podem filmar corpos em movimento com câmeras em dispositivos portáteis, as restrições estéticas surgidas com o desenvolvimento da linguagem cinematográfica começam a se diluir noutras variações indisciplinares, que escapam ao monopólio cultural europeu/ norte-americano construído por meio de uma historiografia colonial da arte.

A própria videodança já destoava desse cenário, quando surgiu num contexto amador, com dispositivos acessíveis a realizadores sem expressivos financiamentos. O surgimento,

34 Neste caso, o conceito de autorreferência seria mais preciso. Utilizo o adjetivo autobiográfico apenas para dialogar com as colocações de Sibilia em relação aos relatos pessoais publicados na internet e suas futuras derivações em forma de vídeo. A autobiografia suporta o conceito de veracidade, que foi refutado pelas experiências autoficcionais da literatura e suas consequentes reverberações no cinema autorreferente.

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ligado às façanhas do cinema experimental por meio de câmeras de 16 mm (película) e doravante às tecnologias analógicas e suas câmeras portáteis (tecnologia VHS), estava muito distante do meio mais industrializado do cinema, direcionado às grandes plateias. Maya Deren, por exemplo, teve de alugar uma sala de exibição em Manhattan para exibir seus filmes e de amigos realizadores como Stan Brakhage e Jonas Mekas, contemporâneos do New American

Cinema. Nesse período, os filmes experimentais se circunscreviam a filmagens

caseiras/amadoras, cuja relação corpo-câmera era anticonvencional. Os artistas, menos reconhecidos no mercado audiovisual, estavam entregues à experimentação de novos formatos fílmicos, com materiais que não eram utilizados pela indústria de filmes narrativos. A multiplicidade desse cinema experimental foi encoberta pela forma dominante na indústria de filmes, como aponta André Parente em seus ensaios sobre os formalismos e mutações no cinema. No entanto, deixou vestígios para que artistas do pós-guerra adensassem os efeitos dessas imagens experimentais em diferentes configurações da arte contemporânea. Aproxima- se um “cinema eletrônico” das artes visuais, a partir do que chama de “efeito cinema”:

Alguns autores como Raymond Bellour e Anne-Marie Duguet mostraram que o vídeo desempenhou um importante lugar de passagem - “entre-imagem” é este campo conceitual explorado por Bellour - entre o audiovisual e as artes plásticas. De fato, ainda nos anos 60, o vídeo vai intensificar esse processo (iniciado pelo cinema experimental) de deslocamento da imagem-movimento para os territórios da arte. Alguns fenômenos como a multiplicação das telas, o dispositivo do circuito fechado (tempo real), a coexistência entre imagem e objeto, as instalações e a interação com a imagem foram introduzidas e/ou intensificados pelos dispositivos da videoarte. O vídeo, pelo trabalho de seus artistas, mas também pela evolução de seus dispositivos (do circuito fechado à fita de vídeo, do monitor ao projetor, das imagens múltiplas ao processo de espacialização da imagem), introduziu a imagem em movimento nos templos da arte, inaugurando o fenômeno do “cinema de museu”. Desde então, o cinema, como imagem, como estética, mas, sobretudo, como dispositivo (o movimento, a luz, a projeção, a imaterialidade, tempo etc.), faz parte da arte. É o que podemos chamar, com Dubois e muitos outros, de “efeito cinema” na arte contemporânea. (PARENTE, 2009: 38) Esse cinema e seus experimentos eletrônicos em vídeo culminam na videoarte e suas dissonâncias ao cinema de representação. Permite o encontro da imagem-tempo, quando o dispositivo cinematográfico faz emergir uma percepção direta de tempo, questionando a dicotomia entre real e virtual. As imagens virtuais não se opõem à realidade, mas aos modelos de verdade vendidos pelo cinema de representação. “Se a alternativa real-fictício é tão completamente ultrapassada é porque a câmera, em vez de talhar o presente, fictício ou real, liga constantemente a personagem ao antes e ao depois que constituem uma imagem-tempo direta” (DELEUZE, 2005: 185). As imagens diretas do cinema experimental (em que a relação corpo-câmera se manifestava para além da mímesis), na interface com o corpo em movimento, trouxeram uma perspectiva diferente à utilidade que o cinema hegemônico limitou à dança em

suas histórias, cuja narratividade protocolar se reduzia ao conjunto linear representado por início, meio e fim. A videodança, então, exploraria novas opções estéticas que aliavam a experiência coreográfica da dança à montagem fílmica, desmistificando o isolamento de ambas as linguagens num filme híbrido. “Quando os cineastas do pós-guerra inventaram a imagem- tempo, criou-se um curto-circuito de indiscernibilidade entre o real e o virtual. [...] O virtual se opõe não ao real, e sim aos ideais de verdade que são a mais pura ficção.” (PARENTE, 2011: 45). A contemporaneidade dessa experiência fílmica, em que está inserida a videodança e suas variações, surge de uma crise da representação, ou seja, dos modelos que movimentam a lógica de mercado e leem a apreciação estética como consumo. É, sobretudo, uma afronta às ideologias dominantes na história do dispositivo cinematográfico.

[...] não só o cinema possui um dispositivo específico, cujo efeito básico consiste na produção da impressão de realidade, como o dispositivo cinematográfico tem aspectos materiais (aparelhos de base), psicológicos (situação espectatoial) e ideológicos (desejo de ilusão) que contribuem para confirmar essa impressão. Segundo Baudry, esse dispositivo é um aparelho ideológico, cuja origem existe na vontade de dominação burguesa, criada pela imagem perspectivada, por meio da qual se produz uma cegueira ideológica, uma alienação fetichista que remete a essa vontade de dominação (PARENTE, 2011: 40)

Orientados por fazeres que se manifestam críticos à oposição real-virtual e às impressões de realidade vendidas pela indústria em sua vontade de dominação, as investigações de artistas como Maya Deren, no cinema experimental, e, logo depois, Merce Cunninghan, no pioneirismo do uso de tecnologias digitais para a dança (SANTANA, 2006), influenciaram inúmeros artistas e pesquisadores no pós-guerra, ao transfigurar em espacialidades e temporalidades improváveis as experiências do corpo dançante. Situações que seriam praticamente impossíveis de se materializar sem a tecnologia das imagens em movimento se manifestam a partir das transformações na potência do corpo em suas interfaces com a tela. O corpo passa a poder tudo, ganha o impossível, brinca em outras realidades, desafiando as limitações espaço-temporais e gravitacionais. Assim a videodança amplia para cenários e movimentos impensados a relação corpo-câmera nos filmes.

Em investigação específica sobre o desenvolvimento histórico do hibridismo em dança- cinema e, mais especificamente, o da videodança, a pesquisadora Luciana Ponso (2013) nomeia essas situações impensadas de “dançar o impossível”, condição originada pelas tecnologias dos dispositivos cinematográficos e das intervenções sobre a imagem no processo de edição. Maya Deren, por exemplo, pensava seus filmes a partir dessas transfigurações impossíveis da imagem. “A montagem de um filme cria a relação sequencial que proporciona um sentido novo ou particular para as imagens de acordo com sua unção; ela estabelece um contexto, uma forma

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que as transfigura sem distorcer seu aspecto, diminuir sua realidade e autoridade,” (DEREN, 2012: 145). O impossível da dança seria surge no filme como experiência da interface com a câmera e a partir das intervenções do realizador no processo criativo, derivando diferentes imagens do corpo em movimento daquelas captadas durante a filmagem.

Dançar o impossível é uma expressão usada por Lisa Kraus (2005) para designar o que raramente é possível ser visto no palco: coreógrafos, cineastas e artistas de mídia