• Nenhum resultado encontrado

TRÂNSITOS AMADORES NO HIBRIDISMO: INDISCIPLINA E TENSÕES EPISTEMOLÓGICAS

netnografia escrita performativa

2. ALOKA DAS AMÉRICAS: O ARTISTA-PESQUISADOR E OS PROCESSOS DE CRIAÇÃO EM DANÇA-CINEMA

2.1 TRÂNSITOS AMADORES NO HIBRIDISMO: INDISCIPLINA E TENSÕES EPISTEMOLÓGICAS

Aloka das Américas surge da experiência indisciplinada de corpo dançante a partir de

experimentos com dispositivos cinematográficos, especialmente câmeras digitais portáteis ou amadoras. Antes mesmo desses trânsitos híbridos, dançar não tinha relação com a formação continuada dos espaços disciplinares (as técnicas de dança circunscritas ao processo histórico de institucionalização), pois meu repertório de movimento vinha do contato com videoclipes, imagens fragmentadas da televisão, filmes, obras cênicas e, obviamente de um desejo pelas experimentações com o corpo desde a infância. As aproximações com a ideia de improvisação na juventude se intensificam com minha participação contínua em festas. A vida de clubber 15 levou-me a dançar em inúmeros estabelecimentos e ruas do Brasil, em ocasiões onde a experiência de um corpo dançante culminava na improvisação com a música, a arquitetura e a disposição espacial urbana. As festas, então, evidenciavam diferentes dinâmicas anárquicas para o corpo em movimento, que considero muito próximas ao conceito de TAZ, de Hakim Bey. Dançar não tinha limites cênicos ou mesmo musicais. Era apenas uma investigação da catarse que aliava à improvisação meus questionamentos como artista independente.

Com a continuidade desses experimentos enquanto clubber no Rio de Janeiro, onde muitas festas ocupam o espaço público, entre ruas, praças, prédios e galpões abandonados, fui constantemente atualizando minhas performances e me distanciando das expectativas cênicas para adotar algumas provocações presentes nas investigações em dança contemporânea: a ideia de um pensamento movente que se instaura na improvisação. Falo especialmente dos gestos, compreendidos como dança, em suas crises com a permanência de um senso comum sobre o pensamento coreográfico. Provocações que dispõem a relação pensar-mover num confronto com a reprodução. Concomitantemente a essas investigações, minha participação na graduação em Cinema & Audiovisual da Universidade Federal Fluminense (UFF) me permitiu algumas imersões nas atividades cineclubistas dos estudantes. A partir da exibição de diferentes matrizes estéticas me aproximei do cinema experimental e de seus hibridismos com outras linguagens. Nesse período, percebi que os trânsitos entre dança e cinema, além de repercutirem a dissidência que vivia nas festas noturnas, poderiam expandir meus experimentos em constante desaparição, modificando-os a partir da imagem virtual em suas interferências online/offline.

Assim, a curiosidade pelas experiências estéticas com imagens em movimento também foi imprescindível para revisitar minha relação com a dança. Os experimentos em corpo-câmera

surgiriam, então, das aproximações entre um pensamento em dança contemporânea e os vestígios do “cinema de artista”, mais distante do contexto linear-narrativo de Hollywood. No processo criativo de Aloka, adotei uma dinâmica tão anárquica quanto aquelas existentes nas festas noturnas que frequentava como clubber: qualquer dança, em qualquer lugar. Passei a convidar pessoas próximas para dividir algumas funções com os dispositivos cinematográficos. Conhecidos, amigos e familiares foram inúmeras vezes chamados para manusear as câmeras nas experiências de dança, mesmo que não tivessem qualquer experiência com o cinema. Os vídeos, então, se agrupam sob o regime amador das imagens em movimento, quanto também reúno múltiplas funções na criação e filmo sozinho minha própria dança com a câmera de um celular, por exemplo. Aloka vem dessa configuração não necessariamente planejada; de um amadorismo que busca as provocações híbridas em corpo-câmera no cinema experimental.

Lembro-me da primeira vez que tive contato com Pina Bausch, a partir de seu único filme16, realizado para a TV italiana em 1990. O Lamento da Imperatriz fora exibido no

Cineclube Defumado, organizado por estudantes da UFF ainda em 2014. O filme rendeu vários

debates acerca do processo criativo em Bausch e de sua relação com os corpos dançantes na

mise-en-scène. Apesar da assinatura da coreógrafa na direção, a criação era completamente

coletiva, pessoalizada por cada um de seus bailarinos. Esse primeiro contato com a linguagem do filmedança possibilitou algumas rupturas com os ideais narrativos do cinema hegemônico. Alguns meses depois, uma companheira de atividades cineclubistas chamada Isadora 17, com quem também teci diversos diálogos sobre experimentos em dança, apresentou-me a paradigmática Maya Deren, com o vídeo Meshes of the Afternoon (1943), filmado em 16mm. O cinema experimental realizado pela ucraniana naturalizada nos EUA modificou muitas das expectativas que possuía como realizador, revelando por meio do amadorismo alguns dos processos criativos em dança-cinema que foram precursores daquilo que se consolidou como linguagem da videodança: a relação corpo-câmera. Na década de 1940, Deren era a coreógrafa e diretora de seus filmes, além de ser uma intelectual com várias contribuições ao pensamento do cinema experimental. Seus ensaios sobre as experiências de realização questionavam a indústria hollywoodiana e também se tornaram referência para meus experimentos.

16 Houve um outro filme realizado em parceria com o cineasta Wim Wenders, intitulado Pina (2011), mas a coreógrafa morreu antes que fosse finalizado e sua configuração ficou mais próxima da estética documental. O Lamento da Imperatriz, no entanto, é o único filme dirigido integralmente pela artista, visto que ela o assina tanto como coreógrafa quanto como realizadora.

17 Cineasta com quem troquei experiências em dança-cinema na UFF, Isadora acreditava ter recebido esse nome em homenagem a bailarina Isadora Duncan, uma das precursoras da dança moderna nos EUA. Apesar de tal informação ter sido um equívoco esclarecido logo depois, a curiosidade de tal referência vem quando é essa realizadora brasiliense a responsável por me apresentar o cinema de vanguarda norte-americano, precursor da videodança, e me convidar para jams em contato e improvisação.

56

Foi, então, dessa aproximação cineclubista com cineastas amadores e realizadores em fase de experimentação na UFF que começamos a organizar um grupo de interesse voltado à linguagem da videodança, especialmente a partir de uma perspectiva experimental. Rodas de conversa em que o interesse pelos hibridismos em dança-cinema se tornou comum. Inicialmente começamos a filmar experimentos de forma isolada, para apenas algum tempo depois isso vir a ser compartilhado na internet. Realizadores se juntaram, inclusive, em grupos maiores, gestando processos criativos mais complexos, que aliavam experimentações em dança (de técnicas como o contato e improvisação) e as filmagens amadoras, algumas de cunho documental. Mas foi a partir da nossa incessante motivação em compartilhar filmes/vídeos em grupo, criando uma rede de cineclubismo na web com a plataforma Facebook, que vimos sugir, sem planejamento algum uma rede de contatos virtuais em torno da videodança. A partir disso, inúmeros realizadores independentes começaram a compartilhar suas investigações, encurtando distâncias e criando interlocuções. Foram as iniciativas cineclubistas da UFF, de seus cinéfilos e cineastas amadores, dialógicas às experiências de Maya Deren e Pina Bausch, as responsáveis por aproximar artistas num vasto grupo interessado pela experimentação híbrida da videodança.

O grupo Videodança – experimentações do movimento foi criado em 2015 na plataforma

Facebook e passou a reunir centenas de membros espalhados pelo Brasil. Tive a oportunidade

de participar diretamente da organização do fórum cibernético, com a divulgação de obras de videodança e no convite a novos membros. Na plataforma, compartilhamos tanto obras que se consolidaram com o desenvolvimento histórico do filmedança quanto videoclipes, imagens amadoras e os experimentos mais próximos dos trânsitos entre cinema experimental, cinema de dispositivo e dança contemporânea. O grupo surgiu praticamente no mesmo período em que tiveram início as experimentações do canal Aloka das Américas na plataforma Vimeo. Incialmente, meus vídeos de caráter autorreferente foram veiculados apenas no grupo do

Facebook. Alguns meses depois, comecei a exibi-los noutros espaços, como mostras e festivais

e páginas virtuais. Aloka, então, faz parte de uma comunidade virtual.

Sob o interesse específico no tema, o grupo tornou-se um dos primeiros fóruns nessa rede social a reunir pesquisadores brasileiros e possibilitar debates em português18 (a plataforma já possuía alguns grupos estrangeiros). A intenção era compartilhar experiências pessoais em videodança, bem como referências nacionais e internacionais de artistas dedicados aos trânsitos em dança-cinema. Com a passagem dos anos, o grupo se expandiu para mais de 1.000 membros em 2018. Ao analisar os números, a quantidade ainda é pequena caso se façam comparações ao alcance de grupos dedicados a outros temas ou às plataformas de visualização de vídeos. Mas quanto à forma de distribuir filmes experimentais na tecnologia analógica, o espaço de discussão e exibição adquire uma expansão considerável, ainda mais se forem observados demais grupos dedicados ao tema (que normalmente são ainda menores). Além de colocar artistas em rede e abrir espaço para divulgação do circuito de exibidores e estudiosos, o grupo se dedica à criação de bibliotecas virtuais cuja referência são as criações em videodança.

A partir desse contato virtual em grupo, passei a investigar a integração da experiência em dança-cinema ao ciberespaço. Durante o processo de convidar novos participantes para o grupo, expandindo-o nacionalmente, tive a oportunidade de trocar não apenas informações, mas trabalhar com artistas em projetos comuns, por mais que estivessem a quilômetros de distância. Então, pude entrar em contato com realizadores para que montassem meus vídeos e com produtores, a fim de que distribuírem o trabalho a partir de outras janelas de exibição que não a internet. E, desde 2017, por exemplo, tenho dialogado sobre um projeto comum com artistas de diferentes cidades (Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Curitiba) para a criação de células de videodança a partir de câmeras de celulares. Os integrantes do processo criativo estão produzindo vídeos à distância que foram agenciados pela troca de interesses no grupo organizado em rede social. Nesse sentido, é possível conjecturar que mesmo os limites geográficos já estão borrados para a criação em videodança com as tecnologias digitais. As redes virtuais que se formam em torno das investigações em dança-cinema não precisam se limitar apenas ao compartilhamento de experiências estéticas ou à reprodução de suas formas consolidadas. Artistas que convivem e trocam informações nesses fóruns da web, se desejam experimentar conjuntamente, podem também debater as viabilidades do comum: redes que reconfiguram territórios. O projeto Aloka das Américas se insere nesse contexto atravessado por intervenções que extrapolam também a interface corpo-câmera em dinâmicas cibernéticas.

58

Além da experiência coletiva para debater, exibir e produzir coletivamente experimentos em videodança num grupo online, aprofundei as investigações em dança-cinema a partir do contato com outras iniciativas virtuais, como a da coreógrafa Marina Guzzo em 100

lugares para dançar 19. O trabalho, disponível em sítio na internet e exibido em 2015 como instalação no espaço Oi Futuro, no Rio de Janeiro, durante o Festival Panorama 20, aborda

questões como a própria força política da videodança, quando quaisquer corpos são convidados a dançar na web, ocupando o espaço urbano numa reivindicação pela cultura e em oposição à especulação econômica no mercado artístico. “Com a câmera e o corpo na mão”, o projeto anuncia um grupo de artistas dançando em diferentes cidades brasileiras e provoca alguns questionamentos acerca das tensões políticas no hibridismo dança-cinema (com a câmera e o corpo é possível dançar em qualquer lugar e exibir isso na internet), assim como assinala as limitações do espaço urbano, da vida cotidiana, levantando questões sobre os reduzidos investimentos em arte e cultura no Brasil. Afinal, seriam “cem lugares para dançar” ou “sem lugares para dançar”? A brincadeira fonética do projeto reitera a ambiguidade de seu propósito: não há condições ideais para dançar mas dançamos mesmo assim; uma resistência à dominação.

19 “Trata-se de um estudo de improvisação, no qual a superfície do corpo - feita das roupas, das cores e dos cabelos - contorna a dança que é concebida no instante da sua execução. É do encontro com as pessoas, prédios, muros, barcos, [...] ruínas e sonhos que essa dança desvenda a cidade. [...]

Lugares onde o corpo (des) especula [...] e se dissolve entre a memória do futuro e o risco do passado. Como artistas, encontramos a possibilidade de dar visibilidade à contradição da falta de espaços e possibilidades culturais da cidade, em oposição à pujança econômica e especulativa do mercado.

Talvez porque somos estrangeiros, talvez porque ainda há muito que conhecer, talvez porque a dança tem espaços impensáveis. Vamos atrás deles, com a câmera e o corpo na mão.” Texto descritivo disponível em < http://100lugaresparadancar.org/100-lugares-para-dancar >. Acesso e: 16/02/2018.

20 Festival Internacional de Dança Contemporânea, que acontece anualmente na cidade do Rio de Janeiro. Figura 10

Figura 13

Figura 12 Figura 11

Resiste-se, portanto, à dominação dos corpos no espaço público e sua ética de “normalidade”. As intervenções do projeto 100 lugares para dançar reconfiguram as apropriações da cidade e instalam uma dinâmica cuja interface corpo-câmera corrobora a virulência da dança em seus estudos de improvisação, evidenciando imagens disruptivas, imprevisíveis, que se prolongam para o ciberespaço da web. A amplitude e simplicidade da investigação de Marina Guzzo, que também é artista-pesquisadora e lida com os fluxos e influxos entre o circuito artístico e a academia, trouxe provocações metodológicas ao projeto

Aloka das Américas. Os vídeos curtos, característicos de uma videodança marcada pela

fugacidade do espaço urbano, de seus acontecimentos e sua interface com a internet, influenciaram algumas das minhas incursões no hibridismo dança-cinema. A ideia de uma dança que intervém sobre o espaço urbano e cria dissonâncias à expectativa ordinária do cotidiano, aliada às possíveis trocas com o cinema e a internet, abriram espaço para pensar como um corpo dançante poderia dar materialidade a outras percepções das arquiteturas nas cidades, evidenciando diferentes formas de existência, menos sérias, deterministas, isoladas, consumistas. Na pesquisa de Guzzo, existem elementos cartográficos que mapeiam, a partir dos vídeos, corpos indisciplinados, esquisitos, em itinerâncias que destoam da ordem urbana.

No mesmo período em que estive em contato com esse projeto, também reuni bibliografia para a pesquisa de conclusão de curso, na graduação em Cinema, que se intitulou

Autoficção na narrativa cinematográfica: meio século entre Truffaut e Xavier Dolan, publicada

pela UFF na Revista Rascunho, em 2017. Os textos, relacionados às investigações em autoficção na literatura, aos cinemas autorreferente e autobiográfico e às questões da espetacularização da intimidade na internet, deram início a algumas reflexões sobre as possibilidades de estender o debate da autorreferência nas audiovisualidades contemporâneas à videodança, bem como seus desdobramentos no ciberespaço. Ao passo que estava lendo, assistindo a filmes autobiográficos e autorreferentes, problematizando essas questões do cinema

do eu, que também se relacionam ao cinema de autor, ao cinema de dispositivo e a alguns

movimentos de vanguarda estética (como Nouvelle Vague e Cinema Novo) em suas tensões com a hegemonia hollywoodiana e a forma cinema, desenvolvi alguns experimentos artísticos em dança-cinema que passaram a integrar essa apropriação da imagem autorreferente aos experimentos em corpo-câmera na rua. Na experiência de dançar, filmar e submeter esses vídeos à internet nos processos de criação em Aloka das Américas, interessou-me provocar vínculos entre um cinema experimental cuja realização está implicada nas imagens autorreferentes, pois realizo de forma amadora os filmes em que danço, com as perspectivas de uma dança que assimile a improvisação enquanto base para suas intervenções imprevisíveis no

60

espaço urbano. Estas também estarão replicando ruídos na internet, quando as imagens em movimento se tornam implicações diretas de um pensamento que vem dançando.

Quando os vídeos de Aloka começaram a circular noutros espaços que não internet, suas exibições ocorreram em ambiências cineclubistas que preterem o cinema experimental ao cinema cênico-narrativo. Algumas dessas iniciativas, inclusive, se formalizaram em mostras institucionalizadas, como aconteceu na UFF. O Festival Chorume organizado por estudantes de cinema e cujo nome se remetia aos resíduos “desinteressantes” produzidos no amadorismo das práticas experimentais, foi um dos primeiros espaços de exibição para Aloka das Américas. No

Chorume havia vasta troca de experimentações, sem uma perspectiva de julgamento sobre as

obras. Essa auência dadaísta tinha mais a ver com fazer circular nossas experiências, fossem elas imagens descartáveis ou não. Depois desse primeiro contato com um circuito alternativo de exibidores, Aloka circulou por alguns festivais nacionais, todos pequenos ou feitos com pouca verba, como o Curta Dança, de Belo Horizonte, ou a Mostra Nacional de Vídeos sobre Intervenções e Performances (Mostra IP). Alguns festivais relacionados à ideia de corpo- cidade, cujos experimentos dançantes se dão no espaço urbano, e à performance.

Na experiência da improvisação, os vídeos primam pela atualização espaço-temporal com a câmera, oportunizando uma ênfase sobre os lugares e circunstâncias onde se dá essa dança. Aloka das Américas surge de um pensamento que não deve à hegemonia do cinema ou da dança. Não estive durante todo esse tempo preocupado em fazer um filme que servisse à

forma cinema (sua perspectiva hegemônica) ou tivesse de ser completamente compreendido

pelo espectador. Também não estive preocupado em como entenderiam meu corpo em movimento e quais críticas seriam feitas a ele doravante, tanto por estar fora das expectativas sobre uma performatividade normativa de gênero (a heterocisnormativadade), quanto por, e principalmente, estar distante de uma norma reguladora da dança, de “dançalidade”, quando

não repercute os fundamentos históricos sobre as disciplinas da dança. Muitas das ideias simplesmente aconteciam imprevisíveis, sem que tivéssemos que planejar alguma coisa. Estar em qualquer ponto da cidade, com uma câmera de um dispositivo celular disponível, o desejo de dançar, algumas pessoas para captar imagens ou ajudar com uma espécie de segurança, e até mesmo a única e exclusiva possibilidade de fazer tudo sozinho. Sem hierarquias de mercado.

Um espaço qualquer, um momento qualquer, quaisquer corpos, quaisquer danças. Uma câmera na mão, inquietudes e vastas ideias na cabeça, nas pernas, no tronco, pés, dedos, ossos, músculos, olhos... Aloka! O desejo de dançar, então, compõe com o dispositivo cinematográfico e o espaço. Convidava amigos para filmar e, depois de um tempo, passei a convidá-los para montar os vídeos também. Na maioria das vezes, todavia, estive montando sozinho as danças de Aloka das Américas. Isso passou a constituir o processo criativo num fazer tríadico, de dança-filmagem-montagem. Uma tríade que se distancia da fixação histórica, cujo parâmetro narrativo resume as imagens em movimento, a fim de priorizar a relação corpo- câmera. Entendo esses acontecimentos como relações temporais que se dão na perspectiva de um corpo que dança loucamente e que, em movimento, pensa. A loucura como uma fuga à experiência lógica de uma planificação ou notação do movimento, de uma intenção ou dramaturgia a ser incorporada ao corpo. A loucura como ênfase do improviso, da imprevisibilidade. A experiência de um corpo que não se limita a cumprir ordens ou ficar eminentemente autocentrado num programa de execução de movimento.

Um corpo que não pensa apenas em si, mas simultaneamente em muitas coisas enquanto dança. Pensa na sua relação com a câmera, por vezes talvez até nas imagens futuramente projetadas numa tela, pensa no ambiente, nas pessoas, em tudo que se aproxima e desaparece. Não há regras, mas variações, instantes, divagações. Pode-se tentar não pensar em nada também, como provocaria o mestre Kazuo Ohno em seus workshops, no século passado. Mas, então, o que faz esse corpo indisciplinado na berlinda, no intervalo, no momento em que o olhar não se resume à tirania e sua expectativa não pode ser espetacular? Quando o outro é um curioso diante da minha própria curiosidade, o que acontece? Não posso prever em definitivo qual será o próximo passo, o próximo movimento, o próximo suspiro... O que é próximo, afinal? Pensar

em não ver. Não prever, mas atualizar-se simultaneamente, sem nóias, sem expectativas, sem

regras propriamente estruturadas. No structures. Faça o que quiser, dance como quiser. São diversas as imagens simultâneas incindindo sobre a experiência de um corpo dançante, imagens que se atualizam segundo os acontecimentos que se dão entre [esta palavra não apenas no sentido de uma relação, mas daquilo que cria distâncias, interrupções, vazios de significado,