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Dramaturgos fora de cena

2- Augusto Sobral – Entre o absurdo e o mito

Augusto Sobral apresenta um percurso artístico multifacetado, onde além de arquitecto e dramaturgo se revelou enquanto actor, cenógrafo, pintor, ilustrador, encenador, tradutor e dramaturgista. Duarte Ivo Cruz refere-se ao carácter multidisciplinar da sua dramaturgia, a propósito da peça O Borrão:

«Eis um artista plástico […] que no teatro encontra uma expressão criacional, plástica e rítmica. As experiências de cenógrafo e de actor amador terão contribuído para a visão conjuntural de uma arte, que só deve na verdade ser cultivada por quem aprender desde o início, a sua complexíssima gramática»364.

À semelhança dos outros autores em análise, Augusto Sobral foi integrado na nova geração de dramaturgos que surge nos anos 60. A peça O Consultório foi representada nas matinés do Teatro Nacional D. Maria II, durante o ciclo “Teatro de Novos para Novos”, em 1961365

. A peça O Borrão foi incluída na antologia Novíssimo Teatro

Português, sendo representada pelo Cénico de Direito da Universidade de Lisboa em

1961, no Teatro Capitólio366 e reposta no ano seguinte pelo Teatro de Bolso do Clube Estefânia, juntamente com a peça Não Chove em Vilar de Pedra de Agostinho Macedo e Carlos Manuel Rodrigues. No programa do espectáculo do Clube Estefânia é mencionado o facto de se tratar de um evento empenhado na divulgação da nova geração de autores: «No intuito de divulgar a obra dos novíssimos autores portugueses, o Teatro de Bolso repõe em cena as duas mais discutidas peças de vanguarda estreadas o ano passado»367.

Relativamente às peças escritas durante as décadas de 50 e 60, se os textos O Borrão (1960) e O Consultório (1957) são facilmente integráveis na estética absurdista, o mesmo já não se poderá dizer a propósito de D. Sebastião (1957) ou Os Degraus (1964). Em ambas se dá a reescrita de mitos postos em palco, num teatro de situações realista, com diálogos num estilo discursivo expressamente interventivo, sem subterfúgios,

364 Cruz, Duarte Ivo, Introdução ao Teatro do Século XX, Lisboa, Espiral, 1969, p.190. 365

2° espectáculo do ciclo “Teatro de Novos para Novos”, com os textos O Consultório de Augusto Sobral e O Pescador à Linha de Jaime Salazar Sampaio com encenação de Artur Ramos. A peça O Consultório foi representada a 2 de Junho de 1961.

366

Com encenação de Morais e Castro, representado a 16 de Março de 1961. O espectáculo foi galardoado com um prémio no Festival de Lyon.

367 AAVV, Programa do espectáculo O Borrão, encenação de Carlos Manuel Rodrigues, interpretação de

Victor Azevedo, Agostinho Macedo e José António Sila, Teatro de Bolso do Clube Estefânia, Lisboa, 28 de Abril de 1962.

133 prescindindo da linguagem codificada dos outros textos. O apelo ao lado irracional e onírico do ser humano, característico da estética absurdista é explorado apenas do ponto de vista ético e ideológico.

Em D. Sebastião368 apresenta-se um drama histórico que nos recorda o teatro de

Garrett, trazendo para a cena o conflito do homem perante as forças do poder representadas pela Igreja. A crítica à época ditatorial é evidente e como sublinha Sebastiana Fadda «quase quatro séculos separam as vicissitudes relatadas e a redacção da peça, mas decerto o ambiente replica-se mais uma vez em relação às atinências com o Portugal salazarista. A escolha do tema e o tratamento que lhe é reservado são clara e absolutamente intencionais»369. Tal crítica é notória na seguinte réplica de Martim Vaz, onde se dá conta da revolta da personagem pela falta de liberdade, pelo peso do medo que atrofia a acção humana, numa associação que expressa a clara denúncia que é tecida neste texto ao regime fascista:

«O medo já vive dentro das nossas almas. Somos leões de garras cortadas só porque se nos escapa o sentido que a vida possa ter. Nascemos com o medo nas entranhas. O medo moldou a forma dos nossos desejos. […] O medo de vos tornardes no denunciante de um velho que vos tem por amigo e que […] segue afinal a mesma lei e a mesma fé que vós quereis defender com tanto zelo. […]Vivemos todos a tremer de medo, uns diante dos outros, a postos como cães»370.

Os Degraus retoma o estilo dramático da tragédia clássica e relembra-nos Les Mains sales de Sartre em certos momentos, ao pôr em palco o questionamento ideológico

do indivíduo e o fracasso dos sistemas políticos. No prefácio da peça, Fernando Midões refuta a relação entre Augusto Sobral e Ionesco, defendendo que apesar de alguns elementos ionesquianos serem reconhecidos no texto, como a fragmentação do diálogo e o total desrespeito das regras aristotélicas, o humor do dramaturgo se liga mais ao «humor-sensibilidade que disfarça ternura humana de Tchekhov e Raúl Brandão» do que ao «humor fundamentalmente non-sense de Ionesco». E acrescenta o facto de se tratar de um teatro de participação social que se afirma de um modo directo: «Não há desconhecimento da problemática, do estar no mundo, do envolvente do homem de hoje.

368

Sobral, Augusto, Teatro, Lisboa, INCM, 2001. Todas as peças citadas do autor se reportam a esta edição.

369 Fadda, Sebastiana, «O Teatro e os seus Múltiplos» prefácio a Sobral, Augusto, Teatro, Lisboa, INCM,

2001, p. 11.

134 Há sim, participação e comunhão serenamente reais e construtivas, sob o primado da Arte»371.

Tal participação social é expressa na seguinte fala do Coro que mostra o conteúdo inconveniente do texto durante a época em que foi escrita (1964):

«Ó homem esperto e razoável. Homem que sendo inimigo de homem dominas e impões um sentido de homem ao teu semelhante. Homem que esmagas todo aquele que queira passar acima da medida que tu próprio lhe impuseste, por força de uma realidade que aceitaste. Homem que nos dá a idade da razão. Tirano! […] Todos te odiamos… Mas o medo que temos uns dos outros é a grande pedra do teu pedestal»372.

Não nos surpreende portanto, o facto de a representação deste texto ter sido proibida pela censura, tendo em conta que se trata de uma contestação evidente dirigida ao estado ditatorial que se vivia na altura. Como indica Sebastiana Fadda, trata-se de um texto caracterizado pelas preocupações sociais, «onde é proposta uma moderna metáfora do mito prometeico em que se manifesta uma discordância directa à ordem imposta pelo regime fascista»373.

No entanto, apesar da crítica interventiva, não deixa de ser um texto, onde se afirma o fracasso das ideologias, como se ilustra na seguinte fala de Prometeu:

«Estes tipos que têm todas as ideias do mundo na cabeça, todas as reformas a fazer e que se limitam a sobreviver exactamente como os que têm a cabeça oca, a medir os gestos cada vez mais pequeninos até que ninguém veja os gestos, mas eles sintam que o fizeram. […] Ainda bem que não sou Prometeu. Ainda bem que não dei mais do que o máximo da minha consciência de simples mortal […]. Ainda bem que não sou um deus»374.

De facto, apesar de o texto apresentar uma estrutura que ao contrário de O Borrão e O Consultório se desvia de um modo geral da estética absurdista, a conclusão de Prometeu denuncia, como o teatro de Ionesco e Beckett, a fragilidade da condição humana, a desumanização do indivíduo, em que o lado mecânico se sobrepõe ao lado sensível e racional, assinando uma apologia do anti-herói, como se reconhece na seguinte passagem:

371 Midões, Fernando, prefácio à peça Os Degraus in Sobral, Augusto, Teatro Completo, Lisboa, INCM,

2001, p.130.

372

Os Degraus, p.167.

373 Fadda, Sebastiana, «O Teatro e os seus Múltiplos» prefácio a Sobral, Augusto, Teatro, Lisboa, INCM,

2001, p.18.

135 «Para quê esta coisa toda? Se nem somos nós que dizemos quem somos. Se

em nós nada nos garante a nossa própria identidade. […] Não somos Deuses! Nem génios nem coisa nenhuma. […] Somos contingentes, fracos. […] Entraste na paisagem. Desapareceste. Fazes parte das árvores e dos rios, murchas, secas, renasces, desapareces e voltas a aparecer como os frutos que mirram nas copas das árvores até ficarem secos e inúteis. […] Se a humanidade é só isto, maldita humanidade! […] Medo! Medo! Medo! […] Em cada noite ao chegar a casa subo uma escada. É a escada que me leva ao quarto onde durmo. Subo-a cada madrugada. Que tem isso de especial? É mecânico, mecânico, absolutamente mecânico»375.

Augusto Sobral escreveu ainda quatro textos durante o Estado Novo que não abordamos na nossa análise. É o caso do texto Madalena, escrito em 1953 e inédito, considerado pelo autor como «um fruto incipiente desprovido de virtudes específicas, a não ser as que podem ter os meros exercícios»376. É ainda o caso dos textos inacabados I

Corelli (1962), O Bigode e do texto inédito Le Cottilon des Galants (1970).

Na impossibilidade de nos dedicarmos a uma abordagem destas peças inacabadas e inéditas, impõe-se a tarefa de nos concentrarmos nos textos O Consultório e O Borrão, produzidos em época ditatorial. Propomos, à semelhança do estudo dos outros autores presentes no nosso corpus de análise, proceder ao levantamento dos traços absurdistas observados nos textos que por sua vez se relacionam não raro com o seu carácter interventivo e subversivo.

A peça O Consultório apresenta um drama psicológico decorrido no consultório de um psiquiatra, onde se encontram na sala de espera três pacientes (um casal e um rapaz) e uma empregada. Entre os pacientes, conta-se um casal que não consegue ultrapassar a morte do filho, criando situações ficcionais como se ele estivesse vivo. Inicialmente é o elemento masculino do casal que manifesta sinais de delírio. À semelhança das personagens ionesquianas é assaltado pelas falhas de memória e pela perda de referências temporais, como se verifica nesta passagem, em que procura lembrar-se do aniversário do filho: «Ele vai fazer 21 em 13 de Janeiro (Contando pelos

dedos) Janeiro, Fevereiro, Março… Hum, hum, hum, Julho e Agosto. 22? Disse 22? Sete

meses e nove dias mais velho»377. De notar ainda a passagem em que o Senhor confronta o Rapaz, com o facto de ele não ter acreditado na notícia que leu no jornal: «O Senhor

segue com a vista o pulso que o Rapaz tem ligado. Este, logo que se apercebe disso,

375

Os Degraus, pp.177-180.

376 Apud Fadda, Sebastiana, «O Teatro e os seus Múltiplos» prefácio a Sobral, Augusto, Teatro, Lisboa,

INCM, 2001, p.8.

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procura estendê-lo. Senhor – O senhor não acreditou. Rapaz – Como? Senhor –

Acreditou? Rapaz - Em quê? Senhor – Nessa notìcia. […] Rapaz – Pois com certeza que não. Senhor – Pudera! Nem ninguém acredita»378.

Neste diálogo, a pergunta inesperada do Senhor acaba por ser levada a sério pelo Rapaz que admite não ter acreditado na notícia que acabou de ler. Na verdade, o que aparentemente surge como uma pergunta delirante e absurda acaba por se revelar como uma denúncia certeira da época ditatorial em que se vivia, no momento em que a peça foi escrita. De facto, não era possível na altura acreditar nas notícias que se liam nos jornais, tendo em conta a existência da censura e da pressão política que se fazia sentir na imprensa portuguesa durante o Estado Novo.

A partir de um diálogo com o Rapaz, compreendemos que também a Senhora põe em causa a sua lucidez, ao admitir que faz crer ao marido que o filho ainda vive e ao desejar acreditar nas mentiras que conta, como consolo da sua própria dor: «Senhora – Qual cura? Quem é que nos pode curar? Rapaz – Nos pode curar? … Mas a senhora?

Senhora – Chego a não ter a certeza. Só desejava acreditar mais quando invento as

mentiras. Inventar de maneira a que acreditássemos os dois»379.

Quanto ao Rapaz, afirma ter caído de um cavalo para justificar a ligadura que traz no pulso, mas à medida que a acção vai decorrendo, apercebemo-nos que na origem dessa ligadura está uma tentativa de suicídio. O Rapaz acaba por ceder ao mundo ficcional do casal, gerando-se uma situação de metateatro em que ele finge ser filho deles. Quando o médico chega, nenhuma das personagens pretende ser atendida. O devaneio e o sonho são a escolha última das personagens como conforto da sua dor, prescindindo da terapia institucional. A peça conclui-se nesta apologia ao lado irracional e sonhador do indivíduo. Esta conclusão vai ao encontro do diálogo em que o Rapaz confessa à Empregada as suas preocupações sobre a natureza humana, angustiado pela hipocrisia do mundo onde vive, onde «todos deveriam passar para dentro de si próprios»: «Rapaz – Todas as pessoas se deviam passar assim para dentro umas das outras como aquela senhora e aquele senhor. […] Se as pessoas se dessem inteiras… às vezes, se alguém nos tomasse nos braços sem nós sabermos quais eram os nossos braços…»380.

A partir deste diálogo, o Rapaz põe em causa a competência do psiquiatra para compreender a sua angústia e acaba por se abandonar ao universo fictício do casal.

378 O Consultório, pp. 78-79 379 O Consultório, p.86. 380 O Consultório, pp.89-90.

137 Curiosamente, a crítica publicada no Diário de Notícias ao espectáculo O Consultório, que teve lugar em 1961 no Teatro Nacional D. Maria II, manifesta um ponto de vista positivo acerca do desfecho desta peça:

«O espectáculo abriu com O Consultório, ensaio de farsa melodramática de Augusto Sobral. Três doentes aguardam a vez de ser recebidos pelo médico. Mas acabam por renunciar à consulta, porque a solidariedade humana naquela tarde pôde dar-lhes a paz e um novo sentido da vida, que nem todas as mezinhas deste mundo seriam capazes de lhes proporcionar»381.

Na mesma crítica são ainda tecidos generosos elogios ao cenário de Sena Silva: «Esplêndido cenário de Sena Silva a transmitir-nos o ambiente desolado e frio das salas de espera, muros de desespero para abafar as dores humanas»382.

A propósito do mesmo espectáculo, a crítica de Urbano Tavares Rodrigues publicada no Diário de Lisboa chama a atenção para um conjunto de problemáticas que novamente aproximam o texto da estética do absurdo:

«Cai o pano sem que o piedoso equívoco se desfaça e a peça de Augusto Sobral nada mais nos diz. A alguns parecerá pouco. Talvez. Entretanto, lá se encontra, estilizado o drama da solidão dos homens e a contiguidade dos mundos da razão e da loucura, bem como esse sentimento da vida absurda, que dir-se-ia ser a própria atmosfera em que respira o moço protagonista. Solução, é claro, nenhuma. Apenas uma ilustração de encontros e desencontros. Nessa pista afigura-se-nos curiosa também a figura da empregada, a única que engrena a distracção das suas rotinas e assim se desvia das perguntas monstruosas que a vida faz nascer e para as quais o autor parece insinuar que não há outra resposta que não seja a da auto- ilusão»383.

Em O Borrão estamos novamente diante de um palco onde o nonsense surge como elemento constante da situação cénica. A peça começa com o discurso de um conferente que discorre frases sem sentido, numa linguagem desarticulada e incompreensível. Dir- se-ia uma enumeração de frases tipo e expressões retóricas que inevitavelmente não captam a atenção da audiência que vai partindo progressivamente:

381

AAVV, “Teatro Nacional D. Maria II – O Consultório e O Pescador à Linha” in Diário de Notícias, 3 de Junho de 1961.

382 Id. Ib.

383 Rodrigues, Urbano Tavares, «Teatro de Novos para Novos, no D. Maria II» in Diário de Lisboa, 3 de

138 «E de facto parece ser essa poética que dimana das coisas que nos dá

significado […] Pois como já tinha tido ocasião de mencionar, nada me parece tão seguro na incerteza destes dias como a subjectividade anímica. […] E de resto que nos importa? Pois não é o homem essencialmente… […] Não é o homem essencialmente… […] Não é o homem essencialmente, dizia eu, um aglutinado?»384.

Após este discurso do Conferente, um velho permanece só na sala. Ao aperceberem-se da presença do Velho, o Conferente e o Presidente tecem considerações sobre ele, imaginando que se trata de um escritor. Quando o Velho os interpela, o Presidente e o Conferente iniciam um diálogo, onde retomam o discurso incoerente e sem sentido, acabando por enumerar diferentes figuras históricas:

«Conferente – […] Seja o senhor, quem for… […] elemento vivo de uma sociedade em decomposição… Presidente – E que seria dos verdadeiros homens uns sem os outros? Conferente – De Robespierre sem Marat. Presidente – De Marat sem Robespierre. Conferente – De Danton sem Marat e Robespierre. Presidente – De Marat e Robespierre sem Danton. Conferente – E César… Presidente – César e Cleópatra. Conferente – E Pompeu e Crasso. E Churchill, Roosevelt e Staline»385.

Num dado momento, o Presidente exclama entusiasmado que nunca se chegou a fazer um avião a vapor. Toma essa afirmação como uma maravilhosa descoberta e pede ao Velho que registe a ideia. É nesse momento que o Velho deixa cair um borrão na folha de papel, partindo para um lamento inconsolável. Ao tentar confortá-lo, o Conferente e o Presidente acabam por descobrir a propósito do Velho que não se trata de um escritor, mas sim de um guarda-livros. A cena torna-se de repente um tribunal, onde o Presidente interroga o Velho e o Conferente procura defendê-lo. No decorrer deste interrogatório, o Velho exclama desesperado a sua vontade de morrer. Esta declaração dá lugar a uma nova situação cénica em que o Conferente e o Presidente procuram convencê-lo a viver. Aqui residirá a grande ironia do texto. As duas personagens que exploram durante toda a peça diálogos sem sentido tornam-se responsáveis por transmitir o sentido da vida a um velho sem esperança.

Trata-se de um texto que expõe o fracasso da linguagem a ilustrar a derrota do homem na sua capacidade de comunicar e se relacionar com os outros, sem forma de escapar à solidão e ao vazio. Sebastiana Fadda refere-se a este aspecto do texto,

384 O Borrão, pp. 105-106. 385 O Borrão, p.110.

139 sublinhando o facto de a proliferação da palavra surgir para paradoxalmente esvaziar o significado das coisas que são mencionadas:

«Quanto maior a verborreia, menor é o seu grau de veicular significados e as palavras ocas remetem para universos também ocos. […] Nenhuma das três [personagens] sabe utilizar a linguagem na sua função comunicativa, não estão dispostas a escutar por não estarem centradas, mas sim concentradas num egotismo surdo, não querem olhar por não aguentarem a visão agressiva do real. […] A faceta cómica inicial, não raro mordaz pelo patente divórcio entre significante e significado, é acentuada pela ironia com que se escarnece da arte oratória e da prosápia dos oradores»386.

Fernando Midões, no prefácio à peça Os Degraus, comenta o texto O Borrão apontando as principais problemáticas da peça, ligadas no seu entender ao tema da solidão e da fragilidade da condição humana: «a verborreia, o psitacismo, a vaidade cabotina e pseudo-intelectual dos que formam a mesa da conferência e a luta do Velho pela certeza de que ainda está vivo»387.

No entanto, a conclusão de Fernando Midões assinala um presságio de mudança de rumo na dramaturgia de Augusto Sobral, a propósito das peças O Borrão e O

Consultório:

«Ouso, porém, afirmar que nestas peças em um acto há já indícios de que Augusto Sobral não se confinará ao „homem só‟. E, neste caso, muito à maneira de homem de teatro, é a sua inventiva cénica que indicia o alargamento temático, humano, sociológico. Em O Borrão e Consultório, não como apontamento, mas funcionalmente, existem janelas nos cenários, numa afirmação consciente ou inconsciente por banda do autor, de que há outros mundos, um lá-fora ao nível da cidade. Um álibi urgente. Um jardim onde brincam crianças, salta uma bola. Recuso-me a aceitar que as duas janelas existam por acaso»388.

Na opinião de Sebastiana Fadda, «o dever de participação dos artistas nas colectividades organizadas, da intervenção crítica perante as injustiças e os vícios sociais, era premente na altura, num pano de fundo constituído pelo atraso de Portugal»389. A teatróloga acrescenta que a dramaturgia de Augusto Sobral não deixou de ser permeável a esse contexto e «os ambientes antes claustrofóbicos abrem-se para o exterior, ou pelo menos para uma claustrofobia em mais amplos espaços»390.

386

Fadda, Sebastiana, prefácio a Sobral, Augusto, Teatro, Lisboa, INCM, 2001, p.15.

387

Midões, Fernando, prefácio a Os Degraus in Sobral, Augusto, Teatro, Lisboa, INCM, 2001, p.131.

388 Id. Ib., pp.131-132.

389 Fadda, Sebastiana, prefácio a Sobral, Augusto, Teatro, Lisboa, INCM, 2001, p.17. 390 Id. Ib., p.17.

140 Na nossa interpretação, Augusto Sobral manifesta nos textos O Borrão e O

Consultório uma atitude reivindicativa, pois apesar de não se tratar de uma denúncia

directa ao sistema fascista, não deixam de ser questionadas importantes temáticas como a dificuldade de comunicação entre os indivíduos e a impossibilidade de abandonar as máscaras no contexto de uma sociedade hipócrita. Em O Borrão é exposto o absurdo das