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O absurdo na cena francesa – novos olhares em palco

2- Les gardiens du temple

As didascálias que povoam as peças de Ionesco e Beckett e os diferentes documentos manuscritos que encontramos de cartas a encenadores especificando as suas intenções cénicas constituem a prova do zelo com que estes dramaturgos procuraram acompanhar as suas peças. Perante a encenação de Sylvain Dhomme em 1952, Ionesco reagiu, expressando o seu desagrado face às opções do encenador:

«Non, décidément, vous ne m'avez pas tout à fait compris dans Les Chaises: […]. Vous avez voulu tout naturellement tirer la pièce à vous, alors que vous deviez vous y abandonner; le metteur en scène doit se laisser faire. Il ne doit pas vouloir quelque chose de la pièce, il doit s'annuler, il doit être un parfait réceptacle»536.

Ainda em Notes et contre notes, Ionesco sublinha a autoridade das suas indicações cénicas: «mon texte n‟est pas seulement un dialogue mais il est aussi indications scéniques. Ces indications scéniques sont à respecter aussi bien que le texte, elles sont nécessaires, elles sont aussi suffisantes»537.

Por sua vez, Beckett reagia com semelhante zelo perante os encenadores que puseram as suas peças em cena, como podemos comprovar pelo seguinte passo de uma carta dirigida a Roger Blin:

«Mon cher Roger, […] Il y a une chose qui me chiffonne, c‟est le froc d‟Estragon. J‟ai naturellement demandé à Suzanne s‟il tombe bien. Elle me dit qu‟il le retient à mi-chemin. Il ne le faut absolument pas. […] Soyez seulement assez gentil de le rétablir comme c‟est indiqué dans le texte, et comme nous l‟avions toujours prévu au cours des répétitions»538

.

Encontramos ainda um testemunho do modo como Beckett procurou proteger a sua obra e acentuar a sua autoridade no episódio ocorrido em 1988, durante a encenação de Fin de partie por Gildas Bourdet, com quem o dramaturgo se incompatibilizou. Martine Silber refere-se a esse conflito, sublinhando a intransigência do dramaturgo:

536

Ionesco, Eugène, Notes et contre notes, Paris, Gallimard, 1962, pp.260-261.

537

Id. Ib., p.285.

538 Cf. carta dirigida a Roger Blin, 9 de Janeiro de 1953, Fundos Roger Blin, IMEC, St. Germain-La

Blanche Herbe. Manuscrito consultado na exposição «Beckett» organizada no Centre Pompidou de 14 de Março a 25 de Junho de 2007.

195 «lorsque Fin de partie est entré au répertoire de la Comédie-Française, en

octobre 1988, l'administration du théâtre a dû publier un communiqué pour annoncer qu'‟à la suite de divergences existant entre Samuel Beckett et Gildas Bourdet‟, le metteur en scène, la pièce serait „donnée hors la mise en scène initialement prévue‟. Etait en cause, principalement, la couleur rose du décor, alors que l'auteur parle de murs gris. Beckett était fou de rage. La pièce fut donnée avec un décor recouvert d'une bâche»539.

No programa do espectáculo Oh les beaux jours, encenado por Bob Wilson no Théâtre de l‟Athénée, encontramos a seguinte passagem que comenta a mesma atitude de Beckett, testemunhada por Madeleine Renaud : «Lorsque je déraillais un peu, il me disait: „Non, non Madeleine, ce n‟est pas un point, ce sont trois points‟»540

.

A intransigência dos dois dramaturgos que reconhecemos nestes testemunhos motivou diversas polémicas a propósito da questão de fidelidade aos textos e às intenções cénicas dos autores. No entanto, é forçoso realçar que os próprios dramaturgos apresentaram posturas contraditórias perante essa intransigência, tendo em conta que os textos e as didascálias sofreram várias modificações nos espectáculos que os autores acompanharam e, no caso de Beckett, nas encenações que ele dirigiu. Como afirmam Dougald McMillan e Martha Fehsenfeld:

«Even at the rehearsals of this first Godot, Beckett made textual changes and notations concerning the staging in his own prompt script – a copy of the Éditions de Minuit, first edition. Numerous cuts in the dialogue tightened the action. Several additions and deletions strengthened or eliminated aspects of character»541.

Na Biblioteca da Universidade de Reading existem onze cadernos manuscritos de notas que Samuel Beckett redigiu para várias encenações das suas peças542. James Knowlson publicou quatro volumes dos manuscritos de Beckett, a propósito das encenações das peças Fin de partie, Oh les beaux jours, En attendant Godot, La dernière

bande em Paris, Londres e em Berlim543. Surgem ainda notas a propósito da encenação

539 Silber, Martine, «Metteurs en scène sous surveillance», Le Monde, 29 de Outubro de 2006.

540 Cf. Entrevista com Guy Wagner, Phare, Fevereiro de 1976 apud AA.VV, Programa do espectáculo Oh

les beaux jours, encenação de Bob Wilson, interpretação de Adriana Asti e Giovanni Battista Storti,

Théâtre de l‟Athénée, Paris, de 23 de Setembro a 9 de Outubro de 2010.

541 McMillan, Dougald & Fehsenfeld, Martha, Beckett in the Theatre. The Author as practical Playwright

and Director, London/New York, John Calder Riverrun Press, 1988.

542

Cf. Knowlson, James, «Samuel Beckett metteur en scène: Ses carnets de notes de mise en scène et l‟interprétation critique de son œuvre théâtrale» in Touret, Michèle (org.), Lectures de Beckett, Presses Universitaires de Rennes, 1998, p.70.

196 de Walter Asmus da peça Va et Vient representada em Berlim e da peça para a televisão

Dis Joe, realizada pelo próprio autor.

Através dos manuscritos de notas para a encenação de Samuel Beckett, reunidos e organizados por James Knowlson, damos conta das mudanças que o autor impôs aos seus próprios textos quando os transpôs para a cena. Não só encontramos cortes e mudanças ao nível do texto, como as peças sofreram modificações de encenação para encenação. Nesse sentido, não podemos deixar de apontar a importância da liberdade cénica e a fragilidade do termo “fidelidade” ao autor. Em diversos momentos polémicos do Festival Beckett em Paris pudemos dar conta de uma defesa dos direitos de autor que assenta sobre uma visão unilateral dos textos, cristalizados por determinadas encenações emblemáticas, surgidas no espaço francês. No entanto, parece-nos um contrasenso defender o modelo de representação de Oh les beaux jours por Madeleine Renaud, quando o próprio autor dirigiu de um modo diferente a mesma peça uns anos depois, no Royal Court Theatre em Londres e no Schiller Theater em Berlim. Do mesmo modo que reinvindicar o modelo de encenação de Roger Blin para a peça En attendant Godot é ignorar o facto de Beckett ter dirigido a encenação do mesmo texto de um modo muito diferente nos espectáculos onde acompanhou Alain Schneider em Inglaterra e nos Estados Unidos ou no modo como encenou Warten auf Godot no Schiller Theater.

James Knowlson aponta para as inúmeras diferenças estabelecidas pelo próprio dramaturgo entre o texto e as várias encenações que dirigiu. Tais diferenças deveriam de acordo com o ponto de vista do investigador encorajar a crítica a reflectir sobre a natureza da transposição cénica e abandonar interpretações redutoras, centradas nas primeiras intenções textuais544. Por outro lado, James Knowlson realça o facto de se terem passado décadas entre a produção dos textos e as últimas encenações, o que motivou uma mudança do ponto de vista do autor sobre a própria obra. Nesse sentido, Knowlson compara a estrutura de uma peça com um camaleão, insistindo que a natureza do acto teatral não pode deixar de ser permeável ao tempo:

«Pendant la période qui s‟écoule entre l‟écriture d‟une pièce et sa mise en scène, dix, quinze ou même vingt ans plus tard, son expérience personnelle en tant que metteur en scène aussi bien que comme auteur ayant de son côté parcouru du chemin (sans parler de son expérience personnelle en tant qu‟être humain, lui-même soumis aux modifications qu‟opère ce „cancer‟, qu‟est le

544 Cf. Knowlson, James, «Samuel Beckett metteur en scène: ses carnets de notes de mise en scène» in

197 Temps), ont pu faire changer l‟opinion qu‟il a de sa propre œuvre, ou bien

ont pu l‟aider à reconsidérer les moyens techniques pour lui donner vie sur scène. […] une pièce se transforme comme un caméléon en sorte qu‟elle est rarement exactement identique à la fin du mois ou de la tournée à ce qu‟elle était au début. Elle change même d‟une soirée à l‟autre»545.

O zelo com que o dramaturgo procurou proteger a sua obra dramática não deixa de ser contraditório com o facto de ele ter ao mesmo tempo reconhecido o valor da encenação que inevitavelmente se distancia da matéria-prima do texto. O seguinte episódio relatado por Régis Salado, confirma-nos o sentido contraditório da postura do dramaturgo enquanto guardião do templo: «[Beckett] était prompt à imputer aux seuls comédiens et metteurs en scène la faveur obtenue par ses premières pièces : s‟ils le faisaient à ma manière ils videraient le théâtre, disait-il à propos de Godot»546.

No caso de Ionesco, encontramos um processo semelhante nas encenações que o dramaturgo acompanhou, sendo o exemplo mais flagrante o espectáculo La Cantatrice

chauve dirigido por Nicolas Bataille. Damos conta de inúmeras modificações entre o

texto original e a encenação produzida pelo Théâtre de La Huchette, quer ao nível dos diálogos quer no que diz respeito às didascálias. Na edição da obra dramática de Ionesco pela Pléiade foram publicadas as diferenças entre o texto original e a versão de Bataille. Michel Bertrand aponta uma lista exaustiva dos casos em que o espectáculo encenado no Théâtre de La Huchette modifica o texto original. Por exemplo, Ionesco tinha previsto a seguinte didascália quando a personagem do bombeiro entra em cena: «Ils s‟embrassent». Na edição da sua obra completa surge em nota: «Dans la mise en scène de Nicolas Bataille, on n‟embrasse pas le Pompier»547

. Ionesco tinha também previsto no texto original que M. Smith contaria uma fábula intitulada Le Serpent et le Renard. Na edição revista temos a seguinte indicação: «Cette anedocte a été supprimé à la représentation. M. Smith faisait seulement les gestes, sans sortir aucun son de sa bouche»548. Acrescentamos como último exemplo o fim da peça, modificado pelo próprio autor durante os ensaios, decidindo que M. e Mme Martin retomam a mesma situação que surge no início com M. e Mme Smith549.

545 Id. Ib., pp.72-73.

546 Cf. carta a Alan Schneider, 11 de Janvier 1956 apud Salado, Régis, «On n’est pas liés? Formes du

lien dans En attendant Godot et Fin de partie» in Grossman, Evelyne & Salado, Régis, Samuel

Beckett: L’écriture et la scène, Paris, SEDES, 1998, p.106.

547 Cf. Ionesco, Eugène, Théâtre Complet, Paris, Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 2007, p.81. 548 Id. Ib., p.32.

198 No artigo «Fantasme, Malentendu»550, Enzo Cormann descreve o dramaturgo como um fantasma sempre presente na preparação do espectáculo, mas que não poderá prever em grande medida a passagem do texto à cena, pelo carácter imprevisível do instante cénico, indomável e passível de mudanças em cada representação e actuação. Neste sentido, durante a concretização do texto em cena, surgirão problemas relativamente ao ritmo, à enunciação do texto, ao número de actores, aos limites físicos do teatro, entre outros que distanciarão os elementos textuais dos elementos cénicos. Neste percurso que vai de um espaço escrito e estanque a um espaço visual e dinâmico, cada réplica será encadeada com a réplica seguinte, cada saída em cena terá consequências práticas, não previstas pelo dramaturgo:

«On est jamais bien seul quand on écrit du théâtre. D‟ailleurs on n‟écrit pas

du théâtre, mais pour le théâtre. […] Car le théâtre ce sont toujours les autres.

Quand l‟auteur écrit (commet) sa pièce (sa bévue ?) il ne sait pas ce qu‟il veut. Je veux dire qu‟il n‟a pas à chaque instant la perception nette, pour ainsi dire réaliste, de ce que doit, de ce que va être en scène»551.

A lógica interna da representação ganha então uma autonomia, desenvolvendo-se através de novos percursos, tomando uma forma «étrangère au fantasme qui a nourri sa mise en scène»552. Ainda de acordo com esta perspectiva de autonomia cénica, Cormann

refere-se num outro artigo553 à continuidade e actualidade de Beckett, traduzida antes de mais pelo espectáculo e não tanto pela obra que precede a representação: «L‟oeuvre de Beckett doit-elle son retentissement aux quelques dinosaures qui se sont penchés sur elle, ou au fait qu‟il ne s‟écoule pas une minute sur cette planète sans qu‟un rideau […] ne se lève sur une de ses pièces? Et sa diffusion même doit-elle plus à l‟establishment théâtral, qu‟à son éditeur ?»554

.

Apesar de as obras dramáticas de Ionesco e Beckett serem representadas de um modo constante, dos anos 50 aos dias de hoje, a passagem do texto à cena não deixa de sofrer obstáculos e entraves no espaço francês. Ainda hoje, observamos que há pouca disponibilidade em França, do ponto de vista legal e crítico, para receber representações que renovem a concepção dramática original, que proponham outros rumos e sobretudo

550Cf. «Fantasme, malentendu» in Cormann, Enzo, À quoi sert le théâtre?, Besançon, Les Solitaires

Intempestifs, 2003, pp.33-37. 551 Id.Ib., pp.33-35. 552Id.Ib., p.36. 553 Id.Ib., pp.39-44. 554Id.Ib., p.43.

199 que se afastem das representações mais emblemáticas que datam dos anos 50. Mais do que uma fidelidade aos dramaturgos, instituiu-se nos palcos franceses, uma necessidade de se permanecer fiel aos primeiros modelos de representação. Com a análise de um conjunto de espectáculos recentes dos textos de Ionesco e Beckett pretendemos demonstrar a importância de valorizar a liberdade cénica e de declinar as convenções que se apoiam numa ideia desajustada de fidelidade aos textos dos dramaturgos.