• Nenhum resultado encontrado

Na análise da dramaturgia de Ionesco, propomos estudar a relação entre a memória e a amnésia, observando os diferentes lugares cénicos que são explorados de acordo com esta concepção do tempo. Observaremos assim lugares de ascensão, de evasão, de abismo e de clausura, numa arquitectura cénica que vai traduzir os diferentes símbolos temporais e o modo como o absurdo ontológico é convocado98.

1.1 – O passado no tempo ionesquiano

Na antiguidade clássica consideravam-se duas formas de memória : a mnémé que designava uma recordação passiva e a anamnese em que se trata de uma recordação enquanto reminiscência. Segundo Paul Ricoeur «La distinction entre mnemé et

anamnésis repose sur deux traits: d'un côté, le simple souvenir survient à la manière

d'une affection, tandis que le rappel consiste en une recherche active» 99. Por sua vez, Bergson opõe dois tipos de memória: a memória-hábito e a memória-lembrança. A memória-hábito corresponde aos dados que temos automatizados ou que sabemos de cor : «fait partie de mon présent au même titre que mon habitude de marcher ou écrire; elle est vécu, elle est agie, plutôt qu'elle n'est représentée» 100. A memória-lembrança aproxima-se da ideia de anamnese e pressupõe uma disponiblidade para imaginar. À memória de dados repetitivos, Bergson opõe a memória imaginativa : «Pour évoquer le passé sous forme d'images, il faut pouvoir s'abstraire de l'action présente, il faut savoir attacher du prix à l'inutile, il faut vouloir rêver. L'homme seul est peut-être capable d'un effort de ce genre»101.

Em Ionesco, temos frequentemente a presença da mnémé e a procura da anamnese, na medida em que as personagens se recordam da imagem, esquecendo o seu

98

Desenvolvemos este tema no seguinte artigo : Firmo, Catarina, « Mémoire et amnésie dans le théâtre d‟Ionesco » in Grigorut, Constantin (dir.), Eugène Ionesco, hier, aujourd’hui, demain, Otago French Notes, Université d‟Otago, 2010.

99

Ricoeur, Paul, La mémoire, l'histoire, l'oubli, Paris, Seuil, 2000, p.22. Ricoeur propõe uma formulação clara da distinção entre mnémé e anamnésis : através da mnémé recordamo-nos do quê e através da

anamnésis lembramo-nos do como.

100 Bergson, Henri, Matière et mémoire in Oeuvres, Paris, PUF, 1959, p. 226-227. 101 Id.Ib., p.228.

44 contexto. Em Rhinocéros, as personagens recordam-se de ter visto um rinoceronte, mas não sabem se ele tinha um ou dois chifres. Em La Cantatrice chauve, os Smith lembram- se de Bobby Watson, mas não se recordam das condições da sua morte. Os Martin lembram-se da sua morada, mas esqueceram-se que são casados um com o outro. É nesse sentido que Paul Vernois102 se refere ao tempo ionesquiano, «entr'aperçu dans la brume des réminiscences, il acquiert une gratuité ludique que personne - sur scène du moins - ne se soucie de son incroyable imprécision. Que Bobby Watson soit mort, voilà l'élément essentiel de la discussion: la date et les conditions du décès importent peu»103. Assim a temporalidade ionesquiana é segundo Vernois «une temporalité précaire puisqu'elle a l'évanescence, la ductilité, la trompeuse innocence de toute subjectivité»104. Referindo-se ao diálogo dos Martin, Paul Vernois constata que «l'impuissance du couple est celle de l'Humanité tout entière qui n'a pas su tirer de la Science et de l'Histoire le fin mot de la condition humaine. On peut avoir des connaissances: on n'a pas la Connaissance»105.

O sintoma da amnésia está portanto ligado a uma procura de anamnese, uma forma de recordar as origens, de recuperar a memória perdida. Com efeito, Ionesco demonstrou a necessidade de mergulhar nas profundezas da memória, para localizar o lado inconsciente do ser humano. Para o dramaturgo, a viagem pelo inconsciente era uma das chaves para desvendar o sentido oculto da existência. Nesse sentido, explica em

Notes et contre-notes, os motivos que o levam a desconfiar do realismo: «Quelle valeur

de vérité peut-il y avoir dans cette sorte de réalisme qui oublie de reconnaître les réalités humaines les plus profondes : l‟amour, la mort, l‟étonnement, la souffrance et les rêves de nos cœurs extra-sociaux»106

.

Recorrentemente no teatro ionesquiano, o esforço de anamnese resulta em fracasso. As personagens não conseguem deixar de recitar, incapazes de raciocinar. Em

La Leçon, a aluna explica que não se podendo fiar no seu raciocínio decorou todos os

resultados possíveis da adição. Parece-nos residir aqui mais uma denúncia do retrato do ser humano suspenso, amnésico e autómato; a denúncia de uma cegueira da condição humana que perdeu a sua capacidade de raciocinar, de imaginar e de sonhar.

Segundo Deleuze, a repetição do passado vai relacionar-se com um estado

102 Vernois, Paul, «Le temps dans l'œuvre d'Eugène Ionesco», Ionesco, Marie France et Vernois, Paul

(dir.), Ionesco situation et perspectives, Colloque de Cerisy, Paris, Belfond, 1980.

103

Id.Ib., p.196.

104 Id.Ib., p.196. 105 Id.Ib., pp.196-197.

45 amnésico que torna a acção mecanizada e cómica: «la répétition de l'Avant se définit de manière négative et par défaut : on répète parce qu'on ne sait pas, parce qu'on ne se souvient pas [...] le héros répète [...] comme dans un rêve et sur un certain mode nu, mécanique, stéréotypé qui constitue le comique»107. É exactamente este grau de repetição que encontramos na acção mecânica das personagens ionesquianas e nela reside o seu carácter cómico. A repetição em Ionesco revela ainda um universo dramático onírico, onde o fantástico domina não raro a estrutura da cena. Na sua dramaturgia predominam as falhas de memória, ilustradas pela recorrência de estruturas repetitivas e circulares e representadas numa linha descontínua de flashs e déjà vus que vai dar conta dos fundamentos do inconsciente e do sonho.

Segundo António Ferreira de Brito108, as personagens do insólito são mais herdeiras de Aion que de Cronos. Deleuze, por seu turno observa que Cronos concentra a dimensão temporal no presente, conferindo-lhe um sentido essencialmente corporal, enquanto Aion recusa o presente, não admitindo senão os valores temporais do passado e do futuro. Aion designa o lugar dos eventos incorporais, a eternidade, a forma vazia do tempo: «quel est ce temps qui n'a pas besoin d'être infini, mais seulement 'infiniment subdivisible ? Ce temps, c'est Aiôn. [...] le passé et le futur essentiellement illimités, qui recueillent à la surface les événements incorporels en tant qu'effets (Aiôn)»109. Ora em Ionesco, temos precisamente o tempo do não lugar (atopon), do vazio, o tempo que deixa de se caracterizar por uma duração.

Antes de se metamorfosear em rinoceronte, Jean esquece a discussão que teve com Bérenger. A sua rinocerite foi estimulada pelo sentimento de amnésia. Em La

Leçon, trata-se novamente de um jogo de rememoração: a aluna deve decorar a matéria, a

criada recorda a acção do crime repetido. Em Les Chaises, os velhos retomam a palavra um do outro para impedir as falhas de memória. Em La Cantatrice chauve, o diálogo dos Martin reenvia novamente à ideia de um sentimento amnésico. Se em Rhinocéros a perda de memória está ligada à desumanização, em La Leçon e em Les Chaises, a rememoração será seguida pela morte das personagens.

O jogo da memória e da amnésia inscreve-se no espaço cénico de Ionesco, revelando uma dramaturgia que se apoia na noção de equívoco. A pluralidade de

107

Deleuze, Gilles, Différence et répétition, Paris, PUF, 1972, p.378.

108 Brito, António Ferreira de, O Real e o Irreal na dramaturgia de Beckett, Ionesco e Tardieu, Porto,

Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, 1983, p.410.

46 significados, a ambiguidade, a incerteza, o ambiente de desordem, a renovação da linguagem, a hesitação das personagens são representados através de recorrências cénicas. Instauram-se os sentimentos de perplexidade, de dúvida e de déjà vu. O absurdo ontológico é deste modo convocado. A duração na obra de Ionesco acentua o desespero do homem, no sentido em que o passado o traz sempre de volta ao ponto de partida, um passado que passa em vão, votado ao esquecimento. Em Journal en miettes, Ionesco manifestava-se a propósito dessa espécie de esquecimento, ao qual via a humanidade condenada. Nesse sentido, caracterizou a inércia espiritual como o sono da inteligência110.

Ionesco rompe com o modelo cronológico da acção dramática, recusando os princípios de duração e causalidade. Em seu lugar, temos o recurso constante ao passado e a causalidade é substituída pelas técnicas de repetição e aceleração. O passado e o sonho são as referências temporais que asseguram a permanência das personagens: «Si éstos duran (esperan) es porque representan (recuerdan/suenan). [...] El miedo de la muerte relanza, por su parte, una constante dilación del futuro que exorciza su realización por su presencia en escena»111. A acção é manifestada através da memória e da espera: «Retrouve ta mémoire, retrouve ta mémoire. Ce qui est loin peut être proche. Ce qui est flétri, reverdit. Ce qui n'est plus reviendra»112. Por sua vez, a morte revela-se em cena como um exorcismo, a saída que permite recomeçar. Esta angústia face ao tempo passado torna o presente vazio. O presente surge num espaço de espera que implica a recorrência dos diálogos à volta do tempo passado para iludir o tédio da espera. A morte torna-se a única possibilidade cénica, para além do desfiar de recordações.

Em Les Chaises, o sentimento de culpa constitui uma particularidade fundamental para compreender a relação das personagens. É curioso observar como a memória se inscreve em alguma medida nos diálogos onde o sentimento de culpa se manifesta. Quando o Velho se diz sentir culpado por ter abandonado a sua mãe, Sémiramis defende precisamente o contrário, afirmando que ele sempre a apoiou até ao último momento. Por sua vez, quando Sémiramis se refere ao filho que partiu com sete anos, com um claro sentimento de culpa, o Velho contradiz o episódio, afirmando que eles nunca tiveram filhos e sublinhando a natureza maternal de Sémiramis. Aqui residirá provavelmente um

110

Cf. Ionesco, Eugène, Journal en miettes, Paris, Mercure de France, 1967, p.56.

111 Bermudez, Dolores, Analisis simbolico del teatro de Ionesco, Cadiz, Universidad de Cadiz, 1989, p.126. 112 Amédée ou Comment s’en débarrasser in Ionesco, Eugène, Théâtre complet, edição organizada,

47 dos principais pontos de equilíbrio entre os velhos. Ao contrariarem-se, eles procuram anular os sentimentos de culpa de cada um. Apagando os traços de um passado que instala a culpa no presente, eles apoiam-se mutuamente. E no entanto, é contra a ameaça de amnésia que os velhos se debatem. Lutam contra a ideia de uma vida passada em vão, recusando-se a serem esquecidos.

Matei Calinescu observa a importância do tema da eternidade ilustrado pela figura do Imperador: «l'énigmatique Empereur invisible est une fiction de cette puissance transcendante et son principal attribut, que le Vieux invoque, est l'éternité, la mémoire absolue qui peut éterniser le périssable, vaincre la mort par le souvenir éternel, par une éternelle évocation»113. A memória oscila assim entre dois movimentos: a recusa do peso do envelhecimento e a luta contra a leveza do esquecimento. É nesse sentido que os mitos do voo e da queda são constantemente repetidos no teatro de Ionesco. Eles traduzem o contraponto fundamental da estética ionesquiana: o peso e a evanescência: «Deux états de conscience fondamentaux sont à l‟origine de toutes mes pièces : […] Ces deux prises de conscience originelles sont celles de l‟évanescence et de la lourdeur ; du vide et du trop de présence ; de la transparence irréelle du monde et de son opacité ; de la lumière et des ténèbres épaisses» 114.

A angústia face ao peso do passado, ao tempo passado em vão, motiva a necessidade de reformular as referências temporais. No teatro ionesquiano este sentimento é manifestado através de estruturas repetitivas. A repetição, criando o déjà vu, permite retomar uma acção do passado, viajar pelo tempo. Ora, esta necessidade de um tempo cíclico que repete infinitamente os mesmos movimentos dá conta do mito do eterno retorno. Na cena ionesquiana observamos a necessidade de manifestar o número de anos passados, à volta do mesmo movimento: «Depuis soixante quinze ans que nous sommes mariés, tous les soirs, absolument tous les soirs, tu me fais raconter la même histoire»115. Em La Vase, as últimas palavras da personagem são «je recommencerai»116. Paul Vernois reflectiu sobre o mito nietzschiano na dramaturgia de Ionesco, sublinhando que «La représentation théâtrale n‟est alors que l‟expression, à la fois multiple et une, des élans impétueux d‟un vouloir vivre toujours renaissant et toujours déçu que l‟auteur a

113 Calinescu, Matei, Ionesco: recherches identitaires, trad. de Simona Modreanu, Paris, Oxus, 2005,

p.154.

114

Ionesco, Eugène, Notes et contre notes, Paris, Gallimard, 1962, p.140.

115 Ionesco, Eugène, Les Chaises. Ionesco, Eugène, Théâtre complet, edição organizada, apresentada e

anotada por Emmanuel Jacquart, Bibliothèque de la Pléiade, Gallimard, Paris, 1990, p.143.

48 découvert dans ses rêves et dont il veut donner une conscience quasi physique au spectateur» 117.

No universo ionesquiano, a acção oscila entre os movimentos de terminar e recomeçar, através de eixos geométricos, numa construção matemática do espectáculo. Paul Vernois observou esse aspecto da sua arquitectura cénica, constatando que se dá uma decomposição de dois movimentos fundamentais: o círculo e a linha vertical118.

Em Les Chaises, as marcações cénicas desenham no palco um percurso circular. O encadeamento de situações e os diálogos transportam-nos novamente para a ideia de circunferência. Por vezes, o círculo desenvolve-se num movimento de espiral, símbolo de queda e armadilha. Em La Leçon, um conjunto de acções circulares e repetitivas caracterizam a estrutura dramática. Quando a aluna é assassinada, a criada afirma que é a quadragésima lição e o quadragésimo assassinato do dia. Yves-Alain Favre observa na estrutura de Rhinocéros, um movimento circular de acordo com a concepção do tempo e da memória:

«la volonté de détruire tout le passé pour retrouver un temps mythique, antérieur au temps. Quelle que soit la conception du temps envisagé, tout aboutit à l‟échec ; on ne peut pas anéantir le passé et revenir au temps des origines, on ne peut pas davantage instaurer un temps nouveau. L‟uchromie demeure un rêve. Aussi le héros finit-il par demeurer prisonnier du présent : il erre dans le labyrinthe du temps»119.

O tempo circular articula-se em cena num espaço enclausurado, armadilhado, que permite a proliferação dos objectos, numa acção onde o movimento é repetido e acelerado.

Segundo Paul Vernois, em Les Chaises o movimento de verticalidade enquanto eixo de polarização dramatúrgica intensifica-se. A linha vertical está simbolicamente presente, no sentido em que os velhos lutam contra o peso do tempo e da velhice. Observamos um esforço de ascensão e de evasão que terminará na queda, na escolha da morte, no encontro entre o abismo e o esquecimento, funcionando ao mesmo tempo como balanço do percurso da vida, o último clarão da memória:

«Les vieux […] luttent contre la pesanteur de l‟âge et du temps. Ils veulent

117

Vernois, Paul, La dynamique théâtrale d’Eugène Ionesco, Klincksieck, Paris, 1991, p.54.

118 Cf. Id. Ib., p.55.

119 Favre, Yves-Alain, Le théâtre d’Ionesco ou le rire dans le labyrinthe, Mont-de-Marsan, Editions José

49 transmettre leur message malgré tout pour barrer la route à la décrépitude et à

la mort. Le vieux constate que „plus on va plus on s‟enfonce‟. […] la pièce se terminera par une chute mortelle du haut en bas, par une suicide des deux vieux incapables de soutenir jusqu‟au bout leur rôle»120.

Com efeito, a queda dos velhos ilustra ainda a frustração face à inércia da humanidade, o bloqueio da acção e da palavra que levam o ser humano ao estado de invisibilidade, de inumano, de fantasmagórico. Ionesco indignava-se perante o espectáculo de uma humanidade adormecida, mergulhada numa amnésia anestésica. A partir deste sentimento de perplexidade, o dramaturgo criou situações dramáticas, onde assistimos ao afogamento colectivo dos indivíduos no vazio:

«Le drame de Les Chaises est que les invités ont refusé l‟effort de cette montée vers la lumière. Il ne restait plus aux vieux qu‟à rejoindre cette humanité médiocre pour se perdre avec elle puisque la réception du message dont ils rêvent est impossible. Les vieux cèdent à la tentation de noyade dans la masse à laquelle Bérenger sera tout près de succomber […]»121.

Em La Cantatrice chauve, as personagens são destituídas de memória e de identidade. Encontram-se num mecanismo de desumanização, tornando-se marionetas sem personalidade. O sintoma de amnésia aproxima-as do estado do inumano. Nancy Lane estabelece uma ligação entre o lado inumano das personagens de Ionesco e o seu bloqueio linguístico:

«indeed, these characters can have no personality because they are not integrated subjects. Undifferentiated from each other and indistinguishable from their surroundings, they are traversed by language, which uses them rather than the other way around. They are vehicles for unveiling the automatisms of language and behavior that mask the metaphysical void of a world in which the mechanical has replaced the human and the personal, where there‟s nothing to say»122.

Por sua vez, Matei Calinescu sublinha o carácter autómato das personagens, associando as falhas da memória e o bloqueio da palavra com um estado patológico. Na verdade, o contraponto delírio/lucidez foi constantemente explorado no teatro ionesquiano e está ligado ao interesse do dramaturgo em explorar em cena os fundamentos do inconsciente :

120

Vernois, Paul, 1991, op. cit., p.59.

121 Id.Ib., p.59.

122 Lane, Nancy, Understanding Eugène Ionesco, Columbia (S.C.), University of South Carolina press,

50 «Les personnages de La Cantatrice deviennent de plus en plus des fantoches

ou des marionnettes qui parlent en clichés mais aussi, d'autre part, des êtres qui suggèrent différentes affections psychiques (amnésie, confusion mentale, délire stéréotypique, paranoïa). Ce dernier aspect justifie certaines mises en scène qui ont souligné l'élément potentiellement psychopathologique de la pièce»123.

O carácter inumano das personagens parece também surgir relacionado com as marcas surrealistas da peça. O diálogo dos Martin, onde se demonstra a perda de memória ilustra de certo modo a desumanização, o ser humano destituído de referências espaciais e temporais. Este estado de amnésia aproxima-se do universo surrealista, pela forma como a linguagem passa a ser desenvolvida : «proverbes et exclamations sont soumis à des déformations à effets surréalistes. [...] L'effet surréaliste [...] relève d'une confusion mnémonique [...] caractéristique d'un locuteur novice d'une langue, qui cherche ses mots par assonances et confond les expressions idiomatiques»124. Claude Abastado sublinha o carácter engagé da representação do inumano:

«Les préoccupations d‟Ionesco et sa vision de la réalité, en effet, rejoignent celles des écrivains et des philosophes qui, au lendemain de la guerre, montraient l‟individu cerné de toutes parts par l‟inhumain, étranger condamné à la lucidité, condamné au huis clos où le regard de l‟autre est un enfer, assumant un destin qu‟il n‟a pas choisi, voué à tous les échecs» 125

.

O facto de Sémiramis perguntar ao Velho a história de Paris, todas as noites, é uma forma de lutar contra a perda de memória: «C'est comme si j‟oubliais tout, tout de suite… J‟ai l‟esprit neuf tous les soirs… Je redeviens neuve, pour toi mon chou, tous les soirs»126. Por sua vez, em La Cantatrice chauve, no diálogo dos Smith, quando eles repetem o que acabaram de comer, os dias da semana e a sua morada, lutam contra o sintoma amnésico. Ionesco escreveu esta peça inspirado num manual de aprendizagem do inglês, espantado pela descoberta e a repetição de aspectos universais, como os dias da semana, no ensino de uma língua estrangeira. Se a repetição num ritmo célere e mecânico contribui para o efeito cómico, inscreve-se também numa dimensão trágica. O homem perde as suas referências, confundindo as verdades universais e os traços da sua identidade, lutando contra a amnésia, confrontando-se com o facto de já não se conhecer

123

Calinescu, Matei, op. cit., p.248.

124 Id.Ib., p.98.

125 Abastado, Claude, Eugène Ionesco, Paris, Bordas, 1971, p.249. 126 Les Chaises, p.144.

51 a si próprio e não reconhecer o outro: «L‟incroyable dialogue des Martin, tâtonnant dans