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Incursões do teatro do absurdo em Portugal

1- Herdeiros do absurdo francês

Em Portugal, designam-se, de um modo mais ou menos consensual, por representantes do teatro do absurdo, os autores cuja produção teatral surge na década de 60 e cuja dramaturgia remete para uma linha artaudiana, em contraponto com a linha brechtiana produzida na mesma época.

Tal como no caso francês, os dramaturgos portugueses representantes deste modelo dramatúrgico, não fundaram nenhuma escola ou corrente artística comum e em alguns casos chegam mesmo a rejeitar a ligação com o teatro do absurdo. Numa entrevista concedida a Sebastiana Fadda e publicada em O Teatro do Absurdo em

Portugal, Jaime Salazar Sampaio afirma não concordar com a designação de teatro do

absurdo, mas confessa sentir-se profundamente devedor à dramaturgia de Samuel Beckett, não se sentindo no entanto influenciado por Ionesco200. Já Hélder Prista

200 Cf. Fadda, Sebastiana, O Teatro do Absurdo em Portugal, Lisboa, Edições Cosmos, 1998, p.492:

«Começarei por dizer que a designação „Teatro do Absurdo‟ me parece pouco teatral… e bastante absurda. Isto porque, para mim, todo o teatro mergulha mais ou menos na Realidade e, nesse sentido muito geral, todo o teatro é pois realista. Acontece porém que uma parcela substancial da realidade é (ou parece ser aos olhos de alguns) absurda, sendo pois natural que certos dramaturgos se ocupem dela. Suponho mesmo que, em certa medida, o teatro sempre falou do absurdo […] resta-me afirmar que não sinto grandes afinidades com o teatro de Ionesco, reconhecendo pelo contrário dever muito a Beckett».

82 Monteiro afirma reconhecer a ligação ao teatro do absurdo, mas apenas no que diz respeito às primeiras peças produzidas na década de 60201.

Por seu lado, Miguel Barbosa chama a atenção na mesma entrevista para o facto de a crítica se ter dividido ao descrever a sua obra e refere uma série de críticos que o ligam a autores tão diversos como Pirandello, Gorki, Artaud, Raúl Brandão, Genet, Adamov, Roman Chalbaud, entre outros202. Mostra-se ainda relutante perante o termo “teatro do absurdo”, enunciando a seguinte questão: «Quantas situações absurdas de crítica social e política não há no teatro de Shakespeare, Molière ou até Gil Vicente? E ninguém lhes chama „Teatro do Absurdo‟»203

.

Recordemos a este propósito que Ionesco reagiu com a mesma relutância a esta classificação e curiosamente com palavras semelhantes. Numa conferência de imprensa decorrida nos anos 90, o dramaturgo romeno afirmava que o seu teatro não podia ser considerado absurdo, a menos que Shakespeare fosse também classificado do mesmo modo204.

Para além do anacronismo óbvio e da impossibilidade de integrar a dramaturgia de Shakespeare, Gil Vicente ou Molière na estética absurdista dos anos 50, deve-se realçar o facto de que as dramaturgias do absurdo do século XX estão intrinsecamente ligadas ao seu tempo, e de um modo particular ao período do pós-guerra europeu. Ora tanto Ionesco como Miguel Barbosa produziram as suas obras enquanto homens do seu tempo, e no panorama teatral da segunda metade do século XX, as suas dramaturgias apresentam afinidades com a corrente artaudiana, em contraponto à estética brechtiana. No entanto, é curioso observar que certos traços e ecos da dramaturgia do absurdo estão necessariamente presentes em Shakespeare, Molière e Gil Vicente. Basta pensarmos na forma como estes três autores renovaram a noção do cómico em cena e abordaram a fronteira entre o delírio e a razão, a realidade e o irreal.

A esse propósito, partilhamos da opinião de Sebastiana Fadda quando aponta a proximidade entre Beckett e Gil Vicente, através do exemplo de um espectáculo intitulado Uma Visitação, baseado em várias peças vicentinas e levado à cena pela Escola

201 Id. Ib., p.492. 202 Cf. Id. Ib., p.491. 203 Cf. Id.Ib., p. 493.

204 O vídeo da respectiva conferência foi recentemente transmitido no âmbito da exposição «Ionesco»,

apresentada pela Bibliothèque Nationale de France (site François-Mitterrand - Galerie François I), de 6 de Outubro de 2009 a 3 de Janeiro de 2010.

83 da Noite de Coimbra em 1995. No programa do espectáculo justifica-se essa afinidade do seguinte modo:

«Um homem livre diz a verdade. Os seus presságios acerca da inquisição e dos tempos sombrios que se seguiram tornam-se reais – é preso e condenado a trazer consigo um bobo atado ao pé esquerdo. Enorme e terrível suplício: o filósofo quer ocupar-se das coisas do espírito, mas o parvo interrompe-o constantemente com perguntas inúteis e comentários impertinentes. Vicente? Beckett?»205.

Independentemente da questão da terminologia206, parece-nos evidente o facto de haver uma permeabilidade entre as diferentes culturas na produção literária como factor inerente à produção dramática que ocorreu no pós-guerra europeu. Num artigo intitulado «Entre o Uno e o Diverso: Introdução à Literatura Comparada», Claudio Guillén afirma a importância da intertextualidade no espaço literário, ao lembrar que «nem tudo é individualidade nessa ilha encantada que é a obra literária»207. A esse propósito cita a seguinte afirmação de Octávio Paz, onde a arte e a literatura são caracterizadas, enquanto lugares de cruzamentos e de confluências:

«A arte não pode ser reduzida à terra, ao povo e ao momento que a produzem; no entanto, é inseparável deles… A obra é uma forma que se desprende do solo e não ocupa lugar no espaço: é uma imagem. Só que a imagem ganha corpo porque está atada a um solo e a um momento: quatro choupos que se elevam do céu de uma poça de água, uma onda nua que nasce de um espelho, um pouco de água ou de luz que escorre entre os dedos de uma mão, a reconciliação de um triângulo verde e um círculo cor de laranja. A obra de arte deixa-nos entrever, por um instante, o além e o aquém, o sempre e o agora»208.

Por outro lado, ao relacionarmos os autores portugueses com os representantes do absurdo francês partimos da ideia de “Weltliteratur” formulada por Goethe, ou seja, a ideia de um diálogo entre as diferentes literaturas no mundo. Se tivermos em conta o contexto intelectual português condicionado pela ditadura estadonovista, a criação literária e artística dessa época é necessariamente associada a uma condição de diálogo

205

Cf. AA.VV., Programa do espectáculo Uma Visitação, Coimbra, Escola da Noite, Setembro de 1995

apud Fadda, Sebastiana, 1998, op.cit., p.219.

206 Desenvolvida no primeiro capítulo da primeira parte desta tese dedicada às dramaturgias do absurdo em

França. Ver supra.

207

Guillén, Claudio, «Entre o Uno e o Diverso: Introdução à Literatura Comparada» in Buescu, Helena Carvalhão et al. (dir.), Floresta Encantada. Novos Caminhos da Literatura Comparada, Lisboa, Dom Quixote, 2001, p.397.

84 com a fonte francesa caracterizada por Eduardo Lourenço como «aquele interlocutor – sempre um pouco idealizado e inacessível – que era há muito para nós privilegiado. Apesar de tudo, tanto as linhas mestras da cultura oficial como as da oposicionista […] provinham de lá»209. De facto, os autores bloqueados na sua liberdade de criação acabavam por procurar nos testemunhos de produção literária e artística francesa, uma fonte de estímulo. Não é por acaso que a década de 60 surge como trampolim para o aparecimento de importantes traduções. É uma década em que vários escritores censurados se assumem como tradutores de obras estrangeiras, como forma de divulgar a renovação intelectual e artística que se vivia na Europa e à qual Portugal assistia passivamente. Assim, a ideia de espaço literário como um espaço intertextual manifesta- se evidente no contexto da produção literária portuguesa durante o fascismo.

Apesar de reconhecermos a originalidade dos dramaturgos portugueses e dos seus percursos estéticos de trilhos bem independentes dos dramaturgos do absurdo francês, observamos nas suas dramaturgias traços de inevitável confluência com a renovação teatral edificada por Ionesco e Beckett na França dos anos 50. De facto, a obra dramática destes autores surgiu intrinsecamente ligada à sua época, num momento em que a escrita era condicionada pelo peso asfixiante da censura e em que a primeira fonte intelectual e artística, que alimentava de um modo mais ou menos clandestino o nosso país dormente, vinha justamente de França. Nesse sentido, procuramos relacionar os autores representantes do absurdo português com o absurdo francês tendo em conta essa noção de espaço literário, definido por Xavier Garnier et Pierre Zoberman como uma tecelagem, «un lieu de superpositions, d'échos, de répétitions»210. É nossa intenção demonstrar com a análise dos textos e a recepção crítica dos mesmos a permeabilidade dos autores portugueses relativamente à fonte francesa. Partimos então de um confronto de dois espaços literários que nas suas diferenças apresentam um diálogo de confluências no contexto do pós-guerra.

209 Lourenço, Eduardo, A Nau de Ícaro. Imagem e Miragem da Lusofonia, Lisboa, Gradiva, 1999, p.13. 210 Garnier, Xavier et Zoberman, Pierre, Qu'est-ce qu'un espace littéraire ?, Vincennes, Presses

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