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CAPÍTULO 2 – INTERAÇÃO EM SALA DE AULA

4. A AULA E SUAS INSTÂNCIAS DISCURSIVAS

A partir de uma perspectiva mais enunciativa e menos etnográfica e sociolinguística, ao longo das observações de aula que serviram de base para sua pesquisa, Batista (1997) conclui também que “o uso da linguagem na aula originava um conjunto diversificado de textos, produzidos e utilizados em diferentes condições enunciativas” (p. 32). Segundo o autor, tais textos eram heterogêneos e dispersos, mas, de algum modo, eram articulados e homogeneizados. A análise para determinar “os mecanismos que asseguravam àquele conjunto heterogêneo e disperso de textos a possibilidade de se articular e de seguir construindo uma progressão discursiva” revelou que a produção discursiva se organizava em duas instâncias ― a instância da aula e a instância do exercício ―, que ofereciam “diferentes e relacionadas condições de produção de discurso, isto é, diferentes e relacionadas modalidades de enunciação, objetivos e estratégias discursivas” (p. 33). Embora apresentem diferentes aspectos, Batista salienta que as duas instâncias “mantêm entre si relações de constituição” e que “sua alternância possibilita a interlocução em sala de aula, assim como sua continuidade” (p. 34).

4.1. A instância da aula

A interlocução que se realiza oralmente entre professor e turma em sala de aula é aquela produzida sob orientações e condições da instância da aula. Por meio da análise de tal interlocução, de acordo com o Batista (1997), é

possível depreender três conjuntos de estratégias discursivas que se

realizam na instância em questão: “aquelas por meio das quais se faz a

organização local e intermediária do discurso, aquelas por meio das quais se constituem os polos da interlocução e aquelas por meio das quais se faz a organização global da interlocução.” (p. 39)

Por meio do primeiro conjunto de estratégias, organiza-se localmente o discurso, ou seja, organizam-se as unidades menores desse discurso com base em sequências triádicas de turnos, em que “a fala do aluno se encontra controlada e envolvida pelos turnos de pergunta e reação do professor” (p. 41). Para ilustrar tal constatação, Batista descreve o momento de correção de um estudo de texto feito por uma professora e sua turma. A cada questão corrigida, a interlocução materializava-se por meio de sequências triádicas e, assim que a professora satisfazia-se com a resposta dada por seus alunos, ela abandonava a pergunta em que vinha se baseando e propunha uma nova questão. O pesquisador aponta que “organiza-se, assim, também, a interlocução num nível intermediário. Um conjunto de sequências triádicas em torno de uma mesma pergunta retirada dos exercícios ou de atividades feitas anteriormente formam uma unidade hierarquicamente superior. É, assim, através desses processos que progride, de forma organizada, o discurso em sala de aula.” (p. 42)

Batista analisa que, ao longo dos turnos, observam-se estratégias adotadas pela professora para sempre tornar presente na interlocução um objeto na fala dos alunos passível de correção. Entretanto, seu objetivo não está meramente na correção, mas também em “fornecer objetos para que se possa conhecer, avaliar e, assim, corrigir a aprendizagem dos alunos” (p. 44). Segundo o autor, o discurso da docente pode “progredir apenas na medida em que há objetos a serem objetivados e corrigidos”. Batista explica que tal discurso, tendo em vista sua função corretiva, “é uma fala que se alimenta dos erros, isto é, dos objetos objetivados pelo professor. Não havendo tais objetos, o discurso cessa” (p. 45). Com base em suas observações, o pesquisador afirma que, mesmo em situações em que há a introdução de novos conteúdos e não há correção de exercícios, o discurso do professor continua organizando- se da mesma forma: sequências triádicas permeadas pelas funções de avaliação e correção. Tal constatação elucida o fato de que

o trabalho de transmissão de conteúdos é, assim, não simplesmente uma comunicação, mas uma comunicação que pretende se fazer em substituição ao conhecimento anterior do aluno ou, pelo menos, com base na distância, maior ou menor, que separa um e outro, objetivadas pelas perguntas do professor. Além disso, as recorrentes contradições existentes

entre o conhecimento intuitivo dos alunos e os conteúdos transmitidos acabam por acentuar o caráter corretivo da comunicação. (BATISTA, 1997, p. 49)

O segundo conjunto de estratégias, aquelas que visam a constituição de

polos de interlocução, realiza-se com frequência por meio de atos de fala de

repreensão, cujo objetivo é reduzir a possibilidade de interações em sala de aula, de forma a constituir um corpo unificado de alunos centrado pela atenção na figura do professor.

Batista aponta que se constituem, assim, os polos da interlocução e marcam-se os papéis daqueles que o ocupam: “o reconhecimento tácito da autoridade do professor, promovido pela estratégia, implica ainda, o reconhecimento tácito da posse, por ele, da dominância da interlocução, e o reconhecimento, também tácito, do papel dominado dos alunos nessa interlocução” (p. 54).

O pesquisador explica que a constituição desses polos de interlocução na sala de aula, além de ser uma violência à diversidade real dos alunos e à real multiplicidade das formas de interlocução, é provisória em sua base, pois, em diversas ocasiões, tal configuração se desfragmentará. Além disso, o dirigir-se à turma como um todo não implica em uma escuta homogênea. Esse caráter provisório dos polos, segundo Batista, é acentuado quando se tem em vista as funções de avaliar e corrigir objetivadas pela interlocução. Para que tais funções sejam possíveis, é preciso dirigir-se a alunos específicos, o que fragmenta os polos constituídos da interlocução. Para que haja reconstituição e manutenção dos polos de interlocução, o professor faz uso de recursos como a organização local da interlocução em sequências triádicas; reforço de sua autoridade; apelo a formas de repreensão; uso de perguntas retóricas e a aplicação das respostas dadas por alunos à turma como um todo; constituição de subclasses de alunos e antecipação de objetos de correção.

Batista ainda estabelece uma relação entre o processo de unificação dos alunos num único polo e os processos de seleção e distribuição escolares. De acordo com o autor,

classificando os alunos segundo sua faixa etária, segundo uma avaliação de seu desenvolvimento cognitivo, segundo sua história escolar e sua origem socioeconômica, os mecanismos

de enturmação opõem e identificam grupos de alunos que constituirão turmas “homogêneas”, “grupos iguais”, “crianças com um mesmo tipo de interesse”: corpos unificados. (BATISTA, 1997, p. 60)

Assim, o autor aponta o fato de que o processo de enturmação promove a unidade entre os interlocutores do professor como constituinte de um processo mais geral de seleção e distribuição pelos espaço e tempo escolares.

Por fim, Batista explica que as estratégias que organizam globalmente a interlocução, ou seja, a organização global da interlocução, agem através de dois mecanismos distintos. O primeiro deles, aplicado quando o objeto de ensino é gramatical, constitui-se no desenvolvimento, por meio de análise, do um objeto de ensino gramatical e a retomada, por meio da síntese da interlocução anterior. O pesquisador explica que esse mecanismo organiza a interlocução “como um conjunto de sequência de atividades relacionadas numa cadeia de discurso que progride temporalmente de tal modo que seus momentos ulteriores contêm parte dos anteriores, acumulados pelo contínuo movimento de recuo e avanço, de síntese e de análise” (p. 67).

Segundo Batista, quando se trabalhava em sala com objetos de ensino relacionados à leitura, escrita e linguagem oral, o mecanismo de organização da interlocução era diferente do verificado anteriormente. Ao contrário de objetos de ensino gramatical, objetos relacionados à leitura, escrita e linguagem oral não podem ser trabalhados em uma sequência de progressão, como, por exemplo, faz-se com pronomes definidos, indefinidos, relativos. Assim, não há necessidade de síntese do objeto anterior para início da análise do novo objeto. Para esses casos, o autor notou que se verificava a repetição de uma estrutura de desenvolvimento organizada da seguinte forma: um texto extraído da obra de um escritor ou de uma tradição folclórica e um conjunto de exercícios intitulados “estudo das ideias”, “estudo do vocabulário”, “ortografia”, “redação”, “linguagem oral”.

4.2. A instâncias do exercício

Batista explica que a instância do exercício ocorre quando o professor interrompe o fluxo de seu discurso e indica uma atividade a ser realizada isoladamente e em geral situada no livro didático.

Tal instância, de acordo com o autor, organiza-se em torno de um conjunto de textos escritos e articulados entre si. Ao analisar a interlocução estabelecida entre autores do livro didático e alunos, Batista aponta que há um apagamento do sujeito da enunciação. Entretanto, fatores como, por exemplo, palavras em negrito, enumerações e emprego do imperativo constroem um sujeito didático, que faz apreender. Consequentemente, um lugar correspondente constrói-se para o leitor: o de aprendiz. Os textos-exercícios, de acordo com a análise do pesquisador, “forçam a aprendizagem, fazendo com sejam postos em práticas os saberes adquiridos através de uma forma predominantemente passiva”. Além disso, esses textos-exercícios também objetivam permitir ao professor conhecer e avaliar a aprendizagem do aluno.

Batista elucida que, por um lado, esses textos constroem e predispõem os interlocutores da atividade em que nessa instância se dá, suas relações, objetivos e estratégias. Por outro lado, esses textos constroem os horizontes da interlocução que se realiza na instância da aula, grande parte de suas estratégias e suas formas de progressão e articulação de discurso.

Ao analisar o livro didático utilizado pela turma, Batista descreve os mesmos mecanismos de organização da interlocução verificados na instância da aula. Para objetos de ensino gramatical, havia, por meio de textos e exercícios, o desenvolvimento, por meio de análise, do objeto questão, a retomada, por meio da síntese da interlocução anterior e, finalmente, a introdução de um novo objeto. Para o caso de objetos relacionados aos usos da língua, havia apenas a repetição da mesma organização estabelecida pela articulação entre um texto-base e os exercícios subsequentes.

Diante disso, Batista conclui que a organização da interlocução realizada na instância da aula provém da organização dos textos em torno dos quais se estrutura a instância do exercício.

Ao que tudo indica, a heterogeneidade e a dispersão da produção discursiva da aula ― constatada inicialmente ― é

homogeneizada e articulada em grande parte,

consequentemente, por esse conjunto de textos que sustentam a interlocução na instância do exercício. (BATISTA, 1997, p. 88)

Dessa forma, as relações entre as duas instâncias em questão podem ser caracterizadas como relações de constituição. Para Batista, a alternância da realização de atividades em ambas as instâncias assegura a continuidade do discurso em sala de aula. Além disso, ao considerar a influência predominante da instância do exercício (e do material didático, portanto) na instância da aula, o pesquisador atribui ao professor o papel de alguém que talvez não ensine propriamente, mas alguém que administre e gerencie o ensino. O professor, nesse contexto, não necessita de um conhecimento acerca do objeto de ensino, “mas do conhecimento sobre o processo de organização de sua prática e sobre as relações dos alunos sobre esses saberes que se ensinam” (p. 88).

O autor afirma que todo esse processo evidencia “um fosso entre a representação do professor como aquele que domina um conjunto de conhecimentos sobre o que ensina e a realidade de sua prática” (p. 88). Tal fato, de acordo com Batista, constitui uma ameaça à autoridade do docente e, consequentemente, ao processo de organização do discurso. Assim, fica evidente a necessidade do professor “de desenvolver estratégias que, reforçando sua autoridade e a legitimidade de suas ações, contribuam para atenuar essa contradição” (p. 99).

Dessa forma, o subsídio teórico fornecido por Batista (1997) quanto à constituição da interlocução em sala de aula e às interações entre professor- aluno e aluno-material será adotado como categoria de análise para verificar se tais aspectos se mantêm ou não no contexto de aula mediada por essas novas tecnologias.

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