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AUTO-REALIZAÇÃO DO ESPÍRITO E (OU) AUTONOMIZAÇÃO DO ÚNICO.

3 – GENEALOGIA DA REVERSÃO ÚNICA.

3.2 HEGEL E STIRNER.

3.2.4 AUTO-REALIZAÇÃO DO ESPÍRITO E (OU) AUTONOMIZAÇÃO DO ÚNICO.

Vejamos agora de fonte primária, como, das raízes hegelianas fincadas no profundo alto solo do Espírito universal, Stirner parte para (a)firmar sua autonomização no solo próprio da epidérmica individualidade corpórea e egoísta.

De saída, vejamos o que Hegel diz sobre a atitude (fundamental para a autonomização stirneriana, conforme já vimos) do sujeito que dissolve incessantemente todo pensamento:

(...) Vaidade essa capaz de tornar vã toda a verdade, para retornar a si mesma e deliciar-se em seu próprio entendimento; dissolve sempre todo o pensamento, e só sabe achar seu Eu árido em lugar de todo o conteúdo. Esta é uma satisfação que deve ser abandonada a si mesma, pois foge o universal e somente procura o Ser-para-si. (HEGEL, 2002, p. 77).

Aqui, vemos que esta idéia de dissolvência já estava em Hegel, sendo que para este, tal atitude que leva a “só saber achar seu Eu árido” deve ser abandonada, pois, afirmando o particular, vai no sentido contrário daquilo que para ele detém a preeminência: o universal.

Vejamos mais sobre como se dá, para o filósofo esta relação entre o universal e o particular:

(...) O que é consumido é a essência; a individualidade, que às custas do universal se mantém e se dá o sentimento de sua unidade consigo mesma, suprassume assim diretamente sua oposição com o outro, por meio da qual é para-si. (...) (HEGEL, 2002, p. 139).

Conforme se vê, é o universal que sustém o particular, a individualidade. Este último trecho da citação, em destaque, introduz o tema da importância do outro para o auto- reconhecimento, a consciência de si, da individualidade. Porém, antes de abordarmos este tema, vejamos o que é essa substância universal que detém a proeminência no pensamento do mestre dialético:

Para a consciência, o que vem-a-ser mais adiante, é a experiência do que é o espírito: essa substância absoluta que na perfeita liberdade e independência de sua oposição – a saber, das diversas consciências-de-si para si essentes – é a

Portanto, o Espírito é a substância absoluta, a totalidade, a unidade dos Eus: “Eu que é Nós, Nós que é Eu”, para cuja experiência a consciência-de-si tende. Esta secundarização do Eu particular, individual - em relação a isto que constitui virtualmente uma persona autônoma (o Espírito) – se verifica também no próprio processo de constituição da autoconsciência individual, da consciência-de-si:

Como porém é consciência, cada extremo vem mesmo para fora de si; todavia ao mesmo tempo, em seu ser-fora-de-si, é retido em si; é para-si; e seu ser- fora-de-si é para ele. É para ele que imediatamente é e não é outra consciência; e também que esse Outro só é para si quando se suprassume como para-si- essente; e só é para si no ser-para-si do Outro. Cada extremo é para o Outro o meio-termo, mediante o qual é consigo mesmo mediatizado e concluído; cada um é para si e para o Outro, essência imediata para si essente; que ao mesmo tempo só é para si através dessa mediação. Eles se reconhecem como reconhecendo-se reciprocamente. (HEGEL, 2002, p. 144).

Aqui, vê-se que, em Hegel, o processo de constituição da auto-consciência individual, da consciência de si, o tornar-se ser-para-si, tem como momento fundamental o reconhecer-se pela via do reconhecimento de si no Outro, e vice-versa. O Eu particular, individual, depende de outro Eu, semelhante a ele, para desenvolver sua autoconsciência, para tornar-se ser-para-si. Por outro lado, sabemos que, em Stirner, em que pese o reconhecimento que este faz (e do qual já tratamos no capítulo sobre O Único) de certa dimensão transpessoal do seu Eu, este (o seu Eu) constitui-se como o seu único início, fim e meio.

Os aspectos até aqui aludidos evidenciam a oposição entre os pensamentos de Hegel e de Stirner. Porém, há alguns pontos em que ambos parecem se aproximar. Um desses pontos é a questão da não-estabilidade do Eu particular como sendo, paradoxalmente, condição fundamental para a sua auto-realização. Conforme vimos no capítulo “O Único”, especificamente na síntese que fizemos do artigo de Stirner intitulado O Falso Princípio da Nossa Educação, para Max, é preciso saber morrer, para alcançar-se a si mesmo. Esta idéia de um constante movimento de morrer e renascer como sendo condição da vitalidade do indivíduo, permanece em Der Einzige e parece ser uma repercussão, neste, da seguinte perspectiva verificada na Fenomenologia do Espírito:

Devem travar essa luta porque precisam elevar à verdade, no Outro e nelas mesmas, sua certeza de ser-para-si. Só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade [se comprova]; e se prova que a essência da consciência-de-si não é o ser, nem o modo imediato como ela surge, nem o seu submergir-se na expansão da vida; mas que nada há na consciência-de-si que não seja para ela momento evanescente; que ela é somente puro-ser-para-si. O indivíduo que não arriscou a vida pode bem ser reconhecido como pessoa; mas não alcançou a verdade desse reconhecimento como uma consciência-de-si-independente. Assim como arrisca a vida, cada um deve igualmente tender à morte do outro; pois para ele o Outro não vale mais que ele próprio. Sua essência se lhe apresenta como um Outro, está fora dele; deve suprassumir seu ser-fora-de-si. O Outro é uma consciência essente e de muitos modos enredada; a consciência-de-si deve intuir seu ser-Outro como puro ser para-si, ou como negação absoluta. (HEGEL, 2002, p. 145-146).

A similaridade entre a idéia central deste pensamento e a idéia, fundamental para a perspectiva stirneriana, do saber morrer para alcançar-se a si mesmo, é flagrante.

Outro ponto em que as perspectivas dos autores em pauta parecem se aproximar encontra-se na discussão sobre a relação da subjetividade individual com as coisas. A esse respeito, Hegel diz:

(...) São essenciais ambos os momentos; porém como, de início, são desiguais e opostos, e ainda não resultou sua reflexão na unidade, assim os dois momentos são como duas figuras opostas da consciência: uma, a consciência independente para a qual o ser-para-si é a essência; outra, a consciência dependente para a qual a essência é a vida, ou o ser para um Outro. Uma é o senhor, outra é o escravo. (HEGEL, 2002, p. 147).

E ainda,

O senhor também se relaciona mediatamente por meio do escravo com a coisa; o escravo, enquanto consciência-de-si em geral, se relaciona também negativamente com a coisa, e a suprassume. Porém, ao mesmo tempo, a coisa é independente para ele, que não pode portanto, através do seu negar, acabar com ela até a aniquilação; ou seja, o escravo somente a trabalha. Ao contrário, para o senhor, através dessa mediação, a relação imediata vem-a-ser como a pura negação da coisa, ou como gozo – o qual lhe consegue o que o desejo não conseguia: acabar com a coisa, e aquietar-se no gozo. O desejo não o conseguia por causa da independência da coisa; mas o senhor introduziu o escravo entre ele e a coisa, e assim se conclui somente com a dependência da coisa, e puramente a goza; enquanto o laço da independência deixa-o ao escravo, que a trabalha. (HEGEL, 2002, p. 148).

Esta idéia de duas formas da consciência se encontra, de certo modo, no cerne do pensamento de Johan Caspar Schmidt desde O Falso Princípio da Nossa Educação. Trata-se, nomeadamente, da sua idéia de apropriação, onde se verifica uma distinção entre um saber que é

meu ter, uma posse minha, e um saber – preconizado por Schmidt – que está tão intimamente unido ao que eu sou como Eu (tornando-se pessoal), que se reduz a uma simples pulsão minha: a vontade. Aqui já não existe senhor nem escravo (nem há nenhum vislumbre de qualquer possibilidade de “aquietação no gozo”), pois Caspar Schmidt propugna a possibilidade de reduzir as duas formas de relação com as coisas (saber) à forma “das experiências sublimadas no simples sentido do tato”, porém, como dissemos, a similaridade entre as duas perspectivas no que concerne às formas de relação da consciência com a coisa (saber) – uma forma dependente para a qual a essência é a vida (nos termos de Stirner: um saber que adere exclusivamente aos objetos), e outra forma independente para a qual o ser-para-si é a essência (nos termos de Stirner: um saber que desaparece no ponto invisível do Eu, que se torna auto-consciência do espírito, transmutando-se em pulsão como se fosse um instinto deste) – é flagrante.

Porém, estes aparentes pontos de proximidade entre as perspectivas do egoísta e a do mestre da dialética não devem nos enganar. Para aquele, o constante recriar-se e o exercício da apropriação têm como pontos de partida e de chegada a singularidade do indivíduo. Por outro lado, para este, mesmo tratando-se de – o “pôr a vida em risco” e a “divisão da consciência em senhor e escravo” – momentos fundamentais do processo de constituição da auto-consciência individual, da consciência de si, do tornar-se ser-para-si, esse processo tem como pontos de partida e de chegada aquilo que é a única singularidade real na perspectiva da Fenomenologia: o Espírito universal e totalizador. Senão, vejamos:

(...) Só que, ao fazer essa experiência – de que o sepulcro de sua essência imutável efetiva não tem nenhuma efetividade, e de que a singularidade evanescente, enquanto evanescente, não é a verdadeira singularidade -, a consciência renunciará a buscar a singularidade imutável como efetiva, ou a fixá-la como evanescente; e só assim está apta a encontrar a singularidade como a verdadeira, ou como universal. (HEGEL, 2002, p. 164-165).

Na dimensão política, Stirner também deixa transparecer sua inspiração hegeliana posto que, para este (Hegel), a comunidade, a família e o governo operam no sentido de assujeitar – ao Espírito - as singularidades (pretensas) individuais. E também aqui, como sabemos, Max situa-se em contraposição, propondo a rebelião do indivíduo contra estes assujeitamentos. Na perspectiva de Hegel tal postura configura um verdadeiro sacrilégio, conforme podemos inferir da sua visão sobre lei e ética:

(...) No entanto, a diferença dos sexos e de seu conteúdo ético permanece na unidade da substância, e seu movimento é justamente o constante vir-a-ser da mesma substância. Pelo espírito da família, o homem é enviado à comunidade e nela encontra sua essência consciente-de-si. Como desse modo a família possui na comunidade sua universal substância e subsistência, assim, inversamente, a comunidade tem na família o elemento formal de sua efetividade; e na lei divina, sua força e legitimação.

Nenhuma das duas leis é unicamente em si e para si. A lei humana, em seu movimento vital, procede da lei divina; a lei vigente sobre a terra, da lei subterrânea; a lei consciente, da inconsciente; a mediação, da imediatez: - e cada uma retorna, igualmente, ao [ponto] donde procede. A potência subterrânea, ao contrário, tem sobre a terra sua efetividade: mediante a consciência torna-se ser-aí e atividade. (HEGEL, 2002, p.317).

Portanto, para Hegel, é a lei divina que anima e legitima a comunidade e a família, bem como é dela que procede a lei humana. Também para Stirner a “vontade da sociedade”, a lei, é algo que se coloca acima dos indivíduos, transcende-os, e também por isto, o individualista se revolta contra ela.

Esse “divino” acima dos indivíduos vai assumindo uma personalidade independente mesmo em tudo que – e que em tudo - os transcende e os assujeita, conforme podemos conferir aqui:

Com efeito, a comunidade é um povo; ela mesma é individualidade e essencialmente só é assim para si, enquanto outras individualidades são para ela; as exclui de si e se sabe independente delas. (...) (HEGEL, 2002, p. 330).

Isto nos leva à (re)tomada do ponto sobre o qual reside a culminância da contraposição de Stirner a Hegel (pois trata-se do ápice do pensamento deste): a visão (do mestre dialético) de um ente que antecede e transcende os indivíduos e que estaria para estes assim como a mente está para os pensamentos, conforme podemos conferir aqui:

A livre potência do conteúdo determina-se de modo que a dispersão na pluralidade absoluta dos átomos pessoais, pela natureza dessa determinidade, é recolhida ao mesmo tempo em um só ponto, a eles estranho e igualmente carente-de-espírito. Esse ponto, de um lado, tal como a rigidez da personalidade daqueles átomos, é efetividade puramente singular; mas em oposição à sua singularidade vazia, tem para eles, ao mesmo tempo, a significação de todo o conteúdo, e, por isso, da essência real. É a potência real e a efetividade absoluta, em contraste com a efetividade daqueles [átomos pessoais] que se presume absoluta mas que é, em si, carente-de-essência. Esse senhor do mundo é, para si, dessa maneira a pessoa absoluta, que ao mesmo tempo abarca em si todo o ser-aí, e para cuja consciência não existe espírito mais elevado. É pessoa, mas a pessoa solitária que se contrapõe a todos. Esses “todos” constituem a universalidade vigente da pessoa, pois o

singular como tal só é verdadeiro como multiplicidade universal da singularidade; separado dela, o Si solitário é, de fato, o Si inefetivo carente-de- força. (HEGEL, 2002, p. 334).

E mais:

O senhor do mundo tem a consciência efetiva do que ele é – [a saber] a potência universal da efetividade – na violência destruidora que exerce contra o Si de seus súditos, que se lhe contrapõe. Com efeito, sua potência não é a união do espírito no qual as pessoas reconheçam sua própria consciência-de-si; enquanto pessoas são antes para si, e excluem a continuidade com outras, da absoluta rigidez de sua atomicidade. Estão assim em uma relação unicamente negativa, seja umas com as outras, seja para com o senhor do mundo, o qual é seu [nexo de] relacionamento, ou sua continuidade. Enquanto tal continuidade, o senhor do mundo é a essência e o conteúdo do formalismo das pessoas; conteúdo, porém, que lhes é estranho, e essência que lhes é hostil; pois, antes, suprime o que para elas tem valor como essência: o ser-para-si vazio de conteúdo, e, enquanto continuidade de suas personalidades, precisamente as destrói. (HEGEL, 2002, p. 334-335).

Toda a Fenomenologia do Espírito de Hegel é um tratado sobre o processo da auto- realização histórica deste ente que antecede e transcende os indivíduos e que representa a única realidade na qual e para a qual estes são. Trata-se, já sabemos, do Espírito universal e totalizador. Conforme escreveu Emmanuel Carneiro Leão (2002): “(...) A Fenomenologia é o caminho de constituição do Espírito. O Espírito se faz Espírito caminhando para si mesmo, i.é, construindo os caminhos da e na Fenomenologia. É que não existe caminho sem caminhada. Ao caminhar, o Espírito abre e constrói os caminhos da sua própria Fenomenologia. (...)”

Der Einzige se rebela contra esta visão que afirma a auto-realização do Espírito, desconcertando-a pela afirmação de que a realidade primeira e última de todo espiritual é o único capaz de criar produtos espirituais: o indivíduo singular. Para Max trata-se, portanto, de colocar as coisas em seu devido lugar: o espírito é a criatura e o(s) indivíduo(s) seu(s) criador(es). Trata- se, enfim, de autonomizar o produtor em relação ao seu próprio produto:

Mas, quem é para ti o egoísta? Um ser humano que, em vez de viver para uma idéia, uma causa espiritual, sacrificando a ela os seus interesses pessoais, serve estes últimos. (...)

É por isso que tu desprezas o egoísta, porque ele remete para segundo plano o espiritual para privilegiar o pessoal, e pensa em si quando tu esperarias vê-lo agir por amor a uma idéia. (...)

(...) Por mais místico que isto pareça, é de fato uma experiência cotidiana. Será tu um ser pensante antes de pensares? Ao criares o primeiro pensamento, crias-te a ti próprio, o pensador; pois não pensas antes de pensares um pensamento, ou seja, antes de o teres. (...) (STIRNER, 2004, p. 32-33).