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SUA PROPRIEDADE.

4.4 O CAPITAL E SUA APROPRIAÇÃO ESTR(E)ITAMENTE ECONOMICISTA DE STIRNER.

4.4.1 O CAPITAL, CAPÍTULO I.

Em O Capital, Marx, em que pese o fato de parecer abrir um espaço maior para o papel da subjetividade nos fenômenos que analisa, ao fim e ao cabo apenas promove uma maior elaboração do seu economicismo estr(e)ito, segundo o qual os indivíduos são completamente assujeitados ao modo de produção e até as suas subjetividades são inescapavelmente constrangidas pela dimensão “material”, objetiva da sociedade.

Vejamos um trecho do início do seu Capítulo I:

A riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista configura-se em “imensa acumulação de mercadorias”, e a mercadoria, isoladamente considerada, é a forma elementar dessa riqueza. (...)

A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia. (...) Cada coisa útil, como ferro, papel etc., pode ser considerada sob duplo aspecto, segundo qualidade e quantidade. Cada um desses objetos é um conjunto de muitas propriedades e pode ser útil de diferentes modos. (...)

(...) A própria mercadoria, como ferro, trigo, diamante etc., é, por isso, um valor- de-uso, um bem. Esse caráter da mercadoria não depende da quantidade de trabalho empregado para obter suas qualidades úteis. Ao se considerarem valores-de-uso, sempre se pressupõem quantidades definidas, como uma dúzia de relógios, um metro de linho, uma tonelada de ferro etc. Os valores-de-uso fornecem material para uma disciplina específica, a merceologia. O valor-de-uso só se realiza com a utilização ou o consumo. Os valores-de-uso constituem o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social dela. (...)

O valor-de-troca revela-se, de início, na relação quantitativa entre valores-de- uso de espécies diferentes, na proporção em que se trocam, relação que muda constantemente no tempo e no espaço. Por isso, o valor-de-troca parece algo casual e puramente relativo, e, portanto, uma contradição em termos, um valor- de-troca inerente, imanente à mercadoria. (...) (MARX, 2008, p. 57-58, grifos nossos).

O trecho que grifamos nesta análise econômica, o qual define a mercadoria como sendo “(...) uma coisa que (...) satisfaz necessidades humanas, seja qual for (...), a origem delas,

provenham do estômago ou da fantasia”, nos suscita a impressão de que Marx estaria

reconhecendo aqui uma considerável força de condicionamento da realidade que a subjetividade – a “fantasia” – teria. Tal impressão é reforçada por reflexões como a que está expressa na nota

de rodapé de número vinte e um, ensejada pela seguinte análise de expressões do tipo “20 metros de linho = 1 casaco”:

A forma relativa do valor de uma mercadoria (o linho) expressa seu valor por meio de algo totalmente diverso do seu corpo e de suas propriedades (o casaco); essa expressão está assim indicando que oculta uma relação social. O oposto sucede com a forma de equivalente. Ela consiste justamente em que o objeto material, a mercadoria, como o casaco, no seu estado concreto, expressa valor, possuindo de modo natural, portanto, forma de valor. Isto só vigora na relação de valor em que a mercadoria casaco ocupa a posição de equivalente em face da mercadoria linho. (...) (MARX, 2008, p. 79).

Neste ponto, Marx introduz a aludida nota de rodapé de número vinte e um, qual seja:

É curioso o que sucede com essas conceituações reflexas. Um homem, por exemplo, é rei porque outros com ele se comportam como súditos. Esses outros acreditam que são súditos, porque ele é rei. (MARX, 2008, p. 79).

Como vemos, aqui parece que Marx realmente está reconhecendo, na subjetividade, o caráter de uma força considerável de condicionamento da realidade. Porém, logo nos deparamos com o real caráter de proeminência da dimensão objetiva – na perspectiva de Marx – na determinação da vida dos homens, ao nos depararmos com raciocínios como o do excerto abaixo, segundo o qual: algumas “propriedades da forma de equivalente ficam ainda mais compreensíveis,”

se voltarmos ao grande pesquisador que primeiro analisou a forma do valor, além de muitas formas do pensamento, da sociedade e da natureza: Aristóteles.

De início, exprime ele, claramente, que a forma dinheiro da mercadoria é apenas a figura ulteriormente desenvolvida da forma simples do valor, isto é, da expressão do valor de uma mercadoria em outra qualquer, dizendo: “’5 camas = 1 casa’ não se distingue de ‘5 camas = tanto de dinheiro’.”

Reconheceu ele, ainda, que a relação de valor, existente nessa expressão, determina que a casa seja qualitativamente ligada à cama e que, sem essa igualização, não poderiam coisas de aparência tão diversa ser comparadas como grandezas comensuráveis. “A troca”, diz ele, “não pode existir sem a igualdade, nem a igualdade, sem a comensurabilidade.” Estaca nesse ponto, desistindo de prosseguir na análise da forma de valor. “É, porém, verdadeiramente impossível que coisas tão diversas sejam comensuráveis”, isto é, qualitativamente iguais. Essa igualização tem de ser algo estranho à verdadeira natureza das coisas, portanto, um simples “expediente para atender às necessidades práticas”.

O próprio Aristóteles nos diz, assim, o que o impede de prosseguir na análise: a ausência do conceito de valor. Que é o igual, a substância comum que a casa representa perante a cama na expressão do valor da cama? Tal coisa “não pode, em verdade, existir”, diz Aristóteles. Por quê? A casa representa, perante a cama, uma coisa que a iguala à cama, desde que represente o que é realmente igual em ambas: o trabalho humano.

Aristóteles, porém, não podia descobrir, partindo da forma do valor, que todos os trabalhos são expressos, na forma dos valores das mercadorias, como um só e mesmo trabalho humano, como trabalho de igual qualidade. É que a sociedade grega repousava sobre a escravatura, tendo por fundamento a desigualdade dos homens e de suas forças de trabalho. Ao adquirir a idéia da igualdade humana a consistência de uma convicção popular é que se pode decifrar o segredo da expressão do valor, a igualdade e a equivalência de todos os trabalhos, por que são e enquanto são trabalho humano em geral. E mais, essa descoberta só é possível numa sociedade em que a forma mercadoria é a forma geral do produto do trabalho, e, em conseqüência, a relação dos homens entre si como possuidores de mercadorias é a relação social dominante. O gênio de Aristóteles resplandece justamente na sua descoberta da relação de igualdade existente na expressão do valor das mercadorias. Somente as limitações históricas da sociedade em que viveu impediram-no de descobrir em que consistia, “verdadeiramente”, essa relação de igualdade. (MARX, 2008, p. 81-82, grifos nossos).

Verificamos aqui que, em seu O Capital, Marx apenas aprimora a perspectiva já anunciada – em sua “Ideologia” – da proeminência da dimensão “objetiva”, “material”, na determinação das realidades, inclusive, das próprias subjetividades dos homens. Ora, essa afirmação de que Aristóteles, devido ao modo de organização econômica da Grécia Antiga, “não podia descobrir, partindo da forma do valor, que todos os trabalhos são expressos, na forma dos valores das mercadorias, como um só e mesmo trabalho humano, como trabalho de igual qualidade”, constitui-se como um sofisma. Esse “trabalho humano de igual qualidade”, essa “igualdade e equivalência de todos os trabalhos”, o “trabalho humano em geral”, de fato, não existe. Na realidade, o que existe é o meu trabalho, o teu, o daquele outro etc. que, além de tudo o que significam, em particular, no contexto da – e para a - história de cada um, podem, obviamente, comportar dimensões comuns, porém, são irredutíveis a um caráter estr(e)itamente “genérico”, como quer a teorização de Marx. Parafraseando o compositor e cantor brasileiro, Caetano Veloso: cada um sabe as dores e as delícias de fazer o que faz! Neste debate, concordamos com o velho Aristóteles quando diz que “essa igualização tem de ser algo estranho à verdadeira natureza das coisas, portanto, um simples ‘expediente para atender às necessidades práticas’” de... legitimação da idéia de essência “humana” universal, pela via da legitimação da idéia sucedânea de “trabalho humano em geral” para, assim, legitimar o seu ideal comunista.

Aplicando-se coerentemente e até ao limite o raciocínio firmado por Marx segundo o qual a “objetividade”, a “materialidade” da sociedade determina – mesmo que “em última instância” - a capacidade de compreensão daqueles que nela estão inseridos, teríamos de rejeitar o fato de que os antigos atomistas gregos intuíram a existência daquilo que caracterizou as suas doutrinas – o átomo... pelo simples fato de que eles não viveram em sociedades de “indivíduos atomizados”, como alguns dizem das sociedades ocidentais contemporâneas.

Vejamos agora como Marx parafraseia a idéia stirneriana da criatura que domina (se autonomiza em relação a) seu criador (fantasmagoria), constrangendo-a, porém, ao seu economicismo estr(e)ito:

(...) Mas a forma mercadoria e a relação de valor entre os produtos do trabalho, a qual caracteriza essa forma, nada têm a ver com a natureza física desses produtos nem com as relações materiais dela decorrentes. Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar um símile, temos que recorrer à região nebulosa da crença. Aí, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas que mantêm relações entre si e com os seres humanos. É o que ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo a isso de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável da produção de mercadorias.

(MARX, 2008, p. 94, grifos nossos). E ainda,

(...) Na realidade, a condição de ter valor só se fixa nos produtos do trabalho quando eles se determinam como quantidades de valor. Estas variam sempre, independentemente da vontade, da previsão e dos atos dos participantes da troca. Para estes, a própria atividade social possui a forma de uma atividade das coisas sob cujo controle se encontram, ao invés de as controlarem. (...) É que, nas eventuais e flutuantes proporções de troca dos produtos desses trabalhos particulares, impõe-se o tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção, que é a lei natural reguladora, que não leva em conta pessoas, como a lei da gravidade, por exemplo, quando uma casa se desmorona. (...) (MARX, 2008, p. 96-97, grifos nossos). Neste ponto, Marx introduz a seguinte nota (uma referência a um pensamento de Engels que, como se não bastasse o que foi dito acima - no último trecho que grifamos -, evidencia mais ainda todo o seu cientificismo e sua perspectiva segundo a qual indivíduos e subjetividades são secundarizados em relação às dinâmicas das dimensões social e material das realidades dos homens): “Que pensar de uma lei que só pode impor-se através de revoluções periódicas? É uma

lei natural que assenta sobre a inconsciência daqueles cuja ação está sujeita a ela.” (MARX, 2008, p. 97).

Apesar de, mais adiante, Marx se aproximar, aparentemente, da perspectiva stirneriana de crítica à sacralização – na modernidade – do Homem abstrato79, logo em seguida, ao expor sua visão sobre o movimento de superação da separação, da alienação – (do processo) da produção material em relação aos seus produtores -, deixa transparecer toda a influência de Feuerbach sobre seu pensamento, com a sua correspondente afirmação da uma essência humana universal (com seu atributo correlato, a razão), que se configura na dimensão coletiva da produção, lançando para o segundo plano, desse modo, indivíduos e subjetividades, conforme podemos conferir:

(...) O reflexo religioso do mundo real só pode desaparecer quando as condições práticas das atividades cotidianas do homem representem, normalmente, relações racionais claras entre os homens e entre estes e a natureza. A estrutura do processo vital da sociedade, isto é, do processo da produção material, só pode desprender-se do seu véu nebuloso e místico no dia em que for obra de homens livremente associados, submetida ao seu controle consciente80 e planejado. Para isso, precisa a sociedade de

uma base material ou de uma série de condições materiais de existência, que, por sua vez, só podem ser o resultado natural de um longo e penoso processo de desenvolvimento. (MARX, 2008, p. 101, grifos nossos).

79

Conforme sugere o seguinte trecho: “(...) Daí ser o cristianismo, com seu culto do homem abstrato, a forma de religião mais adequada para essa sociedade, notadamente em seu desenvolvimento burguês, o protestantismo, o deísmo etc. (...)” (MARX, 2008, p. 101)

4.5 EPÍLOGO.

Para fechar esta discussão, retomemos – uma vez mais – as palavras de Crisóstomo de Souza:

(...) Para Althusser, a ruptura81 com o “homem” e a “essência” estaria expressa na afirmativa de que esta “não é um atributo dos homens tomados isoladamente”, mas “o conjunto das relações sociais”. Como entendemos, porém, tal proposição significa apenas que esta essência se encontra “hegelianamente” em devir, nas relações sociais.

(...); na qual, contudo, a ”essência” e sua realização no comunismo não parecem ter perdido o caráter de um ideal (inscrito na história, naturalmente), nem a força de uma “missão” (como diria Stirner) – antes pelo contrário.

(...) Para Althusser, “o par humano-desumano constitui o princípio oculto de todos os humanismos”. Não será esse, ao contrário, o princípio manifesto de todo humanismo, e o princípio mais ou menos oculto – na verdade reelaborado – da nova concepção? A divisão do trabalho e as relações de produção capitalistas não representam, como muitos marxistas diriam e dizem espontaneamente, o “desumano”?

(...): aquelas palavras estão na linha dos esforços para romper com o “mundo do espírito”; dos esforços que têm redundado, porém, apenas em tentativas para tornar “o espírito” (ou “o homem”) algo de “real” e “objetivo”. Por acaso Marx – agora com a palavra “científico” – representará uma ruptura absoluta com tudo isso? (...)

(...) Bem, essa poderia ser também, e de fato é, repetidas vezes, a crítica marxiana: o humanismo está entre “impotente” e “hipócrita”, para realizar o “humano”...

(...) O fato é, porém, que o “homem” parece, implicitamente ou não, continuar sempre ali, a se fazer valer como medida, norma de ação e télos; a ter o seu papel como “universal fundante”, de atitudes e valores morais, políticos e sociais. Marx, com sua “ciência nova”, obtém muito mais do que apenas uma maneira distinta de explicar os fatos e o desenrolar da história. Como deixa ver, por exemplo, outro importante marxista contemporâneo, Galvano Della Volpe, para quem a nova concepção oferece precisamente um “universal histórico” para ocupar o lugar do antigo “espírito”, Deus.

O universal “transcendente” foi útil até aqui, diz ele, mas sempre albergou, vejam só, um “egoísmo implícito”. E hoje mais do que nunca revelaria sua “impotência axiológica” de base para fundar uma igualdade humana verdadeira. Para Della Volpe, a superação daquela limitação do ponto de vista envolve a crítica da concepção rousseauísta-cristã de um “indivíduo abstrato” – solitário, pré-social. E é Marx quem oferece tal crítica, fornecendo ao mesmo tempo o universal finalmente encarnado na história: o “gênero histórico chamado gênero humano”. (...)

O universal “humano” ou “homem comum” teria sido primeiro descoberto na concepção “platônico-cristã” da natureza humana. Mas agora, como entende Della Volpe, com a crise de tal fundamento “metafísico”, “religioso” e “abstrato”, sua “função revolucionária” passa ao marxismo. Que se coloca assim como continuidade e superação do rousseauísmo e, pelo visto, também do

cristianismo e do platonismo. Com Marx, a igualdade dos homens passaria a ser finalmente “real” (além de, por suposto, não metafísica e não-religiosa) porque “social”. Tal igualdade, aliás, é também a única que comporta a “liberdade real”, “a liberdade na comunidade e para ela”. O gênero ou universal humano, “ao qual o indivíduo pertence” é que pode agora efetivamente “investi- lo” com o valor e a dignidade de “pessoa”, dotá-lo de liberdade e de direitos. Ora, se isso é a verdadeira concepção de Marx, ela se oferece como um alvo perfeito para a crítica stirneriana.

(...)