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3 – GENEALOGIA DA REVERSÃO ÚNICA.

3.2 HEGEL E STIRNER.

3.2.3 FENOMENOLOGIA E REVERSÃO ÚNICA.

Feita esta introdução, em linhas gerais, às relações entre os pensamentos de Hegel e Stirner, neste tópico, desenvolveremos um pouco mais a abordagem destas.

No texto introdutório ao volume dedicado a Hegel, da coleção Os Pensadores (1985), vemos que à época do filósofo, a razão fora minada em suas bases pelos empiristas, que confinaram o homem ao que é dado, à ordem das coisas e dos acontecimentos.

Kant, despertado de seu dogmatismo pelos empiristas, partiu do princípio de que o conhecimento humano tem início com aquilo que é a fonte da matéria para os conceitos da razão: a experiência. Assim, Kant concluiu que não é possível conhecer-se como são ou o que são as

“coisas-em-si”, posto que o conhecimento estaria sempre voltado para as impressões, as quais são coordenadas pelas formas a priori da sensibilidade, não sendo possível, portanto, conhecer-se o fundamento daquelas impressões, isto é, aquilo que as produziu.

Esse elemento cético da filosofia de Kant, para Hegel, invalida a tentativa (daquele filósofo) de defender a razão contra os duros ataques dos empiristas. Enquanto as coisas-em-si estiverem fora do alcance da razão, segundo Hegel, esta continuará privada de poder sobre a estrutura objetiva da realidade, posto que continuará a ser mero princípio subjetivo, dividindo o mundo em pensamento e existência, subjetividade e objetividade: Se o homem não conseguisse reunir estas partes do seu mundo, trazendo a natureza e a sociedade para o campo da sua razão, estaria definitivamente condenado à frustração. Nesse período de desintegração geral, o papel da filosofia deveria ser o de evidenciar o princípio que restauraria a unidade e a totalidade perdidas.

Desse modo, para Hegel, a verdadeira forma da realidade é a razão, a qual constitui uma unidade e universalidade verdadeiras, pois nela todas as contradições sujeito-objeto se integram.

Com os eventos de 1789, todos os homens haviam sido declarados livres e iguais; todavia, ao agir de acordo com seu conhecimento e em função de seus interesses, os homens haviam criado e experimentado uma ordem de dependência, de injustiça e de crises periódicas. A competição geral entre sujeitos economicamente livres não havia estabelecido uma comunidade racional que pudesse salvaguardar e satisfazer as necessidades e os interesses de todos os homens. A vida dos homens fora sacrificada aos mecanismos econômicos de um sistema social que relacionara os indivíduos uns aos outros como compradores e vendedores isolados de mercadorias. Essa ausência, de fato, de uma comunidade racional era responsável pela busca filosófica da unidade e universalidade na razão. Todos esses impasses filosóficos, cujas origens eram, simultaneamente, históricas e filosóficas, encontraram na filosofia hegeliana uma resposta. (In Os Pensadores: Hegel, 1985, p. XI).

Portanto, ao se falar da filosofia de Hegel, está-se falando da sua política, e vice-versa, pois, a sua filosofia se vincula intimamente à política. Assim, haveria em Hegel uma rejeição ao psicologismo prático e um profundo anti-subjetivismo, atitude esta que elimina a preocupação com o universo, mutila o Eu.

O filósofo, na juventude, almejava à instauração de um mundo político com vitalidade semelhante à da polis grega; para ele, a cidade antiga era o modelo para a realização, total e harmoniosamente, de seu ser. O ideal da liberdade encontra-se aí, permeando esse ideal político. Porém, esta não deveria ser determinada de maneira exterior ao homem, pois isto seria,

precisamente, a destruição da unidade: o contrário da liberdade. Antecipando-se como sentido de liberdade, a liberdade deve nascer do interior.

No entanto, esse projeto político exigia, para o jovem Hegel, o estabelecimento de uma mediação entre o ideal da polis e o indivíduo. Tal mediação seria encontrada numa religião do povo, pois, para o filósofo, o ser mais profundo do homem se encontraria na existência religiosa. Porém, a religião somente poderia operar a educação do povo se voltasse para a vida enquanto universalidade e totalidade, ou seja, para a razão e a liberdade. Tais considerações levaram Hegel a examinar a religião tal como existia de fato, o que, por sua vez, levou-o a proclamar a necessidade de transformar a religião privada - a qual consagra a vida em separado dos indivíduos – em uma religião pública ou popular. A eliminação da religião do despotismo e a instauração da religião da liberdade possibilitariam o retorno da totalidade grega, o que encontrava um grande obstáculo naquela primeira forma religiosa.

O entusiasmo que a totalidade da polis grega despertava no jovem Hegel refere-se, principalmente, ao período de Tübingen (1788/93). Em seguida, seu entusiasmo enfrenta, em Berna (1793/96), o racionalismo abstrato de um Eu. A Vida de Jesus, escrita em Berna, em 1795, constitui, talvez, o fator mais representativo desse segundo momento, em que Hegel refuta, mediante o Cristo, o cristianismo aliado ao despotismo. Em Frankfurt (1797-1800), aquele Eu se desdobra: de início, opõe-se ao mundo cristão da alienação, em seguida, afirmando-se e afirmando-o, constitui uma síntese com o mesmo mundo cristão, que pode ser traduzida por seu racionalismo concreto. A conseqüência maior deste último, já visível em Frankfurt, seria desenvolvida nos escritos de Jena (1801/07), nos quais Hegel descreve o aparecimento de uma totalidade ético- política mediatizada pelos indivíduos, cuja liberdade subjetiva (cristã) é reconhecida definitivamente. Para Hegel, esses indivíduos não presenciam a realização de suas verdades na esfera da vida política, mas em uma esfera superior, a da interioridade. (In Os Pensadores: Hegel, 1985, p. XIII).

Pelo que vimos sobre o pensamento de Stirner no capítulo anterior, claro está, nesta descrição – em que pese estar em linhas gerais - dos objetivos e do desenvolvimento do pensamento de Hegel, que suas metas: a afirmação da razão universal, una e totalizadora; a realização de uma comunidade política racional; a busca pelo ideal de liberdade e a instauração de uma religião que eduque o povo para a razão e a liberdade; bem como o termo final a que chegou: a descrição do “aparecimento de uma totalidade ético-política mediatizada pelos indivíduos, cuja liberdade subjetiva (cristã) é reconhecida definitivamente”, estão em franca oposição com o pensamento de Stirner, ou melhor, que este viria a desenvolver o seu pensamento no sentido de uma franca oposição ao pensamento de Hegel.

Porém, dissemos inicialmente que o autor d’O Único imergiu nas águas dos pensamentos dos seus mestres (Hegel e Feuerbach) para poder imprimir-lhes uma inversão radical na sua direção e sentido. Naturalmente, tal “mergulho” “encharcou” o espírito de Max e, tendo as referidas águas servido de meio pelo qual medraram suas idéias, o “odor” de tais “substâncias geradoras” está presente em “Der Einzige”. Vejamos como isto se dá no que concerne às idéias hegelianas, nos detendo um pouco mais sobre a filosofia deste mestre da dialética.

No que tange às suas idéias sobre a filosofia enquanto teoria do conhecimento, Hegel, ao abordar as relações entre o pensamento e o seu objeto, conclui que:

(...) a idéia, como mero pensamento subjetivo ou como um mero ser por si (um ser que não é idéia), não se constitui como verdade: “Só a idéia por meio do ser e, ao contrário, só o ser por meio da idéia, é a verdade.” Isso significa que Hegel construiu uma filosofia que pretende se apresentar como a própria expressão da realidade, eliminado a distinção tradicional entre a idéia e o real. Ambos seriam facetas de uma mesma coisa: o que é real é racional e o que é racional é real. (In Os Pensadores: Hegel, 1985, p. XV).

Quanto ao seu método:

O método dialético de Hegel sintetiza-se em algumas proposições, das quais as mais notórias são duas, famosas sobretudo pelo escândalo que provocaram. A primeira delas afirma: “O que é racional é real e o que é real é racional”. Essa fórmula não expressa a possibilidade de que a realidade seja penetrada pela razão, mas a necessária, total e substancial identidade entre a razão e a realidade. A segunda proposição estabelece que “o ser e o nada são uma só e a mesma coisa”. De acordo com esse princípio, não há uma única coisa no mundo que não abrigue em si a co-pertinência do ser e do nada. Cada coisa só é na medida em que, a todo o momento de seu ser, algo que ainda não é vem a ser, e algo, que agora é, passa a não ser. Em outros termos, essa segunda proposição da dialética põe à mostra o caráter “processual” de toda a realidade. (In Os Pensadores: Hegel, 1985, p.XVI).

Vemos, no Único, sinais da influência dessas idéias. Se, para Caspar Schmidt, a razão é mera criação (invenção) dos indivíduos concretos, por outro lado, as idealidades são tanto quanto os seus criadores, existem no espaço de suas mentes e, portanto, têm efeitos de realidade... O que não significa que “sejam reais”. Por outro lado, para Schmidt, o real não é racional. Em dado momento da sua obra prima, ele afirma que o mundo não é perfeito. Ainda, quanto à idéia hegeliana de que “o ser e o nada são uma e a mesma coisa”, o que “põe à mostra o caráter ‘processual’ de toda a realidade”, isto não nos lembra o “Eu fundei a minha causa sobre nada”,

que abre e encerra Der Einzige? Sendo que, aqui, este “nada” não se relaciona a um ser abstrato e universal (como no caso do “mestre da dialética”), mas, ao fundamento da individualidade concreta. Quanto ao “caráter ‘processual’ de toda a realidade”, lembremos a “dissolvência” do egoísta.

O método dialético data do período em que Hegel viveu em Frankfurt. É lá que o filósofo teria apreendido aquilo que faria do tempo uma história, um processo criador irreversível: a conexão dos seus momentos. Para ele, o grande conteúdo da história do mundo é racional, e deve ser racional. A história do mundo pretende que o espírito alcance o saber do que é verdadeiramente e objetive esse saber, o realize, fazendo dele um mundo existente, e se manifeste objetivamente a si mesmo: os princípios dos espíritos dos povos, em uma necessária e gradual sucessão, não passam de momentos do único espírito universal, o qual, através deles, na história, se eleva e finaliza em uma totalidade auto-compreensiva. O sacrifício da felicidade individual e geral que daí resulta é exaltado por Hegel. Ele o chama de ardil da razão. Para ele, os indivíduos jamais realizam seus desígnios, levando uma vida infeliz, trabalhando arduamente e morrendo. Seu sofrimento e seu fracasso, porém, são os meios mesmos de sustentação da verdade e da liberdade. Os frutos do trabalho de um homem sempre ficam para as gerações futuras, sendo que ele mesmo jamais os colhe. Os dispositivos que amarram os homens ao serviço de um poder e de um interesse superiores são as suas próprias paixões e interesses individuais: eis o ardil da

razão (que ela ponha as paixões a seu serviço, enquanto aquele que vive em tais impulsos paga o

preço e sofre os danos). A significação mais profunda disto residiria na identificação entre a razão e a história: é o triunfo da idéia.

Toda a história do mundo não seria mais do que a sucessão de normas estatais, as quais constituiriam momentos de um devir absoluto. O mundo oriental, o mundo greco-romano e o mundo germânico seriam os três momentos dessa história, os três momentos da realização da liberdade do espírito. Por outro lado, a vontade do indivíduo estaria em íntima relação com a vontade da comunidade e essa relação teria assumido historicamente três formas: a democracia grega, a monarquia moderna e a moralidade.

Vinculada a estas teorias da história e do Estado, está a teoria da alienação, que remonta ao período em que o filósofo viveu em Berna (1793/96). Ali, surge a noção de “positividade”. Em Berna o filósofo recusou as ramificações sociais e culturais de todo poder político que fosse incompatível com a autonomia do sujeito moral, as quais foram denominadas de “positividade”

(no sentido depreciativo de algo estranho, hostil, petrificado). A positividade seria vista, posteriormente, como alienação da consciência, etapa histórica inelutável do processo de socialização, tema central da Fenomenologia do Espírito.

Nessa obra, a consciência, como se fosse o protagonista de um romance do século XIX, faz o duro aprendizado do mundo: vai se enriquecendo com as ilusões que perde e a repetição desses desenganos sucessivos cristaliza-se numa espécie de sabedoria final a respeito da sociedade e da história. Nesse processo contínuo, a consciência se aliena, perdendo-se no mundo da cultura que ela própria vai moldando, sendo modificada e formada por ele. (In Os Pensadores: Hegel, 1985, p. XVIII).

Na Fenomenologia, a positividade – que no período anterior era vista como um destino enigmático que oprimia a consciência – é suporte social da própria realização da consciência.

Sem humor negro, Hegel via nesse rosário de frustrações o avesso necessário da reconciliação com a realidade social. Na mesma medida em que a razão “astuciosa”, ao urdir a trama da história, põe a realização dos interesses particulares a serviço da reprodução da sociedade, ela entrava o livre curso das aspirações e ideais do indivíduo isolado. Esse realismo desabusado é a contrapartida irrecusável do otimismo que inspira a noção de “ardil da razão”. De resto, eles são indissociáveis, pois o processo de alienação do sujeito, sendo também o de sua formação, encerra a promessa de sua própria supressão: ponto de equilíbrio entrevisto por Hegel no funcionamento da sociedade sob a égide de um Estado racional. (In Os Pensadores: Hegel, 1985, p. XVIII).

Tais temas do assujeitamento dos homens, dos indivíduos, à razão, à idéia, à cultura, são centrais na obra de Stirner. Porém, não sem ironia e sarcasmo, este vê na afirmação de seus próprios interesses e necessidades, na autofruição, a inversão necessária dessa perspectiva, para que o indivíduo possa se reconciliar consigo mesmo. O Único se revolta contra o “espírito” universalizante e totalizador e eleva a sua unicidade acima deste e de seus correlatos: Estado e sociedade racionais.