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3 – GENEALOGIA DA REVERSÃO ÚNICA.

3.2 HEGEL E STIRNER.

3.2.2 STIRNER E HEGEL.

Ao contrário da última geração de hegelianos (o que inclui Marx, Engels e Bakunin), Stirner teve a vantagem de estudar Hegel por Hegel. Mais ainda: ele foi apresentado ao pensamento de Hegel antes mesmo de ter este como professor, pois, nos anos em que estudou em Bayreuth (1819-1826), foi aluno de Georg Andréas Gabler, um dos primeiros discípulos daquele filósofo.

Na Academia de Nuremberg e na Universidade de Berlim Stirner assistiu às aulas de Hegel sobre filosofia da religião, história da filosofia e filosofia do espírito, porém, não deixou nenhum registro de suas impressões sobre estas memoráveis aulas.

Johan Caspar Schmidt manteve uma amizade de longa duração com Bruno Bauer, o líder do grupo de hegelianos de esquerda que se auto-intitulavam “Os Livres”. Bauer, que desde o início de sua carreira intelectual foi considerado um pensador promissor e poderoso, promoveu uma inversão no pensamento do mestre (indo do hegelianismo ortodoxo e teísta a uma extrema crítica ateísta) e sua competência no domínio de tal pensamento foi reconhecida a tal ponto que ele foi escolhido para preparar a segunda edição das aulas de Hegel sobre filosofia da religião.

Diferentemente de muitos jovens hegelianos, “Max” não foi precoce, iniciando sua produção intelectual com a publicação, já no final da sua terceira década de vida, de uma série de cartas e ensaios em jornais liberais pré-revolucionários alemães. Atualmente estes textos são vistos como esboços para O Único (e os textos posteriores a este como menores que ele), mas, com algumas exceções, tais escritos já refletem o élan estilístico de Stirner, uma facilidade de expressão raramente encontrada na literatura filosófica. A observação feita pelo seu

contemporâneo, Arnold Ruge, foi aquela de que Stirner foi o responsável pelo “primeiro livro legível de filosofia que a Alemanha já produziu”.

Certamente pode-se questionar alguns comentários, como o de que Stirner seria o único aventureiro lingüístico da história da filosofia alemã – Paterson (apud Stepelevich) -, ou de que ele seria superior a Nietzsche no que se refere ao estilo - James Hunneker (apud Stepelevich) -, mas, em todo caso, é certo que “Max” não é, de nenhum modo, uma literatura hegeliana. Seu estilo não compartilha da “obscuridade libertina” - John Findlay (apud Stepelevich) - alguma vez atribuída aos intrincados e tortuosos escritos de Hegel.

Resumindo: Stirner não foi um escritor prolífico, mas escreveu de maneira lúcida. Hagel foi prolífico, mas sua maneira de escrever só pode ser descrita como dificuldade necessária. Se a forma da linguagem reflete a do pensamento, então as mentes de ambos são opostas.

O estilo direto de Stirner não favoreceu uma apreciação séria do seu pensamento. Por outro lado, presta-se a prover máximas, o que é apreciado pelos ativistas políticos. Seu trabalho caiu sob o domínio notório dos anarquistas e foi benquisto como um verdadeiro breviário da destruição. No momento, um breviário de Stirner foi preparado para uma leitura rápida de fiéis. É possível imaginar um breviário de Hegel?

O primeiro a rotular Stirner como anarquista foi Friedrich Engels, em 1881, em seu influente e falacioso ensaio Ludwig Feuerbach e a saída da Filosofia Clássica Alemã. Neste, Engels não apenas declarou ser Stirner um anarquista, como significativamente o colocou como último na linha da descendência hegeliana.

Mas, posicioná-lo neste papel terminal é, de acordo com o entendimento comum sobre as regras da dialética hegeliana, estabelecê-lo como o anti-Hegel, com o que está de acordo o historiador da filosofia alemã, Victor Basch (apud Stepelevich).

Estes julgamentos acrescentam uma dimensão inesperada ao autor d’O Único, levando- o para além do papel de um mero ator no momento inicial do marxismo (como querem os estudiosos do jovem Marx que têm se deparado com “Max”), ou daquele do agourento “pai do niilismo”, bem como o alocam em uma oposição vital com o poderoso metafísico.

Todavia, mas não inesperadamente, este delicado tema da inversão metafísica, de Stirner como o anti-Hegel, raramente é escutado nos debates sobre seu significado político e ético.

Findas as contas, Wilhelm Windelband (apud Stepelevich) é da mesma opinião. Para ele, Stirner estaria para Feuerbach assim como Feuerbach estaria para Hegel.30 Ele teria atraído a conclusão que inverteria completamente as premissas.

Tratemos brevemente de suas respectivas atitudes em relação a dois fins metafísicos associados e centrais, fins que servem como impulso original de seus conseqüentes pensamentos.

Apesar de Hegel insistentemente reivindicar ser seu pensamento sem ponto de partida ou começo, existem, todavia, dois evidentes pontos que servem, com efeito, para instituir seu pensamento. Estes dois pontos interrelacionados, quando contraditos, desempenham o mesmo papel introdutório para Stirner.

O primeiro ponto é aquele famoso princípio da prioridade lógica, a noção de Hegel do Ser puro que “faz um começo” como o primeiríssimo momento daquela primeira tríade do Ser- Nada-Tornar-se, sobre a qual ele consequentemente fundamenta sua metafísica. Este “começo” encontrará a sua antítese no emprego que Stirner faz do nada como o primeiro momento do seu pensamento. O Ser puro de Hegel é negado para tornar-se o puro nada dos ensinamentos de Stirner. Este é o primeiro ponto de diferença.

O segundo ponto no qual Hegel e Stirner estão em oposição é sobre o assunto do começo histórico da filosofia. Para Hegel, a filosofia começa com a instituição da escola Eleática, cujo mais recente exemplar é Spinoza. Para Stirner, o começo de uma visão realística do mundo requer a rejeição de todas as formas de “idealismo”, assim como das noções de que a razão regula a realidade ou de que definições formais são mais reais do que o objeto assim definido. Então, o que o sistema de Hegel louva como o começo da filosofia, Stirner condena como o primeiro e mais fundamental assalto sobre o poder da sua mente, o atentado das idéias para controlar seu criador.

Agora, é necessário notar que, para Hegel, estes dois pontos, o começo lógico da filosofia na imediata noção do Ser e o começo da filosofia no monismo eliático, são mais dois aspectos do mesmo primeiro princípio. Como ele observou cuidadosamente: é suficiente mostrar aqui, que a lógica começa onde a própria história da filosofia inicia. A filosofia começa na escola Eleática, especialmente com Parmênides. Parmênides, que concebe o absoluto como Ser, diz que “o Ser apenas é, e o Nada não é.” Tal foi o verdadeiro ponto de partida da filosofia, a qual é

30 Podemos afirmar que compartilhamos, de certo modo, desta opinião, o que desenvolveremos melhor mais adiante,

sempre conhecimento pelo pensamento: e aqui pela primeira vez encontramos o pensamento puro, apreendido e feito em objeto para si mesmo.

Iniciemos a comparação filosófica entre Hegel e Stirner com uma construção bastante conhecida na Lógica de Hegel onde o Ser é posicionado como o ponto do começo abstrato de seu sistema. O Ser puro faz o começo, porque ele é, por um lado pensamento puro, e por outra imediação ele mesmo, simples e indeterminado. E o primeiro começo não pode ser mediado por coisa alguma, ou ser em seguida determinado.

Todavia, porque o mero Ser abstrato, considerado precisamente como o começo é reconhecido a partir de uma realidade indeterminada, a mente reflexiva é guiada imediatamente a considerar como indistinto do Nada. Este Nada Hegeliano não é o Nada substancializado de Heidegger, mas somente o segundo momento na passagem do pensamento do conceito vazio do Ser para seu objetivo final na plenitude do Conhecimento Absoluto.

De uma forma menos técnica, ao menos verbalmente, Stirner reverte o procedimento de Hegel e começa com a noção do nada, um nada do qual o ser surgirá. O nada de Stirner permanece como o Ser de Hegel, sobre o limiar da realidade determinada, mas ele não é a imagem fraca e invertida do Ser que Hegel deixa no caminho do Geist, mas a fonte primária criadora da própria realidade.

Esta aproximação metafísica fundamental não é compartilhada por nenhum dos outros Jovens Hegelianos, embora que, por definição, eles imprimiram níveis variados de ênfase sobre os aspectos construtivos da negação, o que o moderno jovem hegeliano Herbert Marcuse classificaria como o poder do pensamento negativo. Seus criticismos comuns, do “terrorismo da teoria pura” de Bauer até a “práxis crítica revolucionária” de Marx, são apenas as diversas interpretações de um princípio que Stirner revelou e aplicou plenamente, o princípio de que Negação é determinação. Mas, o nada de Stirner não é o Nada universalizado e abstrato de Hegel, mas a individualizada e única negação no único com o ego de Stirner, o “nada criativo”.

A literatura de Stirner começa e termina com a atenção do Der Einzige und sein Eigentum focada sobre o assunto do nada. A primeira linha de seu trabalho, que serve como o título para seu breve e espirituoso Prefácio, é a primeira linha do poema de Goethe: Vanitas! Vanitas! Vanitas! – “eu construí minha causa sobre nada”. Esta mesma paródia de Lutero fechou o trabalho. E assim, toda a obra é suspensa e condicionada sobre esta declaração da prioridade do nada. Na página final do Prefácio, na peroração sobre o tema repetido de que as causas e os

interesses de outros não são interesses dele, Stirner afirma sua concepção de nada: Eu não sou nenhum nada no sentido de vazio, mas eu sou um nada criativo, o nada a partir do qual eu mesmo como criador criei todas as coisas.

O mesmo princípio de criação ex nihilo, que expressou aplicações éticas em toda sua obra, é repetido mais uma vez nas sentenças finais de Der Einzige: Eu sou proprietário de minha mente, e eu sou assim quando me reconheço como único. No único, o proprietário ele mesmo retorna para dentro de seu criativo nada, de que ele é nascido...Se eu conceber a mim mesmo por mim mesmo, o único, então minha concepção permanece sobre sua transitoriedade, mortal criadora, que consume a si mesma, e eu poderia dizer: eu construí a minha causa sobre nada.

Este nada sobre o qual Stirner fundamenta seu único e exclusivo ser tem seu ancestral metafísico na negação de Spinoza. Na perspectiva desta metafísica, o ser finito ou limitado é particularizado e colocado acima e contra a Substância Absoluta devido a seu caráter essencialmente negativo. À medida que “determinatio negatio est”, determinar o ser somente é possível dentro do poder absoluto, dentro do Ser como Substância, através de um ato de auto- destruição, através da negação de sua própria negatividade. O eco de Spinoza é escutado em Hegel quando ele decide que “o particular tem seu próprio papel para atuar na história do mundo, ele é finito, e mais, como tal, perecível”. Stirner, como Nietzsche depois dele, era bem consciente desta tese filosófica.