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Autonomia da pessoa jurídica

No documento FLÁVIA MARIA DE MORAIS GERAIGIRE CLÁPIS (páginas 30-36)

1. PESSOA JURÍDICA E PERSONALIDADE JURÍDICA

1.5. Autonomia da pessoa jurídica

Para Fábio Ulhoa Coelho, “em razão do princípio da autonomia da pessoa jurídica é ela mesma parte dos negócios jurídicos”; “é ela, e não seus integrantes, a parte legítima para demandar e ser demandada em juízo, em razão dos direitos e obrigações que

61

Castro y Bravo, 1981, p. 274.

62

Pinto. Teoria geral do Direito Civil, 1983, p. 279.

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titulariza”. E, “finalmente, no seu desdobramento mais relevante, o princípio da autonomia importa, em regra, a impossibilidade de se cobrarem dos seus integrantes as dívidas e obrigações da pessoa jurídica”64.

A autonomia da pessoa jurídica, segundo o doutrinador mexicano Joaquín Rodríguez Rodríguez, é um efeito da personalização. Em razão do princípio da autonomia, a pessoa jurídica: (i) é sujeito de direito, na medida em que (a) tem um nome com o qual atua no mundo dos negócios, (b) possui um domicílio, (c) faz parte dos negócios jurídicos, e (d) tem capacidade para demandar e ser demandada em juízo; e (ii) possui um patrimônio próprio, o que impossibilita, via de regra, que o patrimônio dos sócios responda por dívidas da sociedade e vice-versa65.

Da mesma forma, Rubens Requião entende que a autonomia da pessoa jurídica é um efeito da personalização, na medida em que:

“(1) considera-se a sociedade uma pessoa, isto é, um sujeito ‘capaz de direito e obrigações’. Pode estar em juízo por si, contrata e obriga; (2) tendo a sociedade, como pessoa jurídica, individualidade própria, os sócios que a constituírem com ela não se confundem, não adquirindo por isso a qualidade de comerciantes; (3) a sociedade com personalidade adquire ampla autonomia patrimonial. O patrimônio é seu, e esse patrimônio, seja qual for o tipo da sociedade, responde ilimitadamente pelo seu passivo; (4) a sociedade tem a possibilidade de modificar a sua estrutura, quer jurídica, com a modificação do contrato adotando outro tipo de sociedade, quer econômica, com a retirada ou ingresso de novos sócios, ou simples substituição de pessoas, pela cessão ou transferência da parte capital”66.

O que é então essa personalização que tem como principal conseqüência o princípio da autonomia?

Para Fábio Ulhoa Coelho67, “a personalização de um sujeito de direito é a sua subsunção a um regime jurídico próprio das pessoas, que se difere do regime jurídico dos sujeitos, despersonalizados, ou das não pessoas”. Essa distinção refere-se à autorização genérica para a prática de atos em geral nos entes personalizados e a limitação para a

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Coelho. Curso de Direito Civil, v. 1, 2003a, p. 233-4.

65

Rodríguez Rodríguez, 1971, p. 116-7.

66

Requião. Curso de Direito Comercial, 1986, p. 287.

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prática de certos atos jurídicos nos entes despersonalizados. Em outras palavras, o ente personalizado pode praticar todos os atos, exceto aqueles expressamente proibidos, ao passo que as pessoas não personalizadas têm autorização específica para a prática de determinados atos, sendo vedados quaisquer outros não expressamente admitidos68.

Para Túlio Ascarelli, “na sua origem histórica, a responsabilidade limitada dos sócios de uma companhia decorre de princípios excepcionais e se apresenta, como um privilégio, que, por isso, pode ser baseado tão somente em um ato legislativo especial, que derrogue o direito comum”69.

Assim, as sociedades e sua personalização jurídica – esta “uma qualidade que a ordem jurídica estatal outorga a entes que a merecerem”70 -, consistem em uma técnica, uma criação jurídica71, voltada à viabilização dos interesses e dos indivíduos que a compõem72

Para Fábio Konder Comparato, “o que não se pode perder de vista é o fato de ser a personalização uma técnica jurídica utilizada para se atingirem determinados objetivos práticos – autonomia patrimonial, limitação ou supressão de responsabilidades individuais – não recobrindo toda a esfera de subjetividade, em direito”73.

Neste contexto, não restam dúvidas, como afirmado por Comparato, que se a personalização da pessoa jurídica representa uma técnica para atingir determinados objetivos, por outro lado, “não deve constituir um meio para iludir o funcionamento normal das pessoas jurídicas”74. Nesta linha de pensamento, o doutrinador norte-americano Mervin Woods, afirma que o conceito de personalidade jurídica “tem uma finalidade válida, porém, limitada, e, de resto, a natureza da sociedade (corporation) não é tão importante como as aplicações que se lhe podem dar”. E, continua, ao afirmar que a

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Idem ib.

69

Ascarelli. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado, 2001, p. 464.

70

Diniz. Compêndio de introdução à ciência do direito, 1999, p. 510.

71

Miranda. Tratado de direito privado, vol. I, 1970a, p. 280.

72

“Afinal a constituição da pessoa jurídica e do patrimônio separado representa apenas um meio técnico para que os sócios possam exercitar o comércio com responsabilidade limitada” (Ascarelli, 2001, p. 465). “Essa, aliás, a base central de toda a construção formada em torno das pessoas jurídicas, já que não existem, em direito, interesses e relações que não digam respeito unicamente aos homens” (Grinover. Da desconsideração da pessoa jurídica, Revista Jurídica, v.320, 2004, p. 8). Segundo Fabio Konder Comparato, “toda a disciplina jurídica concernente às pessoas jurídicas reduz-se, finalmente, a uma disciplina dos interesses dos homens que a compõem” (Comparato. O poder de controle na sociedade anônima, 1976, p. 277-8).

73

Comparato, 1976, p. 290.

74

Ascarelli. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo, 1945, p. 140 apud Grinover, 2004, p. 8.

personalidade jurídica “trata-se de uma invenção jurídica que exige se desenvolvam e apliquem regras adequadas para seu uso”75

Na verdade, a personalização tem como um dos aspectos a autonomia patrimonial que não está adstrita somente à caracterização da autonomia patrimonial, pois se estaria minimizando o conceito da personalidade jurídica que possui dimensões muito maiores.

Rubens Requião afirma que “uma das mais decisivas conseqüências da concessão da personalidade jurídica, outorgada pela lei, todos o sabemos, é a sua autonomia patrimonial, tornando a responsabilidade dos sócios estranha à responsabilidade social”76.

Tal distinção gera efeitos relevantes em relação à responsabilidade patrimonial, já que, via de regra, os bens dos sócios não respondem por dívidas da sociedade e vice-versa, a não ser em casos excepcionais − e, mesmo assim, de forma subsidiária.

O Código Comercial Mexicano em seu art. 23, tradução literal do art. 89 do Código de Comércio Italiano, dispõe expressamente sobre o princípio da autonomia77. Já o Código Civil Brasileiro de 2002 não preceitua expressamente sobre o princípio da autonomia como antigamente dispunha o art. 20 do Código de 1916. Atualmente, a autonomia patrimonial decorre da interpretação de diversas normas, que reforçam aludido princípio em nosso ordenamento, dentre elas o art. 1.052 e 46, V, do Código Civil Brasileiro.

Certo é que em alguns casos esse princípio da autonomia patrimonial, enraizado em nosso ordenamento jurídico, ainda que não disposto expressamente em um artigo específico, pode ser superado com a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Com isso, pretende-se a declaração de ineficácia do princípio da

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Woods. Lifting the corporate veil. The Canadian bar review, dez. 1957, p. 1176 e ss apud Grinover, 2004, p. 8

76

Requião. Aspectos modernos de Direito Comercial, 1988, p. 71.

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Rodríguez Rodríguez, 1971, p. 117. “Los acreedores particulares de un socio no podrán mientras dure la sociedad, hacer efectivos sus derechos sino sobre las utilidades que corresponden al socio, según el balance social, y, cuando se dissuelva la sociedad, sobre la porción que le corresponda en la liquidación. Podran, sin embargo, embargar esta porción, y, en las sociedades por acciones, embargar y hacer vender las acciones del deudor. Cuando las acciones estuvieren caucionando las gestiones de los administradores o comisarios, el embargo producirá el efecto de que ilegado el momento en que deban devolverse las acciones, se pongan éstas a disposición de la autoridad que praticó el embargo, así como los dividendos causados desde la flecha de la diligencia”.

autonomia subjetiva da pessoa coletiva, em casos como os de abuso de direito e violação à lei.

Em outras palavras, a aplicação da teoria da desconsideração nega o absolutismo do direito da personalidade jurídica para indagar certos atos dos sócios, bem como o destino de certos bens, relativizando os efeitos da personalidade jurídica.

A dicotomia entre a pessoa jurídica e seus membros pode deixar de ser aplicada quando for usada para desviar de seus objetivos, devendo, nestes casos, ser desconsiderada. Isso acarretará o fato de a existência da pessoa jurídica ser ignorada, recaindo a responsabilidade que antes era unicamente deste ente sobre seus sócios ou sobre outra pessoa jurídica que tenha sido utilizada para praticar o desvio78.

Em linhas gerais, a desconsideração só pode ser aplicada como exceção à regra, afastando-se a personalidade jurídica nos casos previstos em lei, desde que a exceção não vire um óbice à ação do Estado na busca de aplicação do direito justo e equânime. Nessa linha foi o entendimento da jurisprudência que aplicou pela primeira vez a teoria da desconsideração em acórdão relatado pelo desembargador Edgar de Moura Bitencourt79.

Com efeito, as relações em que participa a pessoa jurídica referem-se sempre a relações entre homens e mulheres e, no caso, trata-se de interesses humanos. Dessa forma, o interesse no qual reside o direito subjetivo diz respeito a indivíduos, ainda que através da pessoa jurídica. Nas sociedades, o interesse dos sócios só pode ser levado em consideração quando for idêntico para todos, em função do objeto social. Isso, muitas vezes, pode ocasionar o chamado conflito de interesses, notadamente, no exercício do direito de voto (art. 115 da Lei nº 6.404 atualizada pelas Leis nº 9.457/95, 10.194/2001 e 10.303/2001), quando um sócio diverge dos interesses que seriam compatíveis com o objeto social da sociedade que é a causa do negócio, causa essa que deve ser entendida de forma genérica e específica.

O objeto social enquanto causa genérica do negócio diz respeito à separação patrimonial, à constituição de um patrimônio autônomo cujo ativo e cujo passivo não se confundem com os direitos e obrigações dos sócios. Entretanto, analisando de forma específica, referida separação patrimonial é efetuada tendo por escopo a consecução do

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Casillo. “Desconsideração da pessoa jurídica”, RTSP, v. 528, out. 1979, p. 24.

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“A assertiva de que a sociedade não se confunde com a pessoa dos sócios é um princípio jurídico, mas não pode ser um tabu e entravar a própria ação do Estado, na realização de perfeita e boa justiça, que outra não é a atitude do Juiz procurando esclarecer os fatos para ajustá-la ao direito” (TJSP – RT 238/394).

objetivo social, disposto em contrato ou no estatuto. A falta de efetivação do objetivo social, de forma alguma preserva a separação patrimonial. Dessa forma, fica fácil entender o alcance do Direito Anglo-Saxônio em ver a personalidade jurídica como um privilégio e a regra do ultra vires80 como estrita delimitação da capacidade social de exercício81.

Fato é que:

“essa separação patrimonial comporta graus, ela não é idêntica e uniforme em todos os casos. Mais acusada nas sociedades anônimas, em que o acionista não responde pelos débitos sociais, apresenta-se, ao contrário, mais atenuada naqueles tipos societários em que uma categoria de sócios, ou todos eles, respondem pelas dívidas da sociedade. Ademais, em qualquer hipótese, essa separação patrimonial – causa do negócio de sociedade – obedece a certos pressupostos formais e substanciais, como o arquivamento dos atos constitutivos no registro público, ou a pluralidade de sócios”82.

Como sabemos, o princípio da autonomia patrimonial é de suma importância para o desenvolvimento da economia, pois motiva investidores e empresários a desenvolverem atividades econômicas de grande relevância em nosso país, já que, através de aludido princípio, não comprometerão seus patrimônios particulares. Em outras palavras, o reconhecimento da autonomia patrimonial tem como função limitar os riscos empresariais, o que, sem sombra de dúvidas, estimula a atividade empresarial, que é indispensável.

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“Etimologicamente, ultra vires significa ‘além das forças’, como p. ex., na expressão ultra vires hereditatis. Nos léxicos norte-americanos, ultra vires significa ‘beyond, outside of, in excess of power authorized by law for an entity’. As sociedades são dirigidas por pessoas físicas, que constituem os órgãos sociais. Esses órgãos devem exercer seus poderes dentro do ordenamento jurídico e dos termos estatutários. Os poderes dos órgãos são orientados pelos preceitos do estatuto e pelo cumprimento das leis. Qualquer desvio de finalidade implica responsabilidade do órgão. Diga-se o mesmo quanto aos procuradores ou administradores, que também são responsáveis pelos atos praticados contra a lei e contra o estatuto ou o instrumento de procuração. De maneira expressiva a recente Lei nº. 8.866, de 11.04.1994, dispondo sobre o depositário infiel de valor pertencente à Fazenda Pública, define como tal a pessoa a que a legislação tributária ou previdenciária imponha a obrigação de reter ou receber de terceiro e recolher aos cofres públicos impostos, taxas e contribuições, inclusive à seguridade social, considerando-se aperfeiçoado o depósito na data da retenção ou recebimento a que esteja obrigada a pessoa física ou jurídica” (Batalha. “Desconsideração da personalidade jurídica na execução trabalhista – responsabilidade dos sócios em execução trabalhista contra a sociedade”, Revista LTr, v. 58, n. 11, nov. 1994).

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A teoria ultra vires não pode ser confundida com a teoria da desconsideração. Na desconsideração, a pessoa jurídica é desconsiderada para atingir aquele que agiu de modo fraudulento ou com abuso de direito. Na teoria ultra vires existe um ato claro de violação ao estatuto ou contrato social em virtude de prática de ato cometido pelo administrador.

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Em contrapartida, o princípio da autonomia vem sendo utilizado indevidamente dando margem à realização de fraudes e abusos na tentativa de lesar credores e locupletar-se ilicitamente, o que, por óbvio, fere os princípios balizadores do Direito. O mau uso, ou abuso, na utilização do instituto da pessoa jurídica ensejou a criação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

No documento FLÁVIA MARIA DE MORAIS GERAIGIRE CLÁPIS (páginas 30-36)