• Nenhum resultado encontrado

Breves considerações do Direito Estrangeiro

No documento FLÁVIA MARIA DE MORAIS GERAIGIRE CLÁPIS (páginas 163-167)

5. PRESSUPOSTOS PARA APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA

5.4.4. Breves considerações do Direito Estrangeiro

Atualmente, os ordenamentos de diversos países estabelecem expressamente sanções ao abuso de direito.

O Código Civil alemão prevê que “o exercício de um direito não é permitido quando tem por fim único causar prejuízo a outrem” (§ 226).

Na Suíça, o Código Civil determina que “todos estão obrigados a exercer seus direitos e executar suas obrigações segundo as regras da boa-fé”, de modo que “o abuso manifesto de um direito não é protegido pela lei” (art. 2º).

O Código Civil português dispõe que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito” (art. 334).

No direito austríaco, impõe-se o dever de indenizar o dano decorrente do exercício com menosprezo aos bons costumes e com a intenção evidente de lesar (art. 1.295 do Código Civil).

O Código Civil argentino dispõe o seguinte: “O exercício regular de um direito próprio ou o cumprimento de uma obrigação legal não pode constituir como ilícito nenhum ato. A lei não ampara o exercício abusivo dos direitos. Se considerará assim o que

426

STJ – REsp. nº 456.088/GO, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., j. 04.09.2003.

427

contrariar os fins que aquela teve em vista ao reconhecê-los ou o que exceda os limites impostos pela boa-fé, a moral e os bons costumes” (art. 1.071).

Na Espanha, o art. 7.2 do Código Civil, com a reforma de 1974, dispõe que:

“a lei não ampara o abuso do direito ou o exercício anti-social do mesmo. Todo ato ou omissão que, pela intenção do seu autor, por seu objeto ou pelas circunstâncias em que se realize ultrapasse manifestamente os limites normais do exercício de um direito, com dano para terceiro, dará lugar à correspondente indenização e à adoção das medidas judiciais ou administrativas que impeçam a persistência no abuso”.

Carmen Boldó Roda, ao comentar o artigo espanhol, afirma que foi adotada a teoria subjetiva do abuso de direito. Segundo ela, a previsão em aludido dispositivo da “intenção do autor” para se considerar anormal o exercício de um direito é típica da concepção subjetiva. Da mesma forma, a análise das “circunstâncias”, como caracterizador do exercício abusivo, é também típica da teoria subjetiva428.

Segundo José da Silva Pacheco, do artigo espanhol supra referido, sobressai que:

“a) a lei não ampara o abuso do direito; b) o abuso pode ocorrer mediante ato ou omissão; c) manifesta-se pela ultrapassagem dos limites normais do exercício regular de um direito; d) esse desvio pode dar-se, alternativamente, pela intenção do autor, por seu objeto ou pelas circunstâncias; e) se houver dano a terceiro, haverá indenização correspondente; e ainda que não haja indenização, adotam-se medidas para impedir a continuação do abuso”429.

Na Itália, o Código Civil proíbe os atos emulativos, mas sem adotar a teoria do abuso de direito. José da Silva Pacheco ressalta, em sua obra, trabalho de Massino Bianca, Guido Patti e Salvatore Patti, que afirmam que a teoria do abuso de direito não é expressa no Código Civil daquele país. Segundo os autores italianos:

428

Roda, 2000, p. 280.

429

Pacheco. Da teoria do abuso do direito no final do século XX. Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, v. 10, jul./dez. 1996, p. 72.

“o princípio do abuso do direito não foi expressamente acolhido pelo código civil italiano. Uma parte da doutrina caracteriza todavia uma aplicação do princípio na disposição sobre a interdição dos atos competitivos (art. 830 cc). Outros, ao contrário, negam a possibilidade de relacionar (“ricoltegare”, sic) o princípio em exame a esta norma, afirmando que aquela testemunha, ao contrário, a concessão egoísta do direito de propriedade acolhido pelo ordenamento (“ordenamento” sic)”430.

Já na França e na Bélgica não há dispositivo legal expresso que coíba o abuso de direito, mas sim consenso doutrinário e jurisprudencial para sancionar o exercício abusivo de um direito.

5.4.5. Abuso de Direito e Ato ilícito

A controvérsia entre a diferenciação de abuso de direito e ato ilícito foi sanada com a introdução do art. 187 do Código Civil de 2002, já que ele afirma, peremptoriamente, que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê- lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa- fé ou pelos bons costumes”. Em outras palavras, o Código Civil considerou expressamente o ato abusivo como ato ilícito.

Importante ressaltarmos que o fato de o nosso ordenamento jurídico ter definido o ato abusivo como ilícito não significa dizer que o legislador considera idênticas as realidades descritas nas normas dos arts. 186 e 187. Referidos artigos tratam de atos ilícitos, porém de tipos diferentes.

Segundo Daniel Boulos:

“o primeiro dos artigos (ou seja, o artigo 186) descreve o ato ilícito praticado a partir da ausência de qualquer direito ou de qualquer

430

Pacheco, 2006, p. 73 (tradução nossa). “il principio dell´abuso del dirito non è stato espressamente accolto dal codice civile italiano. Una parte de la dottrina individua tuttativa un´applicazione del principio nella dispozione sul divieto degli atti emulativi (art. 830 cc). Altri, vice-versa, negano la possibilita di ricoltegare il principio in esame a questa norma, affermando che essa testimonia viceversa la concezione egoísta del diritto di proprietà accolta dall´ordenamento”.

prerrogativa em favor daquele que viola a norma nele contida. O segundo dos referidos artigos (isto é, o artigo 187) descreve uma forma de ilicitude que se configura a partir da existência, em favor daquele que viola a norma nele espelhada, de uma prerrogativa a priori assegurada pelo ordenamento jurídico mas que, no seu exercício, apresentou-se em descompasso com o sentimento jurídico dominante”431.

E continua, ao afirmar que a ilicitude prevista no art. 186 necessita da comprovação da culpa, elemento desnecessário para a configuração da ilicitude prevista no art. 187432.

No entendimento de Bruno Miragem:

“a identificação entre abuso e ilicitude é reforçada, igualmente, pela constatação de que em ambos se está a tratar é da violação de limites previamente estabelecidos. O que se altera nada mais é do que a natureza desses mesmos limites. Enquanto na ilicitude o limite evidente é o preceito normativo, cuja ordem de autorização, permissão ou proibição torna algo imediato constatar sua violação, o abuso distingue-se desta apenas ao remeter tal exame para elementos não expressos de modo específico na norma, mas que se depreendem de conceitos plurissignificativos, com ou sem conteúdo valorativo pré-determinado, como é o caso dos fins sociais e econômicos, a boa fé objetiva ou os bons costumes – todos limites adotados no Código Civil de 2002”433.

Outro fator que diferencia os tipos de atos ilícitos é o fato de o art. 187 necessitar, para configuração do ato ilícito, da titularidade por parte daquele que se pretende imputar a prática da ilicitude, de um direito, faculdade, liberdade etc. A regra do art. 187 não é válida para aquele que não é titular de um direito434.

Rui Stoco, defensor do ato abusivo como ato ilícito, afirma que “o ato originalmente lícito invade o campo da ilicitude quando cometido com excesso ou abuso. Nesse momento torna-se antijurídico. Com essa qualificação, converte-se em ato ilícito“435. Acreditamos ser essa a idéia acolhida no Código Civil de 2002, no seu art. 187.

431 Boulos, 2006, p. 46. 432 Boulos, 2006, p. 47. 433

Miragem. Abuso do direito: ilicitude objetiva no direito privado brasileiro. Revista dos Tribunais, v. 842, dez. 2005, p. 17.

434

Boulos, 2006, p. 47.

435

Importante lembrarmos que, antes mesmo do advento do art. 187 do Código Civil de 2002, Luiz Eduardo Schoueri já preconizava que o abuso de direito é, sim, uma espécie do gênero atos ilícitos436. O STF também já confirmava expressamente que o abuso de direito é um ato ilícito437 decorrente do exercício irregular de um direito, interpretando- se a contrario sensu438 a disposição contida no art. 160, I, do Código Civil de 1916.

Enfim, hoje, no Brasil, tal discussão está superada pela expressa atribuição de ilicitude ao abuso de direito na norma contida no art. 187 do Codex em vigor, porém com características diversas daquelas que compõem o ato ilícito tradicionalmente trazido em nosso ordenamento.

No documento FLÁVIA MARIA DE MORAIS GERAIGIRE CLÁPIS (páginas 163-167)