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CAPÍTULO 1 – ESTADO DE DIREITO E CORRUPÇÃO ENTRE OS CÓDIGOS

1.5 AUTONOMIA OPERACIONAL DO DIREITO NO ESTADO DE

O Estado de Direito de que se tratou no item anterior não pode ser confundido com uma organização social (sociedade ou comunidade) ou organização política. Deve, sim, ser reconhecido, a partir de uma premissa sistêmica luhmaniana, como uma organização que opera com código e programas próprios do sistema jurídico. Explica MARCELO NEVES:

No modelo sistêmico, o Estado Democrático de Direito apresenta-se, em princípio, como autonomia operacional do direito. Significa que o sistema jurídico reproduz-se primariamente a partir de um código binário de preferência próprio (lícito/ilícito) e de seus próprios programas (Constituição, leis, decretos, jurisprudência, negócios jurídicos, atos administrativos etc.).53

A política, a economia, a religião, a moral etc. comporão o chamado “ambiente” do sistema jurídico, e as trocas que são realizadas entre eles não só gerarão uma evolução54 do sistema social como garantirão a própria autonomia do direito e, consequentemente, do Estado de Direito. O contato com os demais subsistemas sociais não enfraquece a autonomia, mas, ao contrário, fortalece a diferença entre “sistema/ambiente” que é fundamental para a manutenção do caráter autopoiético do direito e dos demais subsistemas sociais.55

Conforme tratado no item 1.1, a diferenciação entre os subsistemas surge na sociedade moderna, bem como a sua autonomia. Não é outra a observação efetuada por JOÃO MAURÍCIO ADEODATO:

53 NEVES. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de Direito a partir e além

de Luhmann e Haberman, 2008, p. 85.

54 Pontua-se que essa evolução que trata a teoria dos sistemas não deve ser confundida como

melhora, progresso ou aumento da felicidade. Releva MARCELO NEVES: “[...] evolução social não se configura como um processo de passagem para uma vida melhor, um maior grau de felicidade.” (NEVES. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de Direito a partir e além

de Luhmann e Habermas, 2008, p. 4). E explica CELSO FERNANDES CAMPILONGO que há

evolução num determinado sistema quando há um processo de variação, seleção e estabilização das estruturas. (CAMPILONGO. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial, 2002, p. 23)

55 Nesse sentido, o autor MARCELO NEVES ressalta que há uma interdependência entre os sistemas

político e jurídico e que, para caracterizar o Estado de Direito, é necessária a diferenciação desses. (NEVES. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de Direito a partir e além

Pode-se definir uma sociedade como “complexa” com base na separação entre direito, religião, amizade, moral, política, economia, etiqueta etc., claro sem prejuízo de outras diferenciações; tacha-se de primitiva, indiferenciada, entre outros aspectos, aquela sociedade na qual, para dar um exemplo, a prática de um ilícito jurídico é ao mesmo tempo imoral e pecaminosa. Argumentos modernos como “pode não ser moral, mas é legal”, comuns no Brasil de hoje, não deveriam fazer muito sentido a um egípcio antigo ou aos contemporâneos de Sócrates.56

Numa concepção sistêmica luhmaniana, “autonomia” não significa isolamento ou autarquia do sistema em relação ao ambiente, mas fechamento operacional daquele. Isso significa que sobre cada subsistema social atuarão diversas influências produzidas pelo ambiente, mas, para que se garanta a autonomia de cada um deles, elas só deverão ser processadas de acordo com o código-diferença de cada um.

Em se tratando do sistema jurídico, essas influências precisam ser processadas pelo código lícito/ilícito (ou direito/não-direito). Já nos demais subsistemas sociais, esse processamento se dará por meio de códigos binários diversos, como, por exemplo, o código poder superior/poder inferior (ou governo/oposição) no sistema político, o código ter/não-ter (ou custo/benefício) no sistema econômico, o código conhecido/desconhecido (material/imaterial) no sistema religioso.

Assim, para que se garanta a autonomia do sistema jurídico, a comunicação realizada por esse subsistema social terá que ser organizada a partir do seu código (lícito/ilícito), e veiculada por meio dos seus programas condicionais (se/então). O direito não apreenderá outras expectativas que não sejam processadas nos termos do seu código, do seu programa e da sua função.57 Relacionado a esse tema, CELSO FERNANDES CAMPILONGO traduz o seguinte trecho da obra de JUAN ANTONIO GARCIA AMADO:

[...] o juiz, por exemplo, não atua em razão de fins, mas a partir do cumprimento de certas condições iniciais: as previstas na norma.

56 ADEODATO, João Maurício. Filosofia do direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência em

contraposição à ontologia de Nicolai Hartmann. 3. ed. revista e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2005,

p. 214.

Para Luhmann, desconhecer este dado e introduzir elementos teleológicos, cálculos sobre as conseqüências, discricionariedade judicial, etc. significa bloquear a função do direito como estabilizador de expectativas, inviabilizar a redução da complexidade alcançada com a divisão de tarefas entre o legislador e o aplicador das normas e questionar a autonomia do sistema face aos demais sistemas, como o político, o econômico, etc.58

Será, portanto, o fechamento operativo, realizado pelo código lícito/ilícito, que garantirá a construção da complexidade interna do direito e, consequentemente, sua autonomia. Mas, como dito acima, isso não significa que esse subsistema social seja impermeável, pois existirão os entrelaçamentos comunicacionais entre os diversos subsistemas por meio da chamada abertura cognitiva. Daí a afirmação de que o sistema jurídico é fechado operativamente, mas aberto cognitivamente.

Por abertura cognitiva entende-se o processo de aprendizagem na construção das novas informações provenientes das interferências do meio envolvente. As influências do mundo exterior gerarão estímulos nos processos internos do sistema jurídico,59 como será tratado no próximo item.

São vários subsistemas autopoiéticos60 que se comunicam (interferem) e que estão dentro de outro sistema autopoiético que é o sistema social. Conforme observa GUNTHER TEUBNER:

Os subsistemas não coexistem de modo separado, como se se encontrassem lado a lado, mas interferem mutuamente em, pelo menos, dois aspectos possíveis: uma comunicação participa simultaneamente em vários circuitos autopoiéticos e uma pessoa actua em contextos sistêmicos diferentes.61

58 AMADO, Juan Antonio García. La societé et le droit chez Luhmann. In: Niklas Luhmann du droit.

Apud CAMPILONGO. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial, 2002, p. 22.

59 TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Tradução de José Engrácia Antunes.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, pp. 128-165.

60 Autopoiese significa autoprodução do sistema. O sistema produz a si mesmo. Poiesis significa

“produção”, em grego. Essa expressão teria sido usada pela primeira vez por HUMBERTO MATURANA e FRANCISCO VARELA para definir os seres vivos. Segundo explica NIKLAS LUHMANN o conceito de autopoiesis de Maturana “[...] significa que um sistema só pode produzir operações na rede de suas próprias operações, sendo que a rede na qual essas operações se realizam é produzida por essas mesmas operações.” (LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos

sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Rio de Janeiro: Vozes, 2009, p. 297)

Nessa comunicação entre subsistemas sociais, a Constituição também terá um papel fundamental na garantia da autonomia do direito e, consequentemente, do Estado de Direito, uma vez que ela substituirá os apoios externos que legitimavam o direito e que geravam uma hierarquização vertical do direito com relação aos outros sistemas sociais.62 Antes da criação da Constituição, o direito ficava submetido aos sistemas político, econômico e religioso, na medida em que a decisão do lícito/ilícito era estabelecida a partir de critérios próprios daqueles.

A existência de uma Constituição (no sentido moderno) indica que o sistema jurídico é operacionalmente autodeterminado. Explica MARCELO NEVES: “A interna hierarquização ‘Constituição/Lei’ atua como condição da reprodução autopoiética do Direito moderno, serve, portanto, ao seu fechamento normativo, operacional”.63

CELSO FERNANDES CAMPILONGO64 explica que a Constituição não só dará as ferramentas para o fechamento operativo do direito como também servirá de mecanismo para sua abertura cognitiva. Daí LOURIVAL VILANOVA ensinar que: “A Constituição provém da realidade social e sobre a realidade social se volta para modelar, i.e., dar forma às relações humanas, conferir segurança para o logro dos fins.”65 (Grifos do autor)

Portanto, em síntese, ao se analisarem as comunicações intersistêmicas do direito com a política e com a economia, deve-se lembrar que, para garantir a autonomia do direito, tida como uma característica necessária do Estado de Direito, é preciso assegurar o fechamento operacional do sistema jurídico, por meio do código lícito/ilícito. Faz-se importante, ainda, que o observador certifique se a comunicação foi realizada nos estritos termos da Constituição, conforme será aprofundado a seguir.

62 Cf. NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, pp. 65-66. 63 Ibid., p. 66.

64 CAMPILONGO. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial, 2002, p. 24.

65 VILANOVA. Proteção Jurisdicional dos Direitos numa Sociedade em Desenvolvimento. Escritos

1.6

PROCESSAMENTO

DAS

INFLUÊNCIAS

POLÍTICAS

E

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