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CAPÍTULO 1 – ESTADO DE DIREITO E CORRUPÇÃO ENTRE OS CÓDIGOS

2.1 ENTENDIMENTO DOMINANTE SOBRE INTERPRETAÇÃO

O tema interpretação gera enormes polêmicas e uma infinidade de trabalhos científicos nos diversos campos do saber humano. Diverso não ocorre na Ciência do Direito, quando se fala de interpretação jurídica. O objetivo deste item é explicitar qual é o pensamento dominante sobre o tema “interpretação jurídica” e quais são os métodos indicados por essa teoria, para se proceder à atividade interpretativa.

Na introdução de sua obra Hermenêutica e aplicação do direito, CARLOS MAXIMILIANO apresenta a diferença entre hermenêutica e interpretação,81 sendo a primeira a teoria científica da segunda. Para ele, interpretar é o ato de “explicar, esclarecer; dar o significado de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair de frase, sentença ou norma tudo o que na mesma se contém”.82

Observa-se que, no entendimento acima, os termos verdade e extração remetem à ideia de um a priori ontológico, como se houvesse algo por detrás dos vocábulos que pudesse ser desvendado ou extraído. Isso fica nítido quando o autor afirma, posteriormente: “Não lhe compete [ao intérprete] apenas procurar atrás das palavras os pensamentos possíveis, mas também entre os pensamentos possíveis o único apropriado, correto, jurídico.”83

81 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001,

p. 1.

82 Ibid., p. 7. 83 Ibid., p. 13.

Nota-se que tais conceitos partem da ideia de que o sentido estaria por detrás das palavras, e o ato de interpretar seria o de demonstrar o verdadeiro significado da expressão, conforme explica AURORA TOMAZINI DE CARVALHO: “Durante muitos anos a tradição hermenêutica associou o termo ‘interpretação’ à idéia de revelação do conteúdo contido no texto. Interpretar era mostrar o verdadeiro sentido de uma expressão, extrair da frase ou sentença tudo o que ela contivesse”.84

A busca pela extração do real significado da lei, por sua vez, se divide entre aqueles que buscam a identificação da voluntas legis e aqueles que procuram detectar a voluntas legislatoris. Para o primeiro grupo, interpretar é descobrir o que a lei diz; já para o segundo, interpretar é compreender o que quis dizer o legislador.85

E, nessa linha de raciocínio, a teoria hermenêutica construiu diversos métodos na busca do sentido da lei. O entendimento predominante86 adota os seguintes métodos de interpretação das normas jurídicas: (i) gramatical; (ii) lógico; (iii) sistemático; (iii) histórico; e (iv) teleológico. Veja-se.

(i) Método gramatical: constitui a identificação não só do significado (gramatical), mas também a estrutura sintática das palavras utilizadas pelo legislador. Trata-se do primeiro passo que deve ser dado pelo intérprete. Ressalta DIMITRI DIMOULIS que: “[...] o significado gramatical dos termos legais funciona como limite da interpretação”87 e acrescenta TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR.: “Parte-se do pressuposto de que a ordem das palavras e o modo como elas estão conectadas são importantes para obter-se o correto significado da norma.”88

84 CARVALHO. Aurora Tomazini de. Interpretação e aplicação do direito. In: HARET, Florence

(Coord); CARNEIRO, Jerson (Coord.). Vilém Flusser e juristas: comemoração dos 25 anos do grupo

de estudo Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Noeses, 2009, p. 259.

85 Cf. FERRAZ JR., Tercio Ferraz. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6.

ed. São Paulo: Atlas, 2008, pp. 230-234.

86 Cf. DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito. 2. ed. revista, atualizada e

ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp. 175-184. Cf. FERRAZ JR. Introdução ao

estudo do direito: técnica, decisão, dominação, 2008, p. 251-254.

87 DIMOULIS. Manual de introdução ao estudo do direito, 2007, p. 177.

(ii) Método lógico: servirá para descobrir o significado da norma, por meio da observância aos princípios da lógica aplicáveis às relações entre as expressões normativas, como o princípio lógico da identidade, do terceiro excluído etc.

(iii) Método sistemático: estabelece que na interpretação das normas jurídicas é preciso levar em conta que o direito é um sistema composto por várias normas, que estão em relações verticais e horizontais umas com as outras. Segundo TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR.: “[...] quando se enfrentam as questões de compatibilidade num todo estrutural, falemos em interpretação sistemática (stricto sensu).”89

(iii) Método histórico: impõe ao intérprete a busca pela vontade do legislador, a sua intenção no momento da produção da norma jurídica. Segundo DIMITRI DIMOULIS: “[...] aquilo que interessa não é a pretensão subjetiva que permaneceu na cabeça do legislador e sim o entendimento dos motivos e das finalidades da edição da lei mediante o debate político e científico da época”.90

(iv) Método teleológico: requer que o intérprete busque a finalidade da norma jurídica, levando em conta o contexto atual. Resume o autor supracitado: “Esse método propõe interpretar a norma de acordo com aquilo que o legislador teria decidido se conhecesse a situação atual.”91

Tratam-se de métodos que, segundo a doutrina, deverão ser aplicados conjuntamente, para que o intérprete possa chegar à correta busca pelo real sentido da norma, seja pela identificação da “vontade da lei”, seja pela identificação da “vontade do legislador”. O que se quer aqui ressaltar não é a aplicação dos métodos, mas a crença de que, por meio deles, será possível chegar à verdadeira vontade da lei ou do legislador.

Ao explicar o entendimento dominante sobre interpretação jurídica, FRIEDRICH MÜLLER diz: “O critério da interpretação de uma prescrição legal é, portanto a vontade objetivada do legislador expressa nessa prescrição, tal como ela

89 FERRAZ JR. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, 2008, p. 256. 90 DIMOULIS. Manual de introdução ao estudo do direito, 2007, p. 179.

resulta do teor literal da determinação legal e do contexto de sentido, no qual ela está inserida.”92 E cita o seguinte trecho de uma decisão da Corte Constitucional Federal Alemã que evidencia o entendimento vigente:

Servem a esse objetivo de interpretação a interpretação a partir do teor literal da norma (interpretação gramatical), a partir do seu contexto (interpretação sistemática), a partir da sua finalidade (interpretação teleológica) e a partir dos materiais legais e da história da formação (interpretação histórica). Todos esses métodos de

interpretação são lícitos para apreender a vontade objetiva do legislador. Eles não se excluem reciprocamente, mas

complementam-se reciprocamente.93 (Grifou-se)

Não é outro o entendimento fixado pela jurisprudência brasileira. Como pode ser observado nos trechos dos acórdãos abaixo, a interpretação jurídica é tida como a busca pelo verdadeiro sentido da lei ou da vontade do legislador:

(i) RMS 19.612/PR, Relatora Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª. Turma, julgado em 29-09-2009, DJe 19-10-2009:

Ementa:

RECURSO ORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. MILITAR. RESERVA REMUNERADA. APLICAÇÃO DO ART. 201, § 9º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA E SISTEMÁTICA. POSSIBILIDADE.

[...]

2. Se tanto a reserva remunerada como a aposentadoria, para os militares, conduzem, de certo modo, a uma mesma definição, qual seja, a de que se trata da passagem do militar para a inatividade, por tempo de serviço, com o percebimento de seus proventos, razão não há para que o art. 201, § 9º, da Constituição seja interpretado restritivamente, sem que o verdadeiro sentido lhe seja

extraído.Aplicabilidade dos métodos de interpretação sistemático e

teleológico. [...]

Voto:

Como se pode observar, a interpretação teleológica leva à possibilidade de o aplicador do direito, em caso de norma que conduza a mais de uma interpretação, optar pela interpretação que

melhor corresponda ao seu objetivo, desde que consentânea com os fins pretendidos pelo legislador.

92 MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes.

Tradução de Ana Paula Barbosa-Fohrmann et al. 2. ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 200.

No caso da interpretação sistemática, esta pressupõe que determinado dispositivo da Constituição não se encontra isolado, mas inserido no todo da ordem constitucional, devendo ser compreendido em relação ao texto constitucional e ao sistema global do direito positivo em vigência.

(ii) RE 443388, Relatora Min. Ellen Gracie, 2ª. Turma, julgado em 18-08-2009, DJ 11-09-2009:

Voto:

Na realidade, com o emprego dos critérios teleológico e sistemático na interpretação do dispositivo ora analisado, observo que a lei

expressamente pretendeu também punir o agente que, ao praticar

qualquer uma das ações típicas contempladas no §1º., do art. 180, agiu com dolo eventual, mas tal medida não exclui, por óbvio, as hipóteses em que o agente agiu com dolo direto (e não apenas eventual).

No entanto a utilização desses métodos interpretativos pela busca do verdadeiro sentido da norma jurídica tem se demonstrado insuficiente, na medida em que se parte do pressuposto de que existe uma forma de acesso à realidade, que, por sua vez, guarda a resposta verdadeira. Como explica TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR.: “Supõe-se, pois, que a realidade contém uma essência que tem um sentido normativo independente do próprio discurso normativo.”94

Elucida LENIO LUIZ STRECK que esse pensamento, que ainda prevalece no imaginário jurídico, decorre do paradigma epistemológico da filosofia da consciência, “onde as formas da vida e relacionamentos são reificadas e funcionalizadas, ficando tudo comprimido nas relações sujeito-objeto [...].”95 E, em decorrência disso, continua o autor: “Não é temerário afirmar que, no campo jurídico brasileiro, a linguagem ainda tem um caráter secundário, como terceira coisa que se interpõe entre sujeito e objeto, enfim, uma espécie de instrumento ou veículo condutor de essências e corretas exegeses dos textos legais.”96

Ocorre que a constante frustração vivida pela comunidade jurídica na verificação de que a “real” intenção da lei ou do legislador é inalcançável vem

94 FERRAZ JR. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, 2008, p. 238.

95 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da

construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 57.

fortalecendo um entendimento oposto ao almejado. Defendem alguns que não há limites na interpretação jurídica, pois qualquer entendimento pode ser tido como verdadeiro, caracterizando uma espécie de “corrente niilista da interpretação”.

“Nem tanto ao céu, nem tanto à terra”, diz o dito popular. É bem verdade que a real vontade da lei ou do legislador é inalcançável, mas também é verdade que é possível identificar limites na atividade interpretativa no processo comunicacional jurídico. É o que JOÃO MAURÍCIO ADEODATO chamará de “meio- termo teórico”:

[...] procura-se aqui um meio-termo teórico entro o casuísmo irracionalista, segundo cuja teoria o texto da norma jurídica quase nada significa e o juiz cria livremente o direito, e a defesa ingênua de uma verdade jurídica única para aplicação da Constituição diante de conflitos concretos, a crença na solução trazida por uma interpretação competente, justa e racionalmente cogente de textos jurídicos, adequada à “coisa” (res), isto é, a seu objeto.97

Partindo-se de paradigmas construídos por meio da Filosofia da Linguagem e da Teoria dos Sistemas chegar-se-á, conforme será visto nos próximos itens, a um outro conceito de interpretação jurídica e a outro objetivo na aplicação dos métodos interpretativos indicados acima. E perceber-se-á a função da interpretação na autodescrição do direito e a sua importância na manutenção da autonomia do direito.

2.2 DEFINIÇÕES NECESSÁRIAS EM FUNÇÃO DA ADOÇÃO DA

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