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AUTONOMIA PRIVADA X CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL

2 EVOLUÇÃO DO TRATAMENTO JURÍDICO E DESAFIOS DO DIREITO DE

2.3 AUTONOMIA PRIVADA X CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL

A importância de se estudar o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil e sua implicação para o Direito Privado reside na reflexão sobre importantes questionamentos que acometem o Direito de Família na pós-modernidade, tais como: a auto-regulação do Direito Privado, a unidade do ordenamento jurídico, a eficácia direta dos direitos fundamentais sobre o Direito Privado, a atuação do julgador neste contexto pós-moderno, e o surgimento da Hermenêutica Principiológica como instrumento que pode ser colocado à serviço do reconhecimento das novas famílias.

A autora Mônica Neves Aguiar da Silva Castro defende que o direito à vida privada constitui o direito que possui as pessoas físicas de excluir certas informações, sentimentos, emoções, pensamentos, e preferências reveladoras de sua personalidade psíquica.29

Resta evidente que dentre as hipóteses enunciadas pela autora em comento, também se pode incluir a questão da orientação sexual dos indivíduos.

Mais adiante, Mônica Neves Aguiar da Silva Castro prossegue, chamando a atenção para a necessidade de respeito à vida privada. Vejamos o que foi dito:

Sobre essa questão é bom anotar que a doutrina brasileira vem traçando novos parâmetros de família, além daqueles relacionados no comando constitucional referido – a resultante do casamento, a decorrente da união estável e a monoparental – para alcançar outras, muito comuns na atualidade, que se estabelece entre pessoas do mesmo sexo ou integradas por filhos de

casamentos desfeitos e novos parceiros dos pais.30

Nessa perspectiva, é evidenciado que diante das significativas modificações no perfil familiar, se mostra inadmissível coadunar com o desrespeito ao direito à vida privada por ser este elemento essencial e integrante do direito de personalidade.

29

CASTRO, Mônica Neves Aguiar da Silva. Honra, imagem, vida privada e intimidade, em colisão com outros

direitos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.36. 30

Definir precisamente a proteção da autonomia privada dos integrantes das novas entidades familiares em face da ausência de previsão constitucional é uma tarefa muito polêmica nos dias atuais. E para tanto, se faz imprescindível um congraçamento entre o Direito Civil e o Direito Constitucional, pois não se deve coadunar com a aplicação das normas constantes do Direito Civil se estas apresentarem objetivos diferentes da Lei Maior.

É sabido que o processo de constitucionalização do Direito Civil se manifestou claramente a partir do advento da Constituição Federal de 1988, época em que os principais pilares do Direito Civil, tal como a família, passaram a ser tutelados em âmbito constitucional, o que ensejou o aparecimento de uma nova Hermenêutica destinada ao atendimento dos novos valores e modificações ocorridas na sociedade brasileira.31

A constitucionalização do Direito Civil também é relacionada pelos juristas através de duas expressões: Drittwirkung e Station Actiom.32 A doutrina e jurisprudência germânicas, por exemplo, relacionam a Drittwirkung a irradiação das normas constitucionais na ordem jurídica civil, embora também podem encontrar outras expressões que pretendem definir o mesmo fenômeno, quais sejam, vigência horizontal, aplicação horizontal, eficácia externa, e privatização dos direitos fundamentais.33No Brasil, o processo de constitucionalização do Direito Civil está relacionado a eficácia dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico civil.

Não obstante, a constitucionalização do Direito Civil ou eficácia direta dos direitos fundamentais constitucionalmente positivados na ordem jurídica privada permanecer a impulsionar o projeto da modernidade de estruturar a sociedade conforme os valores da razão, da justiça e do progresso.34 Os malefícios da constitucionalização do Direito civil podem ser evidenciados quando da irradiação dos direitos fundamentais constitucionalmente positivados na ordem jurídica privada.

31

ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. Os princípios constitucionais e sua aplicação nas relações jurídicas de família. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos, EHRHARDT JR, Marcos, OLIVEIRA, Catarina Almeida de (coords). Famílias no Direito contemporâneo – Estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: Juspodivm, 2010, p.29.

32

CANOTILHO, José Joaquim. Civilização do Direito constitucional ou constitucionalização do Direito civil? A eficácia dos direitos fundamentais na ordem jurídica-civil no contexto do Direito pós-moderno. In: GRAU, Eros Roberto, GUERRA FILHO, Willis Santiago (orgs). Direito constitucional – Estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001, p.109.

33

CANOTILHO, 2001, p.109-110.

34

É sabido que este fenômeno de constitucionalização do Direito Civil, apesar de ter trazido muitas conquistas, também pode ocasionar prejuízos para a ordem jurídica privada em virtude da predominância das normas constitucionais sob o Direito Privado, a ponto deste direito perder a sua autonomia para regular as questões cíveis, as quais ficariam sendo regidas sob a égide dos direitos fundamentais.

As conseqüências da constitucionalização do Direito para o âmbito do Direto Privado é ressaltada por José Joaquim Gomes Canotilho:

A ordem jurídica privada não está, é certo, divorciada da Constituição. Não é um espaço livre de direitos fundamentais. Todavia, o direito privado perderá a sua irredutível autonomia quando as regulações civilísticas –legais ou contratuais – vêm o seu conteúdo substancialmente alterado pela eficácia direta dos direitos fundamentais na ordem jurídica privada. A constituição, por sua vez, é convocada para as salas diárias dos tribunais com a conseqüência da inevitável banalização constitucional. Se o direito privado deve recolher os princípios básicos dos direitos e garantias fundamentais, também os direitos fundamentais devem reconhecer um espaço de auto- regulação civil, evitando transformar-se em “direito de não-liberdade” do direito privado.35

Deste modo, nenhum ramo do Direito, e essa ressalva abarca o Direito Privado, não deve estar dissociado das normas constitucionais, o que também não significa irrestrita observância dos direitos fundamentais a ponto do Direito Privado perder o seu espaço de auto-regulação civil.

Partidário deste mesmo entendimento, Ricardo Luiz Lorenzetti reafirma o caráter negativo da incidência irrestrita dos direitos fundamentais sob o Direito Privado:

Mencionamos os direitos fundamentais ao desenvolver o paradigma do Direito Privado como proteção do indivíduo particular. Ressaltamos que o princípio de centralidade da pessoa produziu uma rearticulação do sistema em torno de “núcleos duros” de normas fundamentais, cuja pretensão é a

proteção do indivíduo.36

35

CANOTILHO, 2001, p.113.

36

LORENZETTI, Ricardo Luís. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p.289.

Ocorrendo a hipertrofia do Direito Privado pelos direitos fundamentais estaria sendo permeada a intromissão demasiada neste âmbito, e conseqüentemente, estaria sendo negado o compromisso assumido pelo fenômeno de constitucionalização do Direito Civil em prol da modernidade.

Além disso, o compromisso com a modernidade e o progresso da sociedade, inicialmente objetivados pelo processo de constitucionalização do Direito se revelam em conflito com os valores constantes da realidade plural das novas famílias brasileiras, as quais prescindem do direito à autonomia privada para a consecução do seu ideal de felicidade.

Neste contexto atual, ou seja, neste mundo da pós-modernidade, se faz necessário o reconhecimento da ocorrência de certas mutações e da consagração de novos valores, tais como, respeito às alteridades e particularidades, indeterminação e relativismo das situações atuais.37

A nova realidade advinda do pós-positivismo acarreta uma situação bastante delicada para os intérpretes e operadores do Direito, os quais ficam divididos entre a aplicação da eficácia dos direitos fundamentais constitucionalmente positivados ou a auto-regulação do Direito Privado. Neste impasse, o intérprete do Direito de Família atual se mostra estar em conflito no tocante a encontrar adequadamente respostas para a questão da pluralidade das formas familiares, haja vista não poder contar ainda com a previsão constitucional.

A ausência de previsão constitucional acerca da autonomia privada dos integrantes das novas formas familiares, os novos anseios da sociedade pós-positivista, ensejam os julgadores a utilizarem uma Hermenêutica Principiológica mais condizente com o mundo pós-positivista. O processo de constitucionalização do Direito Civil propiciou a utilização de uma nova Hermenêutica voltada a solucionar os relacionamentos jurídicos privados, sendo o Direito de Família o ramo do Direito que mais foi influenciado pelo processo de constitucionalização do Direito Civil, o que faz prova o início de uma progressiva utilização pelos intérpretes do Direito de uma principiologia constitucional inserida numa nova tábua axiológica, a qual coloca a pessoa humana como centro primordial de todas as suas preocupações.

37

A repersonalização das relações jurídicas privadas advindas com o fenômeno de constitucionalização do Direito Civil, consagra o princípio da dignidade da pessoa humana como valor intrínseco a todas as pessoas.

Assim sendo, o respeito à dignidade da pessoa humana nas relações de família deve ser extendida a todos os integrantes do grupo familiar, independentemente da forma familiar constituída. Entretanto, não se pode esquecer que para concretização deste intento deverá ser permeada a livre manifestação da sexualidade dos indivíduos, ou melhor, deverá ser permeado o exercício da autonomia privada dos indivíduos com relação as suas escolhas sexuais.

Nesse passo, um questionamento nos acomete e merece ser respondido: Porque interpretar o Direito Civil segundo a égide constitucional, se nem mesmo a Constituição Federal disciplina expressamente acerca das novas famílias?

Na concepção de Ricardo Luiz Lorenzetti, a incidência das normas constitucionais sob o Direito Privado tem justificativa no fato da Constituição Federal ser fonte de normas fundamentais jusprivatísticas, o que significa ser fonte de princípios e de regras jurídicas. Com relação aos princípios jurídicos, a CF/88 assinala as bases informadoras do Direito Privado, na medida em que apresentam função integradora e de aplicação. A Constituição como fonte de regras de Direito Privado tem importância essencial, pois servem para a orientação do juiz, das partes, do legislador, podendo ter eficácia direta ou indireta.38

Entretanto, o entendimento que melhor responde este questionamento tem esteio na necessidade de compreensão que as hipóteses de famílias elencadas na CF/88 não são taxativas, deste modo, o fato das novas famílias não constarem expressamente previstas na Carta Magna, não deve ser empecilho ao entendimento do sistema jurídico constitucional como sendo estrutura normativa aberta, ou seja, a CF/88 funciona como uma regra de inclusão, que mesmo sem expressa previsão em seus dispositivos acerca das novas famílias, nem por isso deixa de oferecer subsídios implícitos para a interpretação do Direito de Família atual, na medida em que propicia ser valorado sob uma nova tábua axiológica que eleva a pessoa humana como um dos seus valores primordiais, a ser respeitado de forma incontestável por todos na sociedade.

38

Partindo desta premissa, o Direito Civil, e especificamente o Direito de Família a ser interpretado conforme as normas constitucionais, deve ser interpretado também nesse sentido de entendimento de estrutura normativa aberta, a qual não se revela preso exclusivamente aos ditames legais e outros elementos que empeçam a necessidade de comunicação da CF/88 e do Direito de Família com os novos anseios dos indivíduos na contemporaneidade.