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Bases teóricas para um estudo do ponto de vista do gênero

2.5 Autor e estilo no Círculo de Bakhtin: breves considerações

A formulação do conceito de autor por Bakhtin envolve necessariamente sua concepção de interação, visto que todo locutor é sem dúvida um autor, dirigindo-se a um interlocutor numa dada situação e com um dado projeto enunciativo e dado que esta é a base de sua concepção dialógica da linguagem. Fica bem evidenciado nos vários escritos do Círculo que o conceito de interação de modo algum se esgota na situação imediata da interação, ao face-a-face entre sujeitos, mas, englobando-a, remete retrospectiva e prospectivamente a todas as enunciações anteriores e ulteriores, possíveis e imagináveis. A meu ver, isso insere toda e qualquer enunciação, toda e qualquer interação, numa rede de interlocução em constante fazer-se, um festival de volta ao lar de pródigos significados temporariamente extraviados, rede que abarca os vários momentos sociais e históricos constitutivos da interação/enunciação.

Além disso, como a significação é entendida pelo Círculo como um constante vir-a-ser, dado que cada diálogo recria significados de outros diálogos, assim como antecipa diálogos ainda inexistentes, inserindo-os, que me seja dada a licença, num novo modo de vida associado com um novo jogo de linguagem (Wittgenstein) que a resignificação instaura, o horizonte social e histórico que Bakhtin leva em conta de modo algum se esgota no interdiscurso e no contexto imediato da interação. embora estes sejam seus fundamentos.

O locutor e o interlocutor têm na interação tal como a entendo o Círculo, o mesmo statuto: assim como é, retrospectivamente, uma resposta a enunciações precedentes, a enunciação do locutor responde prospectivamente ao interlocutor. O interlocutor é entendido por Bakhtin e seu círculo, em mais uma de suas geniais descobertas, como dotado de uma “responsividade ativa”: a resposta concreta do interlocutor é que permite que se materialize a compreensão. Não obstante, o locutor busca antecipar-se a essa responsividade e mesmo dirigir os rumos que toma, mediante a modulação contextual de sua entoação avaliativa.

Levando em conta esses elementos, pode-se dizer que, em sua concepção de interação, Bakhtin leva em conta quatro níveis necessariamente constitutivos da produção de sentidos, sendo eles dotados de diferentes e crescentes graus de amplitude, na razão inversa da inserção sócio-histórica, algo que cria grandes dificuldades metodológicas, aumentadas pelo fato de ele também levar em conta a consciência individual (que, como se sabe, não é entendida em termos cognitivos fisiológicos ou psicológicos estritos) como instância contextual, dado que o sujeito em interação, um eu-para-o-outro, continua a ser irredutivelmente um eu-para-si (e vice-versa):

a) O nível da interação verbal concreta, do aqui e agora da presença dos interlocutores na enunciação (claro que em sua projeção no enunciado). Trata-se do nível mais imediato, e por isso sócio- historicamente mais "restrito". É constituído por todos os outros níveis, mais amplos e menos imediatos, sendo ao mesmo tempo o mais próximo dos protagonistas do discurso;

b) O nível do contexto imediato em que se insere a interação (lugares sociais, formas atualizadas de interação social, etc.). Nesse nível, temos os elementos que a interação em seu sentido mais amplo “convoca" diretamente e que incidem sobre o nível anterior ao tempo em que remetem ao nível seguinte;

c) O nível do contexto social propriamente dito, aquele que determina em termos conjunturais, culturais, e mesmo raciais, o modo de ser da interação; e, por fim,

d) O nível do horizonte social e histórico mais amplo, que abrange a cultura em geral, os grandes períodos da história, o Zeitgeist, etc.

Cabe lembrar que a este último nível se referem as considerações de Bakhtin sobre a inexistência de um sentido primeiro e de um sentido derradeiro, vinculada com as 3 formas de leitura, ou de relação com a cultura alheia por ele discutidas: a

leitura em que se vê o sentido dos discursos apenas em termos da imersão na cultura ou no período histórico de que advêm e se perde com isso o enriquecimento trazido pelo afastamento; a leitura na qual se vê o sentido dos discursos abstraindo- se da cultura ou do período histórico de que surgiram e se perde com isso as especificidades do contexto; e a leitura “exotópica”, em que se vê o sentido dos discursos levando em conta tanto a cultura ou o período histórico de que surgiram como a cultura ou o período histórico a partir dos quais se lê, unindo a riqueza da especificidade à riqueza da diferença.

O Círculo de Bakhtin muito se estendeu, por conhecidos motivos históricos, anãs considerações sobre o autor no texto literário, mas suas formulações abrangem, como se sabe, todos os discursos. Bakhtin (1997), partindo da idéia de que há necessidade de haver dois participantes “para ocasionar um acontecimento estético” (p. 42), afirma que o evento estético pressupõe, para realizar-se, “duas consciências que não coincidem”, mostrando que a coincidência (a ausência de distanciamento) entre o autor (enquanto figura discursiva e não como autor concreto) e o herói (entendido por Bakhtin como o objeto do enunciado) ou seu posicionamento um ao lado do outro, o compartilhamento por eles de um valor comum, ou mesmo sua oposição, redunda no próprio término do evento discursivo estético e na instauração de eventos discursivos de outra ordem. Temos então, em vez de obra literária, outras modalidades de discurso.

A ausência mesmo potencial do herói na obra estética, em que é entendido como personagem, produz um evento cognitivo, como um tratado; quando a consciência com que interage o autor é um deus onipotente, ocorrem eventos discursivos de cunho religioso e assim por diante. Esse critério se associa na obra do Círculo com a questão da arquitetônica autoral, o que permite diferenciar entre os todos mecânicos, simulacros de obras literárias que se restringem a estabelecer relações de contigüidade entre formas de composição que “lembram” o literário, buscando transmitir uma “mensagens” em termos de conteúdos, sem dotar a forma e o conteúdo de unidade, e os todos arquitetônicos, obras literárias propriamente ditas, cuja unidade é da ordem do sentido, unindo conteúdo, forma e material na criação de recortes do mundo que recortam igualmente modalidades de ver o mundo literariamente.

A avaliação do herói feita pelo autor e o grau de proximidade entre eles ocorre naturalmente na presença do outro elemento determinante, o ouvinte, ou interlocutor. A relação entre o autor e o ouvinte, fundada igualmente nos graus de proximidade/distanciamento, tem vínculos estreitos com a questão conexa dos gêneros do discurso: o grau de proximidade/distanciamento entre autor e interlocutor é constitutivo do sentido, tanto no âmbito do discurso estético como no âmbito das outras modalidades de discurso, podendo-se igualmente verificar que, dada uma modalidade de discurso, ou gênero, o enunciador é levado a assumir esta ou aquela posição com relação ao outro, claro que com modulações de vária natureza que explicam o dinamismo dos gêneros.

As modalidades de discurso às quais não está presente o estético per se envolvem igualmente um trabalho autoral que, quando cria uma totalidade de sentido, uma “arquitetônica”, realiza o projeto enunciativo do autor. A mera contigüidade de formas da língua e de textualização cria no máximo “simulacros” de discurso, ou discursos “malogrados”, nos quais a identificação, sempre possível, de um dado projeto enunciativo, serve precisamente para demonstrar sua não- realização.

O uso de formas “típicas” não cria por si uma unidade de sentido porque lhe falta um labor arquitetônico de construção, algo que mobiliza formas da língua e formas de textualização na criação de uma unidade de sentido, integrando forma, conteúdo e material. Assim, na variedade de relações com o outro está a própria chave da constituição do tom e do fio dos discursos, em seus vários planos — estético, ético, cognitivo, religioso — levando-se em conta igualmente as esferas de atividade em que isso é possível e aceitável. Assim, ser autor é assumir, de modo permanentemente negociado, posições que implicam diferentes modalidades de organização dos textos, a partir da relação com o herói e com o ouvinte.

Para o Círculo de Bakhtin, a própria seleção de palavras envolve uma orientação na direção do ouvinte e do herói autor e a recepção a essa seleção advêm do contexto da vida, que impregna as palavras de juízos de valor, impondo pois ao seu significado uma direção específica, podendo mesmo pensar na recepção como uma espécie de co-seleção lexical. Essa operação de seleção envolve a “simpatia”, a concordância com os ouvintes, ou a discordância com relação a eles, remetendo assim à avaliação que o autor faz do herói.

O elemento mais relevante nesse ponto é o fato de o autor selecionar juízos de valor “do ponto de vista dos próprios portadores desses julgamentos de valor” (Idem, grifos meus), claro que tal como ele os projeta. A posição do autor com respeito ao conteúdo é ativa (ainda que, ao contrário do que quer a tradição, o estilo seja não o homem, mas o autor e o ouvinte), atributo que lhe é conferido pela “mediação da forma” (Idem), mas que não o torna infenso a todas as influências que incidem sobre seu agir.

Ser autor da obra estética e de outras modalidades de discurso envolve tudo dizer em termos pragmático-referenciais, dado que faltam ao enunciado per se as circunstâncias concretas que permitem identificar o dito e o presumido de modo relativamente imediato como o seria na interação face-a-face. E com isso chegamos ao estilo, dado que o “tudo dizer” pode assumir várias formas; Bakhtin vê o estilo, diante disso, como algo interativo, advindo da relação entre o autor e o grupo social a que ele pertence, na forma de seu representante autorizado, o ouvinte “típico”, tal como projetado pelo autor. O estilo não tem que ver com “desvios” de normas nem com as “especificidades da obra literária” (Brait, 2002), sendo antes determinado pelas inter-relações entre a escala avaliativa do evento descrito e seu agente, o herói, cujo peso depende do “contexto não-articulado de avaliações básicas da obra” (1976a, p. 11), isto é, das possibilidades de avaliação, manifestas — e isso merece destaque, por seu vínculo intrínseco com a questão do gênero — “na própria maneira como o material artístico é visto e disposto” (Idem, p. 12), o que descarta de uma vez por todas a idéia de que só são avaliações os elementos apresentados como tais nos discursos, a por assim dizer “avaliação mostrada”, modalidade da “avaliação constitutiva” em que se concentra o Círculo de Bakhtin, sem prejuízo do reconhecimento da presença daquela.

Bakhtin destaca, falando da avaliação, da entoação avaliativa, que um dos princípios do estilo é o fato de ele se alterar de acordo com o valor social do objeto do enunciado, o que leva o autor a socializar suas vivências, a elaborar o evento correspondente a essas vivencias em termos dos sentidos sociais, o que implica a impossibilidade de uma linguagem privada (algo a que se referem igualmente Wittgenstein e Merleau-Ponty). Isso remete à oportuna afirmação bakhtiniana de Brait (1999, p. 34) — que vem abordando sob diversas perspectivas a questão do estilo e do autor na obra do Círculo (cf. por exemplo BRAIT, 2005 b, c) — sobre o

autor: “o autor não pode ser confundido com o indivíduo. O autor é uma instância de produção, do ato, do texto, do discurso” — o autor bakhtiniano é um autor de linguagem e não um sujeito concreto em termos ontológicos, o que evidentemente não elimina os autores concretos, mas desautoriza a idéia de buscar na vida do autor um material simplesmente transposto para o discurso, dado que o trabalho autoral torna a própria autobiografia uma construção de linguagem e de discurso. Como historiador, Machado de Assis, apesar dos historiadores, pode deixar a desejar, mas poucos são os exemplos de historiadores a causar tamanho impacto com sua autoria!

O segundo elemento constitutivo do estilo é o grau de proximidade recíproca entre autor e herói. é vital não só em termos do estilo como também em termos do estatuto do lingüístico no discursivo, dado que postula, de um lado, que “a própria estrutura da língua reflete o evento da inter-relação entre os falantes” (Bakhtin, Id., Ibid.) e, do outro, que muitos dos fatores da forma da obra são determinados em parte pelo grau de proximidade entre autor e herói.

Bakhtin, retomando o que disse do autor em geral, afirma ainda que esses elementos não são suficientes, tomados em isolamento, para determinar a forma, ou melhor, a plasmação, artística. O ouvinte não é o sucedâneo do autor nem ocupa o seu lugar; trata-se antes de uma instância independente do evento da criação. Além disso, ele tem uma posição bilateral, visto que apresenta diferentes graus de proximidade com relação ao autor, de um lado, e com respeito ao herói, do outro. Bakhtin esclarece, refutando certas teses destinadas a defender quer o ponto de vista formal, quer o sociológico, que “... autor, herói e ouvinte em parte alguma se fundem numa só massa indistinta — eles ocupam posições autônomas, são na verdade lados... de um evento artístico com estrutura social específica cujo ‘protocolo’ é a obra de arte. (Id., p. 14)”.

Podemos perceber então, a partir das formulações bakhtinianas — e braitianas — que, na obra, tanto em termos de estilo, como de sua própria estruturação em geral, (1) o autor não se confunde com o indivíduo-autor, sendo antes aquilo que o constitui como tal na própria obra (cf. Brait, 1999); e ele o faz por meio da forma, do conteúdo e do material, na interação com o herói e com o ouvinte. Logo, se é facilmente identificável como “imagem-objeto”, o autor não é parte da intenção nem do projeto do locutor; esse autor concreto não é o criador da palavra

nem do discurso “enquanto autor de seu próprio enunciado” (Bakhtin, 1997, p. 336). Logo, a existência concreta do autor só é pertinente enquanto incorporada ao autor do discurso, ao ator que dá forma, que molda o material.

Nesse sentido, é função do autor, como o afirma Caryl Emerson (1996, p. 113),

“ver todos os aspectos da personagem criada, tanto os interiores como os exteriores, em toda posição potencial e em toda potencial oposição a essa posição. Porque criar não é ... meramente inventar”, mas antes desenvolver “uma consciência ficcional de tal maneira que esta seja suficientemente autônoma para ter vida própria, entrar em suas próprias relações sujeito- sujeito.

Por outro lado, o herói não se confunde com o autor, nem vem de um ato consciente e autônomo deste. Entidade autônoma, embora criada pelo labor autoral, tem ele seu papel próprio a desempenhar na dupla interação com, de um lado, o autor, e, do outro, o ouvinte; é ele o cerne das avaliações inerentes a todo enunciado, avaliações que entram na composição da própria corporalidade da obra, em sua forma, em vez de restringir-se a conteúdos que eventualmente se incorporem a ela ou formas cristalizadas de avaliação, ainda que estas também tenham sua relevância. Essas avaliações vêm, naturalmente, do universo social e histórico das interações entre os homens.

Voltando ao ouvinte, este, tal como o autor, não se confunde com o indivíduo, no caso específico, o indivíduo ouvinte, o publico leitor concreto e, por assim dizer, identificável, sendo antes a imagem típica do interlocutor de cada autor específico, o que depende, como é óbvio, do caráter e da corporalidade de cada autor, do seu ethos (que, se incorpora elementos pré-discursivos, é criado pelo discurso e nele se manifesta), do contexto extra-verbal por assim dizer cristalizado no qual se acha inserido o autor.

Em suma, em termos gerais, autor, ouvinte e tópico estão presentes, ao ver de Bakhtin, como elementos constitutivos, em toda enunciação, sendo de sua interação, e como produto e resultado dela, que a enunciação vem a ser. Em termos específicos, é também dessa interação que o autor retira seu instrumental de trabalho com a forma e com o material da obra, sendo a maneira peculiar de realizar

esse trabalho, mesmo respeitando as coerções de gênero, que constitui o estilo, individual e de gênero.