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Gênero – Discurso – Texto

3.4 Uma concepção ativa de discurso

É fato conhecido que um relato sustentável dos fenômenos discursivos e de suas implicações tem de levar em conta, de um lado, as estruturas lingüísticas e, do outro, as marcas que, advindas da situação na qual são produzidos os discursos — situação interativa para a qual estes apontam —, neles se fazem presentes. O sentido manifesto no discurso advém da relação, constitutiva de suas superfícies, entre os diversos elementos, verbais e outros, que presidem à produção discursiva, as várias mediações (ou coerções) incidentes entre o real concreto e o vir-a-ser do sentido. Mantêm-se os olhos sempre postos enfaticamente no modus operandi dos mecanismos de constituição do sujeito e do seu vínculo com a produção de sentidos, levando em consideração tanto as estruturas por assim dizer “internas”, mediante as quais se articula o discurso, como o contexto da enunciação, em suas várias modulações, com ênfase na ação verbal, pretendendo com isso preservar a

unidade do discurso e evitar nele introduzir um sujeito ontológico, ainda que, como se sabe, só existem no mundo humano sujeitos concretos. Importa aqui destacar que a realidade a que remete o discurso é a realidade do discurso: a própria enunciação é já instauração daquilo mesmo que a torna possível, como mostram os princípios de Bakhtin, compatíveis com as propostas de Greimas e Maingueneau a que me referi.

Uma abordagem da linguagem e discurso que tenha por parâmetros esses elementos confere evidentemente um lugar privilegiado ao contexto imediato e mediato em que são produzidos os discursos – o que inclui tanto a caracterização dos falantes como as inter-relações explícitas ou implícitas entre eles, tal como manifestas em suas produções verbais. Estamos no domínio do caráter sócio-ativo da semiose humana. Essa maneira de conceber a linguagem propicia tentativas de sistematização do estudo de estruturas e estratégias discursivas (que não se confundem com os estudos das propostas das gramáticas textuais ou sistêmico- funcionais, ainda que se possam fazer aproximações dele com estas, como o tentei fazer [SOBRAL, 1999] e como o fez com grande sucesso, por exemplo, VIAN JR., 2001, entre outros) e permite a libertação do estudioso da linguagem da significação definida exclusivamente pelo código e da verdade enquanto parâmetro de exame como os únicos planos nos quais examinar e descrever os fatos lingüísticos, algo ainda vivo e penetrante no tecido da história e dos estudos lingüísticos.

No tocante a isso, Fiorin, tratando do objeto da Lingüística Moderna, do ponto da vista do surgimento da “lingüística do discurso” (FIORIN, 1996, p. 556, n. 2), afirma ter aquela estabelecido pelo menos cinco objetos: a langue, a competência, a mudança lingüística, a variação lingüística e o uso lingüístico. A complexidade dos fenômenos lingüísticos exige assim, de uma perspectiva de estudo da linguagem que a toma em sua dinâmica incessante, uma abordagem capaz de levar em consideração, de maneira integrada, os vários aspectos relevantes do discurso, visando com isso descrever o relacionamento entre os aspectos da ordem da enunciação e os da ordem do enunciado, presentes à produção do sentido.

Sendo as determinações sociais constitutivas dos discursos e, em conseqüência, dos sentidos neles produzidos, o discurso pode ser caracterizado como um processo social e histórico de instauração e inscrição de eventos significativos que revela o processo de constituição do sujeito na interação “de

linguagem”. Dessa perspectiva, o modo de ser e de agir da linguagem nos espaços sociais e históricos concretos de manifestação dos sentidos é o plano próprio da verificação do estatuto da constituição dos indivíduos falantes em sujeitos discursivos, visto que todo discurso pressupõe, por sua própria natureza, protagonistas/enunciadores. Designam-se “indivíduos” os membros da sociedade tomados em sua generalidade; quando se fala de sujeito, faz-se referência não aos indivíduos enquanto agentes sociais em geral, mas em sua qualidade de agentes, ou melhor, atores, lingüístico-discursivos.

As teses do Círculo de Bakhtin representam um sólido e valioso fundamento para a explicitação do processo de produção de sentidos (BAJTÍN, 1997; BAKHTIN, 2003; VOLOSHINOV, 1976, passim etc.), mostrando que individual e social não se opõem; existe oposição, na realidade, entre social (criado pelos homens em suas relações) e natural (existente no mundo independentemente da existência ou das ações do homem, embora acessível apenas por meio da percepção humana). Como se pode ver, isso não nega o fato de o próprio plano natural apreendido pelos indivíduos ser mediado pelo todo social, ao mesmo tempo em que destaca a diferença entre as criações humanas e os elementos já dados na natureza (das coisas e do próprio homem), ainda mais porque toda apreensão é já uma mediação.

Além disso, mostra que, enquanto natural e social se opõem, apesar de o social não negar “o que está aí”, individual e social se articulam e se estruturam mutuamente. A linguagem é considerada, por conseguinte, uma instância de instauração e manifestação de sentidos social, histórica e ideologicamente fundados,instância cuja compreensão é necessária ao adequado entendimento do modo como a formação social se constitui simbolicamente, ao tempo em que se articula precisamente como a base dessa determinação. Importa destacar que, quando se leva em conta o vínculo intrínseco entre a linguagem e as formações sociais que a constituem e que dela retiram bases para a sua construção imaginária (de cunho ideológico), pensa-se necessariamente na existência e nas condições de existência dos falantes, em seu lugar na sociedade, na função e importância da linguagem no estabelecimento concreto de relações simbólicas interindividuais e em outros fatores definitórios desse tipo, como o caráter uni-ocorrente dos atos humanos e o caráter repetível da estrutura do ato per se.

Segundo BRAIT (1997, p. 99), a obra de VOLOSHINOV (1976), cuja edição em português leva o nome de Marxismo e Filosofia da Linguagem, constitui

um momento de formalização da possibilidade de estudar o discurso, isto é, não enquanto fala individual, mas enquanto instância significativa, entrelaçamento de discursos que, veiculados socialmente, realizam-se nas e pelas interações entre sujeitos. Sob essa perspectiva, a natureza do fenômeno lingüístico passa a ser enfrentada em sua dimensão histórica, a partir de questões específicas de interação, da compreensão e da significação, trabalhadas discursivamente.

A linguagem é um processo sócio-histórico contínuo de produção de sentidos. Como fundamento dessa continuidade, ele aponta o fato de ser ela o espaço privilegiado de manifestação e confronto das diversas “vozes” que constituem a sociedade: ou seja, o caráter interativo do intercâmbio social está intrinsecamente integrado à própria estrutura da linguagem e é o seu elemento definidor. Em conseqüência, o sentido lingüístico e a própria linguagem têm como condição essencial de existência os sujeitos, e é no plano da intersubjetividade que se define a própria subjetividade: torno-me eu entre outros eus, ou seja, é na relação intersubjetiva que me reconheço como individualidade, como sujeito, portanto. O Círculo de Bakhtin apresenta em suas formulações vários elementos voltados para demonstrar a natureza social (e dialógica) da linguagem, seu modo de articulação com o meio histórico em que se insere e a cujas necessidades (despedaçadas nos numerosos interesses em confronto dos grupos particulares que povoam o todo social) atende. Logo a linguagem tem como espaço de configuração o intercâmbio social concreto ao qual está presente e não a psicologia do falante ou a tirania das formas, seja do código ou do gênero.

Segundo os textos do círculo de Bakhtin, os signos só surgem no território interindividual, na interação entre duas consciências. Como é inteiramente absorvida por sua função de signo, a linguagem é o fenômeno ideológico por excelência. Por outro lado, a linguagem é um material semiótico que não se especializa em nenhum campo específico da criatividade (entendida como faculdade de criação de sentidos) ideológica, prestando-se por isso a funções ideológicas de qualquer tipo. Além disso, o signo lingüístico participa do comportamento comunicativo humano, área

ideológica que não se restringe a nenhuma esfera específica, ao mesmo tempo em que pode ser “palavra interna”, visto ser gerado pelos meios próprios do organismo; do mesmo modo, ele se faz presente, de modo concomitante, a todo ato consciente e, em suas relações com a “realidade”, constitui o índice mais sensível das trocas sociais. O produto ideológico é a um só tempo parte de uma realidade, natural ou social, e reflexo e refração de outra realidade que lhe é exterior (para mais elementos, cf. “Signo Ideológico”, texto inédito de SOUZA, e MIOTELLO, 2005; VOLOSHINOV, Op. cit.).

Assim, todo produto ideológico tem significado, ou valor, semiótico: aponta para algo que se acha fora dele, ou seja, é um signo. A ideologia não está na consciência, porque, como a compreensão só ocorre tendo por objeto um material semiótico e como a direção do signo sempre o faz atingir outro signo, a própria consciência só pode surgir e constituir um fato possível na concretude material dos signos; do mesmo modo, não é ela um mero agregado de reações psicofisiológicas casuais que redundaria fortuitamente na criatividade ideológica. O processo de criatividade e de compreensão ideológicas é ininterrupto, e a consciência só vem a ser consciência quando imerge no conteúdo ideológico, isto é, no processo social da interação. Em suma, para o círculo de Bakhtin a realidade da linguagem é o fato social da interação verbal, e não um “sistema abstrato de formas idênticas”, nem a fala monológica isolada ou o ato psicofisiológico de realização da fala (VOLOSHINOV, 1976).

A interação, como tenho afirmado exaustivamente, de modo algum se esgota na situação imediata da troca verbal, mas remete, retrospectiva e prospectivamente, a todas as enunciações anteriores e ulteriores, possíveis e imagináveis, o que a meu ver insere toda e qualquer enunciação, toda e qualquer interação, numa rede de interlocução em constante fazer-se, um festival de volta ao lar de pródigos significados temporariamente extraviados, rede que abarca os vários momentos sociais e históricos constitutivos da interação/enunciação. Além disso, à luz desses elementos, o horizonte social que Bakhtin leva em conta de modo algum se esgota no interdiscurso e no contexto imediato, material mesmo, da interação. Há assim uma primazia absoluta do tema com relação ao significado cristalizado, tanto na constituição do sentido como no próprio vir-a-ser do significado mais tarde cristalizado.

Ao falar de interação, como vimos, Bakhtin se refere a quatro níveis, dotados de diferentes graus de amplitude, todos eles necessariamente constitutivos, que aqui retomo com vistas a tratar da questão da gênese – ou formação –, dos discursos: o nível da interação verbal concreta, o nível do contexto imediato, o nível do contexto social propriamente dito, aquele que determina em termos conjunturais, culturais, e mesmo raciais, o modo de ser da interação e o nível do horizonte social e histórico mais amplo, que chega mesmo à relação entre Zeitgeisten. Trata-se de algo que confere ao conceito de interação do Círculo de Bakhtin uma amplitude que permite examinar de maneira mais aprofundada o caráter do discurso como irrupção do sentido, e que a meu ver permite dizer que, se pode haver discurso fundador, aqui entendido como a irrupção de um novo modo de recortar o mundo dado, nem por isso haveria sentido fundador, aqui entendido como um recorte estabilizado do mundo que precedesse o discurso, visto que a gênese dos discursos é o locus da gênese dos sentidos e não vice-versa – ou o próprio conceito de em enunciação perderia o sentido.

Pretendo dizer com isso que a idéia de “gênese” poderia dar a impressão de que haveria superfícies discursivas imediatamente acessíveis à análise e profundezas discursivas a que só se chegaria mediante um percurso que vai desta àquela, refazendo ao contrário o processo de produção de sentidos, e por ser isso tematizado, a meu ver polemicamente, nas atuais discussões sobre tendências de estudo da linguagem, notadamente no tocante à questão do gênero. Porque este, no âmbito da teoria bakhtiniana, também surge e se cristaliza, se transmuta etc. em relações interativas que vão desse nível imediato, considerado por praticamente todas as teorias da interação como a interação, a esse mediato, que abrange as temporalidades longas, residindo aqui um importante elemento de diferenciação entre as formulações do Círculo de Bakhtin e outras teorias da linguagem e do discurso.

Com as considerações aqui feitas, busco alcançar um duplo objetivo: discutir um aspecto de extrema relevância no âmbito de uma teoria enunciativa, e subsidiariamente destacar mais um ponto de convergência entre propostas das teorias que mobilizei. Por conseguinte, as considerações aqui feitas se fundam numa leitura bakhtiniana de formulações de Greimas acerca do percurso de geração do sentido e de Maingueneau, especificamente sobre “a gênese do discurso”, bem

como de discussões menos explícitas presentes à fragmentária obra do Círculo de Bakhtin, em particular as que se voltam para as relações entre universalidade (ou regularidade) e singularidade (ou novidade).

Maingueneau dá a meu ver, embora esse não seja seu “tema”, uma importante contribuição a essa questão, que por vezes se faz presente também em réplicas greimasianas a questionamentos sobre a pertinência de 3 níveis de análise na semiótica, bem como em várias discussões e problemas práticos vinculados com a textualização (a superfície) e a discursivização (a profundidade) na produção do sentido, que me parecem marcar empreendimentos de análise discursiva os mais diversos (e não importa aqui mencionar casos específicos, dado que me refiro a “tendências”).

O temor da superfície tem levado a teorias lingüísticas que buscam tanto o profundo que perdem de vista o concreto; e a exaltação da superfície tem gerado teorias lingüísticas que procuram tanto o concreto que perdem de vista o caráter simbólico da linguagem, suas configurações, e se propõem teorias sociológicas a que o lingüístico não se faz presente. O temor do evento que não se repete e cujo estudo, portanto, não seria “científico”, tem levado a teorias lingüísticas que só vêem as regularidades e perdem de vista as especificidades, impondo a metodologia ao objeto; o temor das estruturas que se repetem tem dado origem a teorias lingüísticas que só vêem as especificidades, renunciando ao dever de criar uma metodologia e parecendo supor que os objetos de estudo são coisas do mundo e não das teorias. O remédio para o temor da superfície é ver de frente o concreto, o próximo, sem renunciar à busca do profundo, do geral; nenhum método de estudo precisa ser uma camisa-de-força que despreza dimensões incômodas (ou mesmo “ridículas”) dos objetos.

Por outro lado, a exaltação da superfície é corrigida quando se considera que só se tem acesso a uma realidade segunda, aquela que criamos simbolicamente por meio da linguagem, e que essa criação não ocorre somente naquilo que vemos imediatamente. Combatemos o temor do evento que não se repete vendo o que há em comum entre todos os eventos que não se repetem e renunciando a uma visão de ciência que põe tudo num liquidificador do qual se espera que saia uma análise “perfeita”; o temor das estruturas que se repetem é vencido quando se aceita o desafio de constituir um objeto e criar um método que respeite as especificidades

sem deixar de perceber a existência de regularidades, dado que o mundo não é uma eterna novidade nem é o rigor metodológico algum mal em si.

Todos esses temores são legítimos e sobremodo relevantes, sendo porém incompreensível julgar que eles levam a propostas incompatíveis. Mas isso tem explicação: esses temores têm levado a propostas parciais que se apresentam como propostas totais, e que desprezam a complexidade tanto dos fenômenos como das teorias. Para um mundo complexo, teorias complexas — o que não deve ser confundido com a tentativa de criar uma teoria total, uma teoria de tudo, que a tudo explique e que tudo inclua. Brincar de Deus, como tem mostrado com muitos exemplos a história, é muito perigoso. Nem por isso se deve renunciar a certa unificação de vários exteriores teóricos naquilo que têm de complementares.

A necessidade de dar conta deste que julgo um dos problemas vitais dos estudos discursivos foi o que me levou a recorrer neste trabalho a conceitos de Maingueneau, de A. J. Greimas para subsidiar as teorias do Círculo de Bakhtin, lendo-os do ponto de vista de sua contribuição para uma teoria dos discursos e dos gêneros, naturalmente nos termos de minhas reflexões, de minha “posição enunciativa”. Feito o percurso dessa junção, há elementos para afirmar que o ponto de vista, teórico e prático, do empreendimento deve ser abrangente, mas a pretensão pouca. Ainda mais no terreno lingüístico, em que não se explicam, mas se descrevem coisas – e com base numa posição sempre parcial, que deve, longe de negada, escamoteada, ser não apenas reconhecida como também clara e livremente admitida: parto de x, com x métodos e x objetivos e construo o objeto x, que analiso de x maneira. Tanto posso dizer que o sujeito da enunciação se projeta em enunciador e enunciatário no enunciado como dizer que o locutor sempre fala a partir de sua relação com um interlocutor ou que ele busca criar um ethos e propor a adesão do interlocutor a uma dada comunidade discursiva, pois o que importa é reconhecer nos três casos que no discurso um e outro estão constitutivamente presentes. As diferenças metodológicas, o grau de especificação e o locus específico da produção de sentido são elementos que não impedem a convocação conjunta das teorias consideradas, dado que importa o que une, epistemologicamente, esses modos de cernir um dado objeto, bem como a coerência na construção e na análise do objeto da perspectiva de uma teoria enunciativa do discurso.