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A fase parasitária do gênero de auto-ajuda: as estratégias de apropriação de gêneros por um gênero em formação

Gênero – Discurso – Texto

3.6 A fase parasitária do gênero de auto-ajuda: as estratégias de apropriação de gêneros por um gênero em formação

O levantamento dos vários elementos relevantes da esfera de produção, circulação e recepção (cf. capítulo 1 e 2 e, especialmente, 6 e 7) levou-me a arrolar dados que caracterizavam os textos de auto-ajuda em geral como gênero, o que tornava necessária uma análise que demonstrasse suas características genéricas e

seus principais discursos típicos. A base da teorização em que se insere a análise é a leitura atenta da distinção bakhtiniana entre forma de composição e forma arquitetônica em suas relações com a questão do gênero. Num primeiro momento de análise, percebendo que esses livros de auto-ajuda, que mais tarde classifiquei como “psico-espirituais”, remetiam a vários outros gêneros, científicos e religiosos/místicos, veio-me de súbito a idéia de que fossem exemplos de “parasitismo”: extrair vida da vida alheia! Mas dei-me conta de que não se tratava de mero parasitismo, mas de um processo dinâmico de apropriação, e passei a considerá-los um “gênero parasitÁRIO”, usando um termo que envolve atividade e duração. Vi-me mais tarde levado a falar desses livros como exemplares de uma “fase parasitária” do gênero de auto-ajuda (marcada por uma ênfase psico- espiritual), o que me parece descrever melhor a questão, dado que essa fase envolve, mais do que simplesmente um “estar vivendo por meio de”, um dinamismo que parece querer alterar o próprio “hospedeiro”, intra-genericamente, e com alterações no tempo (donde “fase”).

Com efeito, essa fase parece constituir uma maneira por assim dizer antropofágica, extremamente ativa, de ocupar o espaço discursivo dos gêneros parasitados, ou criar um espaço discursivo paralelo, alternativo, que envolve esforços de alteração ou de redefinição da esfera de produção, recepção e circulação, ou então de criação de uma esfera paralela/agregada, em todos os casos num esforço de afirmação que lembra um pouco as primeiras estratégias de consolidação, na modernidade, do discurso médico, por exemplo — que em seus primeiros momentos tinha algo de despersonalizador, mas ainda não chegara ao ponto de quase anulação da relação médico-paciente apontado por várias obras de Foucault e por Clavreul (1983) — em oposição ao que via como curandeirismo etc., e que era então a corrente principal da cura, um outro absoluto irredutível a ser vencido absoluta e irredutivelmente em nome da ciência. Mas o discurso médico tinha a seu favor, no processo de formação e consolidação, a instituição médica, fundada num ideal, que começava a ser socialmente aceito, de cientificidade, apoiado pelos governos, ao passo que eu não identificava os aliados do gênero de auto-ajuda no plano institucional principal, se é que os havia.

Esses elementos me levaram a pensar que talvez todo gênero, em seu processo de formação, ao buscar antecipar-se a dificuldades que mais tarde vai

enfrentar para sua consolidação, passa por uma fase “parasitária”, na qual, incorporando certos gêneros a partir dos quais se forma, e recusando outros gêneros que também lhe servem de base, parece hesitante e frágil precisamente porque, ao criar para si uma estrutura de superfície fechada, um arcabouço de afirmações indiscutíveis que revela o medo da recusa e a falta de condições de enfrentá-la caso ocorra, tem uma existência indefinida, ambivalente, sem definição “genérica”, precisando por isso\ manter uma permanente tensão interior, de modo implícito ou explícito, em maior ou menor grau. Nessa fase parasitária, os discursos/gêneros não refutariam diretamente os gêneros a que se opõem, nem se comprometeriam diretamente com aqueles que buscam incorporar para seus fins específicos.

A refutação de outras posições enunciativas seria indireta, por denegação (cf. AMORIM, 2003, para o uso do conceito de denegação no âmbito do discurso) isto é, uma negação implícita e não-assumida marcada pela afirmação do contrário ou do contraditório daqueles, sem com eles polemizar diretamente e sem mencioná-los diretamente, mas ressignificando-os mediante uma dialogização interior, ao mesmo tempo em que evitariam assumir compromissos claros com os discursos/gêneros que são por eles assimilados e reinterpretados em termos não opositivos. Ora, esse procedimento tornava esses discursos assimilados/contestados ainda mais presentes no gênero parasitário identificado, o que provava uma tese de Bakhtin acerca da polêmica oculta, e ao mesmo tempo fazia dos livros um excelente material de estudo sobre a formação de gêneros, que a meu ver ocorre no tempo longo: a irrupção, consolidação, morte etc. de gêneros é o ponto culminante de um processo, não o próprio processo.

Insisto na questão de “formação” porque, do ponto de vista bakhtiniano de estudo do gênero discursivo, a existência de uma multiplicidade de livros ditos de auto-ajuda não estabelece por si só a existência de um gênero de auto-ajuda: as autodesignações não podem ser o critério de um estudo. A pesquisa mostrou haver vários sentidos de “auto-ajuda”, bem como tanto livros genericamente de auto-ajuda que não são considerados de auto-ajuda como livros não considerados mas que na verdade o são. Há indícios de que tudo o que pareça aproximar-se de um recorte misterioso, místico, cósmico etc. da realidade, ou que problematize em alguma

medida a realidade em termos que tidos por idealistas, ilusórios, psicologizantes, individualistas, é considerado auto-ajuda.

Empenho-me assim em demonstrar neste trabalho que a vertente de auto- ajuda estudada não apenas retoma duas “tradições genéricas” norte-americanas globais de auto-ajuda como denega os gêneros a que se opõe e evita assumir compromissos claros com os gêneros assimilados, constituindo assim um exemplo de fase parasitária de gênero,. Os gêneros objeto de oposição são configurados como livros de aconselhamento da área médico-psiquiátrica e psicológica, livros de popularização de conhecimentos sobre a saúde e de manutenção da saúde, livros de aconselhamento religioso, de doutrina religiosa e de preceitos morais religiosos. Os principais gêneros objeto de assimilação estão configurados em obras advindas do pragmatismo norte-americano em sua versão popular e dos preceitos religiosos puritanos (ou com eles vinculadas de várias maneiras).

O que define a noção de “fase parasitária” é o fato de as próprias formas composicionais, de validação das relações interlocutivas, e em alguns casos, de textualização etc. e o tipo de recepção e circulação que o gênero em formação procura assegurar exibirem tal esforço de escamoteamento da presença tensa dos gêneros apropriados, por assimilação ou rejeição, que tornam patente a ambivalência de suas propostas de libertação dos sujeitos das profissões de ajuda, da “hetero-ajuda”, esfera ampla dos gêneros parasitados.

Trata-se, de um lado, de formas de interlocução que no fundo evitam assumir a autonomia e a responsabilidade na sociedade e na história, mas propõem que o leitor mude de interlocutores e continue a ouvir os “mesmos” enunciados, a estar presentes às “mesmas” enunciações, bem como a seguir os “mesmos” preceitos. Paradoxalmente, como tudo isso vem na forma de uma sobreposição de elementos fundada na denegação desses enunciados, dessas enunciações, desses preceitos e que, portanto, postula indireta ou veladamente alternativas às discursividades e genericidades parasitadas, torna-se presente uma proposta de formação de uma macro “comunidade discursiva” (Maingueneau), paradoxalmente pragmática e extra- social e extra-histórica, cosmicamente autônoma, que recusa uma ampla gama de presumidos sociais, bem como de formas de dizer neles fundadas e aceita outros tantos.

Assim, se de um lado os membros-leitores se acham submetidos aos membros-autores, como ocorre nos vários gêneros denegados, o fato de os livros da fase parasitária se proporem a transmitir, não conhecimentos especializados a leigos, mas a competência para que o leitor possa tornar-se tão competente quanto eles parece propor outro tipo de esfera de atividade no âmbito da(s) esfera(s) de atividade dos gêneros parasitados. Logo, os gêneros em formação em fase parasitária assimilam procedimentos composicionais etc. dos gêneros parasitados ao mesmo tempo em que negam a validade dos regimes enunciativos destes, ou, melhor dizendo, buscam ocupar parte das esferas denegadas a fim de propor uma nova esfera, uma esfera segunda – que a meu ver ainda não se definiu. Não há sentido em falar de “gênero parasitário”, dado que, num certo sentido, todo gênero em formação o seria, mas numa fase parasitária de um gênero em formação.

Em suma, a fase parasitária exibe a presença de uma relação do gênero em formação com os gêneros que parasita marcada pela polêmica, mais do que velada, denegativa, e pela apropriação ambivalente, fundada na simulação (no sentido de Baudrillard) – e mesmo dissimulação – da “genericidade” dos gêneros parasitados. As características específicas que esse parasitarismo simulacral, e mesmo fantasmático, institui/admite na vertente estudada são a tentativa de legitimar a programação dos “pensamentos, palavras e atos” dos interlocutores para promover sua autonomia com relação a gêneros que são criticados por fazê-lo; a proposição de um ethos autoral de portadores de uma palavra de autoridade que é dissimulada pela proposição acompanhante de que o interlocutor pode apropriar-se desse saber e dessa competência. Além disso, a autopromoção do gênero como alternativa aos gêneros parasitados funda-se estranhamente na apropriação desses gêneros no que eles têm precisamente de programadores, ou seja, a crítica que lhes é feita encobre o uso das mesmas estratégias criticadas pelo gênero em fase parasitária, o que é explicável pela não consolidação como gênero, dado que um gênero formado o é mediante sua diferenciação de outros gêneros a partir dos quais tenha surgido, ou que tenha assimilado em sua formação, ainda que continue a exibir marcas daqueles.

Esse tipo de procedimento levanta a possibilidade de que todo gênero em formação, em seu confronto constitutivo da busca de ocupação do espaço discursivo dos gêneros a que se opõe e a que assimila, exiba sempre uma fase parasitária

como um dos momentos de sua “batalha” contra os gêneros adversários, fase em que ainda não se distinguiram muito bem do “discurso primeiro” (Maingueneau) a que pretendem se sobrepor ou mesmo substituir, e que, assim sendo, haveria um momento em que o gênero em formação ainda não seria um gênero “segundo” com relação a gêneros “primeiros”, mas uma espécie de “buraco negro” que vai absorvendo vários gêneros que dele se aproxima ou de que ele se aproxima, mas sem por isso criar algo específico que deles se diferencie.

O gênero em fase parasitária é marcado, em conseqüência, por uma ambivalente e ambígua dialogização interna em que a negação de que nega, a modulação do confronto ao ponto do (aparente) desaparecimento de sua própria genericidade, a indefinição, portanto, entre negação e aceitação, criam uma permanente indefinição da identidade genérica, ainda que, paradoxalmente, ele seja definido o bastante para ser identificado como gênero em fase parasitária de formação! O fato de esse gênero em formação não provocar uma ruptura (assim como a institucionalização da medicina não substituiu a esfera do “curandeirismo”, nem, sequer em sua atual fase tecnicizante, a autocura e a automedicação, tão praticada no Brasil) dos gêneros a que se opõe e que assimila é mais um indicio de que, no universo do gênero, não ocorrem rupturas.

Do mesmo modo como as antigas antologias desapareceram como tais mas são hoje parte dos livros didáticos, que as absorveram à sua própria maneira, um gênero cuja unidade temática se voltava para a construção do caráter se torna parte de um gênero cuja unidade temática se volta para a formação da identidade em décadas recentes. Logo, o outro estava o tempo inteiro presente no mesmo (Maingueneau), e ainda que, trabalhando a partir de dentro, numa espécie de polêmica oculta, pareça romper o pacto enunciativo anterior, na verdade o reabsorve e lhe dá as feições tidas por adequadas ao novo recorte do mundo que a esfera em formação admite. A novidade absoluta no âmbito do gênero parece assim aproximar-se das utopias: para ser crível, o gênero novo tem de exibir, tal como estas, um recorte concebível do mundo, e esse recorte não pode portanto trazer senão o conhecido, naturalmente sob nova roupagem, mas ainda assim conhecido, no sentido de concebível.

Esses elementos evocam a idéia de “socialização dos sentimentos” como única possibilidade de entendimento da obra poética (e as vanguardas mostram isso

ao ser rapidamente assimiladas) e da insistência de Bakhtin na idéia de que nada no mundo se realizou por completo. Só algo que se realizasse por completo poderia ser objeto de uma ruptura, a que se soma o fato de que o absolutamente individual não seria compreendido sequer por quem o sentisse, dado que, atravessado pelo outro, o sujeito não pode sentir aquilo que não tem como exprimir diante do outro de modo compreensível. Uma análise mais detida do surgimento de novas discursividades/genericidades, e mesmo de paradigmas, mostra que o que parece um momento de ruptura é tão somente o momento em que a mudança que já vinha ocorrendo se definiu a ponto de tornar-se visível, ou seja, é o ponto culminante de um processo que, de tão gradual, não era percebido até criar feição própria. Claro que o gênero em fase parasitária um dia terá sua própria arquitetônica, ou melhor, suas possibilidades arquitetônicas, mas em nenhum momento haverá a destruição da tradição genérica de que surgiu, por assimilação e/ou por confronto, mas sempre um modificação desta que o acomoda nela. A continuidade está sempre presente na mudança, e esta não pode existir sem aquela, do mesmo modo como a diferença pressupõe alguma semelhança, porque, sem esta, haveria apenas incompatibilidade e, portanto, não haveria sentido.

Capítulo 4

Uma proposta de exame do discurso