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2. A CRÔNICA – UM GÊNERO MULTIFACETADO

2.4 Autoria, estilo e criatividade

As perguntas que norteiam esta seção inicialmente são: Como um autor se constitui? Existem marcas de autoria? O que permite a alguém falar ou escrever de uma determinada forma que possibilite a um leitor reconhecer que se trata de um determinado poeta, romancista ou jornalista? Para responder a essas perguntas é preciso recorrer a alguns autores que se têm preocupado com essa questão.

Bakhtin afirma que um autor se constitui à medida que se coloca e se posiciona em seu texto, deixando claro o seu intuito, o seu querer-dizer no enunciado que produz, revelando seu estilo articulado ao estilo do gênero escolhido. Fica evidente, assim, a inter-relação entre o enunciado produzido e a situação de produção, pois esta interfere na escolha do sujeito quanto ao gênero que melhor

expressa o seu querer-dizer e se adapta à situação. Nesse processo de adaptação emergem marcas que evidenciam a autoria e o estilo do sujeito produtor, aliadas ao estilo do gênero.

“Cada esfera conhece seus gêneros, apropriados à sua especificidade,

aos quais correspondem determinados estilos. Uma dada função

(científica, técnica, ideológica,oficial, cotidiana) e dadas condições, específicas para cada uma das esferas da comunicação verbal, geram um dado gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado,relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico. O estilo é indissociavelmente vinculado a unidades temáticas determinadas e, o que é particularmente importante, a unidades composicionais: tipo de estruturação e de conclusão de um todo, tipo de relação entre o locutor e os outros parceiros da comunicação verbal (relação com o ouvinte, ou com o leitor, com o interlocutor, com o discurso do outro, etc.). O estilo entra como elemento na unidade de gênero de um enunciado [...] O estudo do estilo sempre deve partir do fato de que os estilos da língua pertencem por natureza ao gênero e deve basear-se no estudo prévio dos gêneros em sua diversidade.”( Bakhtin, p.284) grifos nossos

De acordo com Bakhtin, há, portanto, relação direta entre gênero e estilo, relação visível e reconhecível por meio da observação do tema, dos elementos compositivos, da funcionalidade do gênero e sua adequação à esfera de atividade. Na perspectiva bakhtiniana, o estilo faz um elo entre o social e o individual, pois é resultado de uma enunciação. O enunciado é composto pela alternância dos sujeitos falantes, pelo querer-dizer do locutor (sua amplitude e fronteiras) e pelo acabamento que lhe é dado - em que se pode perceber o que locutor escreveu ou disse, respondendo a alguém e tomando uma posição. Logo, para concretizar o seu querer-dizer, o locutor escolhe a forma de comunicação adequada ao tema e à esfera de atividade em que se encontra, o enunciado se caracteriza então pelo conteúdo e expressividade do locutor em relação ao objeto e ao sentido.

É a partir desse trabalho realizado pelo autor que se pode perceber as marcas de seu estilo e as do gênero. Esse trabalho com e pela linguagem evidencia sua intenção. É preciso observar os recursos lexicais, gramaticais e composicionais do enunciado, para recuperar algumas das possíveis intenções expressas no todo do enunciado, no gênero em questão.

Quando escolhemos uma palavra, durante o processo de elaboração de um enunciado, nem sempre a tiramos do sistema da língua, da neutralidade lexicográfica. Pelo contrário, costumamos tirá-la de outros enunciados e, acima de tudo, de enunciados que são aparentados ao nosso pelo gênero, isto é, pelo tema, composição e estilo: selecionamos as palavras segundo as especificidades de um gênero [...] No gênero a palavra comporta certa expressão típica. Os gêneros correspondem a circunstâncias e a temas típicos da comunicação verbal e, por conseguinte, a certos pontos de contato típicos entre as significações da palavra e a realidade concreta. (Bakhtin, p.311-12)

Um enunciado é permeado por referências e lembranças de outros enunciados e a eles está vinculado. Assim, quando se insere a palavra do outro, fica-se vinculado no interior de uma esfera comum da comunicação verbal. O enunciado produzido pode ser de confirmação, refutação ou complementação. A complementação pode ser feita a partir da inserção de um elemento que expresse algo diverso ou que sugira outra orientação. Para Kerbrat-Orecchioni (1999), o modo de dizer pode denunciar pontos de vista diferentes e que provocam a irrupção do sujeito, de sua assinatura.

Cada um dos gêneros do discurso, em cada uma das áreas da comunicação verbal, revela uma concepção de destinatário. Assim quando procede à escolha de recursos lingüísticos que compõem o todo, o produtor do texto está, na verdade, dando o arremate que considera adequado e deixando as marcas de seu estilo.

A noção de estilo que Bakhtin deixa antever é de que o estilo não se observa na língua, nas estruturas frasais, mas no conjunto do texto. Uma reflexão que aborda as diferentes visões de estilo é feita por Possenti (1993) em “Discurso, estilo e

subjetividade”. Ele critica inicialmente as concepções típicas do estilo na linguística,

procurando explicitar as condições de produção desse conceito, e propondo uma concepção compatível com as grandes linhas emprestadas de Granger.

Para Possenti (1993), os gramáticos e os linguistas, em geral, definem o estilo de forma mais ou menos vaga, tendo como ponto de referência a oposição língua- fala ou a oposição ou complementaridade entre as diversas funções da linguagem.

Ele tece comentários a respeito de Bally (1951), de seu ponto de partida e de chegada. De acordo com Possenti (1993), Bally parte de Saussure, aceitando que a linguagem expressa nossos sentimentos, nossas ideias, mas acrescenta que não é essa a única função da linguagem, pois ao invés de refletir a realidade, ela a refrata, ou seja, impõe-lhe uma deformação cuja causa é a natureza do nosso "eu". A

discordância de Possenti com relação à Bally remete à dimensão de sua estilística: sua restrição a uma função da linguagem de certa maneira subsidiária, embora seja relevante. O grande problema de Bally é sua oposição, no estilo, a uma função primeira da língua, a de representar uma ideia geral. Neste caso, não se tem estilo, mas apenas a língua na sua função ideacional ou representativa. A representação é neutra do ponto de vista do indivíduo, portanto, não traz consigo nenhuma marca emotiva.

Possenti comenta ainda o posicionamento de Mattoso Câmara que, segundo o autor, é semelhante ao de Bally. Conforme Possenti, há apenas uma diferença entre Câmara e Bally: Mattoso recusa, como ponto de partida, a dicotomia de Saussure (aquela que postula a estilística como complemento da gramática), assumindo como mais adequada a tríplice função da linguagem definida por Bühler. Com base nas três funções propostas por Bühler (expressão, apelo e representação), Mattoso afirma que a língua fornece formas para estabelecer e dar a conhecer as representações, juntando-se a elas, a exteriorização do estado d’alma em que tais representações lançam os seres humanos, e seu impulso de partilhar. Logo, para Mattoso, as três funções se dão simultaneamente, por isso, para ele, a "estilística vem completar a gramática".

É preciso ainda perceber no trabalho de Mattoso, segundo Possenti (1993), que a noção de estilo está relacionada à de desvio da norma, havendo assim uma individualização da personalidade. Mattoso centra sua estilística no complemento da gramática e da função expressiva. Diz que, embora não parta de Saussure, a conceituação de estilo nos moldes de Bally é o cerne do problema.

Para Possenti, os problemas dos lingüistas, ao definirem estilo, decorrem da forma como buscam inserir na língua uma função paralela à ideacional para a linguagem. No entanto, esta função está sempre fora do lugar neste tipo de concepção. O problema dos linguistas stricto sensu, ao abordarem a questão do estilo, está em sua concepção de língua e de gramática.

O ponto de partida adequado para poder-se pensar a questão do estilo é a admissão da variabilidade dos recursos como constitutiva da língua, conforme os pressupostos assumidos por Granger (1968): o estilo deve ser visto a partir da pluralidade dos códigos.

Possenti retoma a necessidade de se compreender que o discurso é uma atividade, é feito na língua e atua em cada evento circunstancial sobre ela. Ele

finaliza o capítulo com uma citação bastante relevante de Goethe: “o estilo não é (...) nem o particular puro, nem o universal, mas o particular em instância de universalização e o universal que se despe para remeter a uma liberdade singular.” (Goethe apud Possenti,1993, p.199)

As marcas de autoria, conforme Possenti (2002), são, na verdade, da ordem do discurso e dizem respeito a traços do autor que aparecem num texto e expressam a historicidade dos eventos e das coisas que têm sentido. “Pode-se dizer provavelmente que alguém se torna autor quando assume (sabendo ou não) fundamentalmente duas atitudes: dar voz a outros e manter certa distância.” (Possenti, 2002, p.106)

De acordo com Possenti (2002), os indícios de autoria são revelados quando diversos recursos da língua são agenciados mais ou menos pessoalmente - segundo um critério de gosto. Estes também devem produzir efeitos de autoria, quando agenciados a partir de condicionamentos históricos, pois só na cadeia histórica podem fazer sentido.

Vê-se, portanto, que, para Possenti, a noção de autoria remete à noção de estilo, havendo entre ambas uma complementaridade, revelando-se esta produtiva para a observação, no interior de um texto, da presença do sujeito autor que usa diferentes recursos para marcar sua presença e seu estilo.

É preciso também estabelecer pontos de contato entre autoria, estilo e ensino de gramática, este último visto como parte do processo de produção de um texto em que o sujeito agencia o que sabe, o que já incorporou como seu, ao longo de sua vida, e usa em situações determinadas, visando à produção de determinado efeito de sentido em seu destinatário ou interlocutor.

2.5 Relações entre criatividade e gramática, autoria e estilo e o trabalho