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Ao se debruçar sobre as questões da autoria, é inevitável investigar as condições de reconhecimento. E, para desenvolver este assunto, a opção dá-se pela via reversa: sujeitos que não foram introduzidos, ou que não se introduziram, no rol do reconhecimento da crítica e da história da arte. Sobretudo desde Giorgio Vasari as questões da fama e reconhecimento foram tratadas de modo naturalizado, de acordo com o pressuposto da aceitação da obra por via do reconhecimento do artista idealizador. Nesta perspectiva, a autoria perpassa por uma

70 sensibilidade que sobrevive e/ou persiste em duas esferas: a do desejo de reconhecimento diante do público e sistema das artes; e a da obstinada criação, ainda que seja maior a chance de cair na ignomínia.

Tal reflexão aplica-se ao sujeito autor, provocando inquietações acerca do seu indivíduo, por considerar a legitimação uma questão indissociável do sistema de artes. Neste sentido, como se deve atuar diante de indivíduos realizadores de arte e que, no entanto, não se fizeram legitimamente como autores? Existem critérios capazes de avaliar o ser ou não ser um autor? Estas são indagações que dificilmente seriam respondidas de forma satisfatória, pois percorrem inúmeros caminhos dentro do campo das artes. Em virtude disso, não se pretende buscar respostas para elas. Tal persecução resultaria em um esforço hercúleo, cujos resultados seriam medíocres e que, certamente, destoariam dos caminhos que norteiam o presente trabalho.

Constantemente são lembrados os sujeitos que, de alguma forma, fazem-se presentes através de seus legados até a contemporaneidade. Certamente, se deve considerar a importante existência dos mesmos, tenham eles realizado grandes proezas, instituído heranças, inovado no modo de pensar, inventado fórmulas revolucionárias, ou produzido grandes obras para a posterioridade. Entretanto, certas existências produzem vestígios de modo mais discreto, e são capazes de ser brutalmente esvaídos pela espessura do tempo devorador, atropelando todas e quaisquer marcas possíveis de admiração. Torna-se pertinente ampliar os instrumentos desta investigação para não cair no abismo autômato da autoria já compreendida e aceita.

Diante desse quadro, surgem dúvidas. Um exemplo provém daqueles sujeitos que projetaram obras, mas não chegaram a materializá-las. É o caso, talvez, do artista sem obra. Como reconhecê-lo? A problemática da autoria sem obra é refletida a partir do estudo das literaturas de Maurice Blanchot. O critico literário apresenta um curioso apontamento sobre Joseph Joubert, em um capítulo intitulado O escritor sem livro, texto presente na obra O livro

por vir, de 1959. Nesse capítulo, Blanchot apresenta Joubert, um escritor que soube negligenciar a luta por seus livros. Segundo Blanchot, Joubert tinha um grande dom e, no entanto, nunca publicou um livro. Depois de ter encontrado o seu propósito, escrever, pesquisar e ter domínio do assunto, resolveu que não precisaria mais escrevê-los propriamente. Sua busca havia chegado ao fim. Blanchot ainda relata a ausência de razões para que o escritor escrevesse e publicasse sua obra após a completa imaginação e solução em

71 sua mente. “(...) [E]sse homem extremamente capaz e que tem sempre, junto a si, um carnê em que escreve, não publica nada e não deixa nada para ser publicado”116

.

A partir destes apontamentos sobre as vidas esquecidas, ou que se desejaram esquecer, o pensamento de Blanchot adquire importância: “O homem não pode escapar da desgraça, porque não pode escapar da existência, e é em vão que ele se dirige para a morte, que dela enfrenta a angustia e a injustiça, pois ele só morre para sobreviver”117

. Nesta passagem, Blanchot tece uma relação entre a morte e a vida apresentadas nos escritos de Franz Kafka (1883 – 1924). Ele afirma a busca de Kafka por sua existência em seus livros, contudo, o que o escritor realmente desejava era o silêncio, ao contrário da glória almejada pela maioria dos agentes produtores. O crítico literário ainda pontua:

O que devemos ver é que esse próprio desacordo, o que existe de embaraçoso no triunfo que coroa uma vida infinitamente miserável, a sobrevida quase indefinida que a posteridade lhe promete, esse fracasso no sucesso, essa mentira da desgraça que só resulta no brilho da fama, uma contradição dessas, irônica, faz parte do sentido da obra e foi pressentida em sua pesquisa.118

Diante disto, analisa-se o modo de reconhecimento de determinadas existências, sujeitos que muitas vezes adquiriram fama e, contudo, em virtude de acontecimentos imprevisíveis, hoje são escassamente lembrados. É nessas identidades pouco estudadas que se busca lançar as lentes deste estudo, ou ainda, arrisca-se tratar de artistas de ralo reconhecimento, pouco valorizados. No entanto, em virtude da insuficiente quantidade de pesquisas acerca do assunto, faltam dados para abordar as obras desses peculiares artistas com maiores profundidades. Isso, contudo, não é motivo para o abandono desses sujeitos, praticamente envolvidos pelo desconhecimento. Afinal, a história também se constrói dessas biografias – e não somente de biografias - esquecidas.

Partindo deste pressuposto, se torna necessário abordar do mesmo modo os sujeitos que estão à margem do reconhecimento. Trata-se aqui de abordar os artistas reconhecidos e, também, os não reconhecidos. Para que seja possível catalogar alguns destes casos, é preciso, conforme cita Foucault, que um raio de luz chegue a estas vidas, ao menos por um breve instante, para refletir acerca delas. O mesmo relata em sua obra Vida dos homens infames:

116 BLANCHOT, 2005, p.74. 117 BLANCHOT, 1997, p.85. 118 Ibid., p.84.

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He querido que estos personajes fuesen ellos mismos obscuros, que no estuviesen destinados a ningún tipo de gloria, que no estuviesen dotados de ninguna de esas grandezas instituidas y valoradas – nacimiento, fortuna, santidad, heroísmo o genialidad –, que perteneciesen a esos millones de existencias destinadas a no dejar rastro, (...).119

Compartilhando essa maneira de pensar, adentra-se no rol de artistas pouco valorizados, das vidas artísticas pouco lembradas. Cuida-se de sujeitos de pouca fama que não adquiriram grande reconhecimento por determinados eventos no decorrer de suas vidas, mas que, ao mesmo tempo, não se aproximam da desonra. Dentre inúmeros casos que se poderia citar nesta pesquisa, observa-se com mais cuidado a prática e a biografia de dois sujeitos esquecidos, Eduardo Dias e Acary Margarida. Faz-se necessário a abordagem biográfica diante de tais condutas de vida na procura de nuances capazes de saltar suas existências. No entanto, mais interessante seria a investigação de suas obras, fato este impossibilitado por serem indivíduos ausentes em números de pesquisas teóricas e históricas. Evidencia-se a ausência de seus nomes nos catálogos de artistas modernistas de Santa Catarina, fato este que tornou um empecilho ao tratar de obras, e até mesmo das biografias, destes artistas neste presente estudo.

Eduardo Dias de Oliveira nasceu em 19 de fevereiro de 1872 em Florianópolis, antiga cidade de Nossa Senhora do Desterro. De família humilde, era filho de Francisco Dias de Oliveira e Maria Cristina de Oliveira. Desde menino, ele iniciou no mercado de trabalho como sapateiro, no qual cursou uma oficina e adquiriu certo reconhecimento por suas habilidades. Em seguida, ingressou nas aulas de desenho e pintura com o artista Manoel Maneca, ou Maneca Margarida, abandonando o ofício de sapateiro e passando a se dedicar à sua crente vocação artística.

Dias não alcançou forte destaque nacional como artista, possivelmente, também, como resultado de sua pouca formação acadêmica. Seu reconhecimento restringiu-se à sua cidade natal e localidades vizinhas e, ainda assim, somente ao circuito pertencente ao âmbito das artes. Da mesma maneira que outros artistas, como Victor Meirelles e Martinho de Haro, Dias teve sua oportunidade de seguir carreira através de uma bolsa de estudos na Escola Nacional de Belas Artes120

, no Rio de Janeiro – que, na época, ocupava o lugar de capital federal e centro de estudos em artes. A oferta realizada em 1896, pelo então governador do estado de Santa Catarina Hercílio Luz, foi recusada. O motivo da negação é impreciso, porém, todos

119 FOUCAULT, 1977, p.180.

73 reconhecem a profunda ligação que o artista tinha com sua terra natal, o que impossibilitaria, assim, a sua partida.121

Além de, provavelmente, não desejar abandonar sua cidade e, por isso, negando o convite de estudos, cogita-se também outro motivo: a proposta advinda do governador era proveniente de um partido oposicionista e, portanto, não foi aprovada pela Assembléia Legislativa do estado catarinense122

. No entanto, a primeira suposição (não deixar a cidade) pôde ser afirmada: posteriormente, Dias refutou uma vultosa proposta para trabalhar em Porto Alegre, com grandes retornos financeiros feita por Ângelo Galiani.

Pai de uma grande família, o artista muitas vezes recorreu ao exercício de “caiador de paredes”, atividade que garantia sua sobrevivência nos períodos de dificuldades financeiras. Ele também desempenhou diversas atividades artísticas, dentre estas, a de escultor de fachadas e responsável pela ornamentação de carros alegóricos para algumas sociedades carnavalescas locais. Atuou como muralista, e produziu as pinturas sacras no teto da Igreja de Nossa Senhora do Rosário.123

Eduardo Dias: Ponte Hercílio Luz, 1930. Óleo sobre tela, 109 x 152 cm. Acervo do MASC, tombo nº 298.

Dias atuou, ainda, como cenógrafo para alguns autores da região e restaurador nas pinturas da Igreja Ortodoxa da cidade. Contudo, foi com suas pinturas que teve sua breve repercussão local, embora tenha realizado apenas duas exposições em vida. A primeira, em

121 De acordo com ARAUJO, 1977, p.68. 122 Id.

74 agosto de 1916, no hall do Teatro Álvaro de Carvalho e a segunda, em 16 de fevereiro de 1919, no Salão Beck.124

Com o intuito de auxiliar o artista que passava por grandes crises financeiras, em 19 de outubro de 1918, seus amigos e admiradores organizaram um festival no Teatro Álvaro de Carvalho. Escreveu Ildefonso Juvenal sobre o dia:

[U]ma comissão composta por cavalheiros acompanhou Eduardo Dias até o palco, onde José Boiteux, então Secretário do Interior e Justiça, lhe colocou no peito uma medalha de ouro, oferecida pela Comissão de Festejos do Jubileu de Rui Barbosa.125

Em conseqüência de sua contribuição à arte catarinense, em 1958, o Grupo de Artistas Plásticos de Florianópolis, GAPF, realizou uma exposição em sua homenagem. Sobre esse aspecto, Luciene Lehmkuhl ressalta o porquê do interesse em Eduardo Dias àqueles artistas:

É através das poucas referências a ele, num e noutro trabalho, e das obras existentes no acervo do Museu de Arte de Santa Catarina que é possível perceber o interesse do artista pela temática referente à paisagem local. Ele pinta a Ilha e a cidade vistas, em geral, do alto como num cartão-postal. Atem-se ao meio natural e às modificações causadas pela ação humana.126

Embora Dias tenha alcançado relativa fama em Florianópolis, não foi amplamente reconhecido pela cidade que tantas vezes representou em suas telas. Eduardo Dias faleceu em 27 de outubro de 1945 em Florianópolis, e desde então apenas é lembrado eventualmente por alguns membros do circuito de artes em sua cidade. No dia seguinte de sua morte, o jornal O

Estado noticiou seu falecimento, demonstrando preocupação com seu possível e futuro esquecimento:

Aos 73 anos, ei-lo desaparecido para sempre. Não pintará mais quem tantas belezas deixou, sem pretensões de artista, e com as necessidades de operário. (...) Fez por vocação, aquilo que, nem a força de estudos, muitos conseguem fazer. Não tinha a mínima presunção. Andou até caiando paredes, no granjeiro da vida. Paz à sua alma, que bem merece quem nada pretendeu ser no mundo.127

124

CHEREM, In: Revista Ágora, 1996, p. 14.

125 Juvenal, Ildefonso: Eduardo Dias, o Mágico do Pincel. Conferência realizada no Instituto Histórico e

Geográfico de Santa Catarina. Editada em Libreto do IHGSC, Florianópolis: 1948, p.1. Apud Eduardo Dias: Resgate de um artista. Florianópolis: Museu de Arte de Santa Catarina, s/d, s/p.

126 LEHMKUHL, In: A casa do baile, 2006, p.84.

75 Por necessidade econômica, muitos artistas deixam de criar suas obras e buscam por novos meios de sustento. A respeito disto, Ronaldo Brito publicou, em 1975 - portanto posterior ao período aqui tratado -, sua Analise do circuito. Neste texto, Brito pensa na contemporaneidade e tece relações entre o sustento econômico dos artistas. Para ele, “O mercado significa apenas e precisamente, em termos de produção, a garantia econômica da continuidade do trabalho. O que não anula a seguinte verdade: produção e mercado encontram-se em posições antagônicas”128

. Compreende-se as urgências que levam o artista a criar estratégias que promovam o desbloqueio e formação de instrumentos que ultrapassem os nervos do sistema de artes.

A respeito disto, Brito afirma a existência de duas linhas adversas que os artistas podem se colocar em relação ao circuito: “(...) a dos que pretendem transformá-lo e a dos que pretendem acompanhá-lo em suas mudanças”129

. Sem poder escolher entre estas opções, há aqueles que se colocam, ou são colocados, à margem da decisão. Este pode ser considerado o caso pertinente neste estudo sobre Eduardo Dias e o artista investigado a seguir: Acary Margarida.

Também nascido em Florianópolis, em 1908, Acary Margarida desde muito jovem sonhou junto dos seus pincéis. Com o auxílio de seu pai, o professor Joaquim Antonio das Oliveiras Margarida, o garoto se familiarizou com as tintas. Acary desenvolveu as técnicas de tinta a óleo e acrílica sobre tela durante seu período de aprendizado autodidata. Passou sua vida inteira no continente de Florianópolis, razão para o qual o tema mais freqüentemente abordado em suas pinturas foi a paisagem local130

. Dentro desta temática, podemos citar: casarios, naturezas-mortas, florais e demais costumes da região.

Acary sonhou em ser artista e tinha o grande desejo de ser reconhecido por sua arte. Enquanto as grandes chances para prosseguir com sua profissão não chegavam, o aspirante a artista criava dezesseis filhos e tinha que buscar renda para prover uma boa educação a todos. Acary utilizou o carnaval a seu favor na criação de carros alegóricos na busca pela fama. Partiu para áreas distintas procurando o reconhecimento público. Acary executou diversas atividades durante sua vida para garantir o sustento de sua grande família. Trabalhar como

128 BRITO, Ronaldo. Análise do circuito. In: MOREIRA, Roberto (Org.) Caderno e.i – 1 (espaço impresso –

parte 1): análises e desdobramentos – A Revista Malasartes e o circuito de arte brasileira dos anos de 1970. Rio

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