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A Avaliação nas Reformas Educacionais

4 AVALIAÇÃO COMO REGULAÇÃO DA APRENDIZAGEM OU

4.6 A Avaliação nas Reformas Educacionais

Sem falar ainda em avaliação do rendimento dos estudantes em âmbito nacional, a não ser por escassas experiências no Brasil, ela se realizava em sala de aula pelos professores, muito influenciados pelas teorias do currículo que circulavam nos Estados Unidos desde o início do século XX. As primeiras influências, de acordo com Silva (2019), foram de Bobbit, que propunha que a escola funcionasse tal qual uma fábrica, especificando precisamente os resultados a serem atingidos, o método para atingi-los e uma forma de mensuração, que seria um exame das habilidades requeridas para as ocupações da vida adulta, totalmente equiparado ao sistema taylorista.

Essa orientação curricular, embora encontrasse oposição em John Dewey, que se preocupava muito mais com a construção da democracia, como relata Silva (2019), perdurou por décadas, buscando sempre a eficiência do currículo, seu planejamento, aplicação e mensuração com elaboração de instrumentos de medição precisos. A influência da indústria sobre o currículo era tanta que se falava até em estabelecimento de padrões, homogeneidade e produtos educacionais (SILVA, 2019).

O modelo curricular defendido por Bobbit encontrou voz e se consolidou com Tyler, em 1949, dominando de vez o campo do currículo nos Estados Unidos e influenciando diversos países, inclusive o Brasil, pelas próximas quatro décadas (SILVA, 2019). O autor aponta que, com o revigoramento do currículo como questão técnica, a atividade educacional se divide em currículo, ensino, instrução e avaliação, com forte ênfase na orientação comportamentalista presente na educação tecnicista e no estabelecimento de padrões de referência para que fosse possível avaliar.

Tudo isso pode nos parecer familiar porque, com as avaliações em larga escala, é o que exatamente temos visto: a educação sendo avaliada a partir de padrões de referência e sendo tratada como produto para preparar os estudantes para o mercado de trabalho e desenvolvimento econômico. Nos anos 1950 e anos 1960, as avaliações, embora internas à escola, regulavam, pelas mãos dos professores, os estudantes que estariam aptos ao trabalho na indústria.

A Teoria do Capital Humano, de certa forma, validou as ideias e orientações expressas pelo currículo tradicional e conservador com influências dos norte-americanos, que se pautou no modelo fabril e pretendia a padronização e homogeneização com a avaliação definida para mensurar as habilidades dos estudantes dentro do que se esperava para o mundo do trabalho, já expressando uma relação de poder e hierarquia nas relações internas à escola como premissa ao que seria o modelo comportamental desejado nas relações de trabalho, conforme destacado por Afonso (2009b).

Enquanto na escola pública a avaliação classificava e selecionava os mais bem preparados para os postos mais baixos, a escola privada continuava a preparar para os mais altos postos e para dirigir o país. Nesse período o status quo começou a ser questionado e a escola foi colocada na condição de aparelho ideológico do estado. Na verdade, já desde a década de 1960, movimentos culturais, sociais e no campo da educação questionavam a estrutura educacional tradicional (SILVA, 2019).

Segundo Silva (2019), as teorias críticas do currículo, com marcos fundamentais em Althusser, Bourdieu, Bowles e Gintis, Apple, Young, Paulo Freire, desconfiaram, questionaram e propuseram transformação radical.

Mas na prática na sala de aula, ainda imperava a avaliação seletiva, com altos níveis de reprovação, abandono e evasão, tanto que o fluxo se tornou um problema para o governo, que tinha que expandir rapidamente seu sistema em consonância com as demandas da industrialização. O cenário foi propício para algumas experiências de políticas de ciclo testadas em alguns estados e municípios brasileiros, mas com efetiva implementação somente na década de 1980 e de forma assimétrica.

Os princípios da política de ciclos contemplavam uma avaliação mais formativa, porém com dificuldade de transposição do campo teórico para a prática. A dificuldade de se trabalhar com a diversidade em sala de aula, como Mainardes (2010) colocou, confrontou os professores, que se depararam com crianças que não eram aquelas ideais pelas quais esperavam, a quem as tradicionais metodologias com padrões de desempenho estabelecidos a serem alcançados em um exame não atenderam.

A avaliação, nesse período, entra em discussão e a concepção de avaliação formativa pauta a implementação das políticas dos ciclos. As teorias críticas do currículo influenciaram o debate. Expectativas são postas em prática e os discursos acalentam uma proposta mais progressista de avaliação, em consonância com o

discurso democrático. É o momento em que a avaliação formativa se sobressai sobre a somativa, ou como destaca Barreto (2001), de positivista passa para antipositivista, pelo menos no discurso. Mas sua jornada não a levou ao protagonismo nas escolas brasileiras, ela coexiste com a avaliação somativa e a força das avaliações em larga escala, que retomam o paradigma positivista.

Luckesi (2011) deixa claro que a escola brasileira sempre praticou exames escolares e por mais que o discurso sobre avaliação passasse de um termo a outro, de exame à avaliação da aprendizagem, a prática escolar está longe de sair dessa avalição tradicional. Se, internamente à escola, o discurso ou prática é difícil de mudar, com a avaliação em larga escala pesando sobre a vida escolar, a mudança é ainda mais difícil. De ferramenta fundamental à escola e ao professor para possibilitar o desenvolvimento de uma pedagogia diferenciada para os estudantes nos anos 1980 e início dos anos 1990, a avaliação se tornou um instrumento de prestação de contas e responsabilização (BURGOS; CANEGAL, 2010).

É paradoxal que a LDB 9.394/96 tenha promulgado a possibilidade de organização escolar em ciclos, que leva a repensar a avaliação para a aprendizagem do estudante e, ao mesmo tempo, contemple a avaliação em larga escala e centralizada, de forma a promover o Estado como avaliador, mas responsabilizando as equipes escolares pelos problemas na educação.

Impressiona também quando Luckesi (2011) declara que nosso exercício pedagógico é ainda mais uma pedagogia do exame do que uma pedagogia do ensino e da aprendizagem. Ao observar o relato do autor sobre a situação dos estudantes do antigo terceiro ano do ensino de 2º grau, que viviam pelas provas preparatórias para os vestibulares e assim tudo era orientado para esse fim, é inevitável comparar com o que ocorre hoje. A mesma situação se repete em função do ENEM no ensino médio e da Prova Brasil no ensino fundamental. E temos, assim, que admitir que ainda somos governados pela pedagogia do exame.

Parece-nos interessante concordar com Luckesi (2011) quando aponta que a escola opera com a verificação e não com a avaliação da aprendizagem porque:

verificação é uma “observação, obtenção, análise e síntese de dados e informações que delimitam o objeto ou ato com o qual se está trabalhando [enquanto a avaliação é] atribuir um valor ou qualidade a alguma coisa, ato ou curso de ação”(LUCKESI, 2011, p. 52), que implica posicionamentos exigindo decisão sobre o que fazer com o que foi avaliado. E nossa concordância se dá pelos fatos elencados a seguir:

• os professores sempre tiveram um poder de regulação por meio da avaliação, o que lhes confere certo domínio sobre a dinâmica de sala de aula e perder isso não lhes é confortável;

• a prática pedagógica dos professores tem influências de suas vivências como estudantes e como profissionais em ambientes escolares que praticam a pedagogia do exame;

• mudar a prática para uma outra concepção da qual não tenha se apropriado compreensivamente, como no caso dos ciclos, não ocorre com facilidade e eles se apegam ao que estão acostumados;

• a configuração da avaliação em larga escala como macrorregulação do sistema educativo confere ao trabalho escolar responsabilizações que impõem produtividade e performatividade e transformam o tempo e o espaço na escola, não restando tempo para análise e reflexão sobre essas questões;

• as especificidades de cada microcontexto ou mesmo macrocontexto são encobertas pelo fato de que para problemas diferentes em países diferentes são feitas as mesmas propostas de políticas educacionais.

Assim sendo, a uniformidade dessas políticas pode lograr atingir os objetivos traçados de forma homogênea, mas não podem prever os resultados e estes não dependem apenas do desenho, mas do processo e das ações dos atores envolvidos.

A realidade é mais complexa do que supõem os formuladores e as reformas custam mais que dinheiro, podem custar também poder.

Na realidade em que são implementadas há as respostas dos atores e a produção dessas respostas se dá por meio de processos de negociação, de busca de estratégias e lógicas de ação que configuram, para Barroso (2004), as microrregulações, e que, para Ball (2016) e Gonzalez (1998), seriam micropolíticas.

Interessa-nos compreender quais são essas microrregulações e como professores e gestores exercem-nas no interior da escola, diante da regulação representada pelas avaliações em larga escala. Portanto, na próxima seção, abordaremos as microrregulações e seus elementos configuradores.