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4 AVALIAÇÃO COMO REGULAÇÃO DA APRENDIZAGEM OU

4.1 Avaliação para a Aprendizagem

No início do ano letivo, os professores procuram reunir todas as informações sobre seus alunos e levantar o que sabem e o que ainda não sabem. O que se observa é que a avaliação está em primeiro plano no planejamento docente. E não está errado, afinal, o princípio básico da avaliação é justamente o de alimentar o processo pedagógico para real promoção da aprendizagem. Os desdobramentos das informações recolhidas se modelarão em formas, tipos, dimensões e funções distintas, dependendo dos usos que os professores e a escola fizerem dos resultados.

E diante de tantos aspectos envolvidos, muitas vezes, o docente pode não ter clareza de tudo o que permeia o ato de avaliar e o quanto isso representa uma regulação sobre o ensino e sobre a aprendizagem dos estudantes, regulação essa que foi e, em grande parte, ainda é exercida por ele.

Durante décadas as avaliações foram usadas pelos professores tanto para classificar e selecionar os estudantes, quanto para orientar e ajustar o ensino à aprendizagem deles. Na prática, sempre foram os docentes os detentores da capacidade de julgar o que os jovens e as crianças sabiam ou haviam aprendido, ou de reorientar sua atuação em classe para ajudar esses mesmos jovens e crianças a aprenderem. Mas nas últimas décadas, o Estado implementou e vem fortalecendo uma cultura de avaliação em larga escala que coloca o professor em posição de avaliado também, juntamente com a escola que recebe uma nota do IDEB.

As regulações que se dão na escola, em vista das avaliações em larga escala que ocorrem periodicamente, levam os professores a agirem em resposta a elas produzindo no cotidiano escolar microrregulações. Mas até chegar a esse ponto, os docentes e as escolas passaram por diversas mudanças que acolhiam tipos, funções e dimensões diferentes de avaliação.

De forma geral, coexistem no cotidiano escolar dois tipos de avaliação: a somativa e a formativa, com a sobreposição de uma sobre a outra dependendo do período. Antes de fazermos a distinção entre elas, ressaltamos a diferença entre medir e avaliar. Se a avaliação é realizada apenas para atribuir uma nota ou um conceito, trata-se de medir ou verificar. Mas se busca informações sobre o que sabem os estudantes para traçar planos e ações futuras, teremos então a definição do que é avaliação em educação e sua distinção em relação ao que é medir.

A avaliação é uma atividade orientada para o futuro. Avalia-se para tentar manter ou melhorar nossa atuação futura. Essa é a base da distinção entre medir e avaliar. Medir refere-se ao presente e ao passado e visa obter informações a respeito do progresso efetuado pelos estudantes. Avaliar refere-se à reflexão sobre informações obtidas com vistas a planejar o futuro.

Portanto, medir não é avaliar, ainda que o medir faça parte do processo de avaliação (FERNANDES; FREITAS, 2008, p. 19, grifo dos autores).

Luckesi (2011) distingue avaliação de verificação salientando que a escola brasileira está mais orientada à verificação que à avaliação. Para o autor, a verificação é a observação, obtenção, análise e síntese dos dados configurando-se o objeto investigado. Já a avaliação vai além, atribui um valor que implica um posicionamento para uma tomada de decisão e uma ação, seja ela favorável ou não, ao objeto da avaliação. Essa distinção leva a outra questão importante. Uma vez identificado que a escola está mais propensa a verificar que avaliar, e, entendendo a importância da avaliação, não se pode deixar de enfatizar que essa não se confunde com exame.

Luckesi (2011) alerta justamente para isso: examinar apenas classifica os estudantes em graus, notas, conceitos, aprovados ou reprovados. Com a única intenção de demonstrar quem aprendeu e quem não aprendeu, o foco é o passado. Já avaliar olha para o presente e o futuro, para o que os estudantes ainda não sabem e precisam de intervenção para aprender.

No processo pedagógico, a avaliação “deve ser usada tanto no sentido de acompanhamento do desenvolvimento do estudante, como no sentido de uma apreciação final sobre o que este estudante pode obter em um determinado período”

(FERNANDES; FREITAS, 2008, p. 20). A intenção é sempre planejar as ações futuras.

“Uma não é nem pior, nem melhor que a outra, elas apenas têm objetivos diferenciados” (FERNANDES; FREITAS, 2008, p. 20). E os objetivos fazem a diferença pois influenciam a forma como os professores regularão os processos de ensino e de aprendizagem.

Na literatura referente à avaliação dos alunos, a tradição francófona e a tradição anglo-saxônica são as predominantes, segundo Domingos Fernandes (2008). Na tradição francófona, “a avaliação formativa é uma fonte de regulação dos processos de aprendizagem e dos processos de ensino” (FERNANDES, 2008, p.

351). Ela se reporta a um conceito-chave, relacionado a processos internos dos alunos. Na perspectiva francófona, cuja base teórica é entender como os alunos aprendem para que sejam ajudados a regular de forma autônoma a aprendizagem, o professor exerce uma regulação mais interativa “transferindo para os alunos a tarefa de se responsabilizarem pelas suas próprias aprendizagens através do desenvolvimento da autoavaliação e do conhecimento das finalidades que têm que atingir” (FERNANDES, 2008, p. 352).

Já na tradição anglo-saxônica, o conceito-chave é feedback e se relaciona a interações sociais e culturais que ocorrem no processo de ensino e aprendizagem (FERNANDES, 2008), que, de toda forma, se trata de uma regulação, mas que é interna à escola, exercida pelo professor sobre o processo de ensino e de aprendizagem dos estudantes. Fernandes (2008) aponta que na perspectiva anglo-saxônica a avaliação formativa é abordada como o apoio que os professores podem dar aos estudantes na aprendizagem do currículo, de forma muito orientada e controlada pelos docentes, sendo o feedback de extrema importância, pois é por meio dele que se comunica aos estudantes o seu estado em relação à aprendizagem e quais serão as estratégias para superar as dificuldades.

Nessa perspectiva há uma relação explícita entre avaliação formativa e um referencial curricular bem determinado; nessa relação os professores assumem o controlo de uma diversidade de incumbências tais como a identificação de domínios do currículo, a selecção de uma variedade de tarefas e de estratégias de avaliação e a planificação do ensino em geral (FERNANDES, 2008, p. 353).

Na avaliação somativa, o poder de regulação que o professor exercia era o de promover os estudantes a ter acesso a mais e novos conteúdos progredindo na escolarização. Na avaliação formativa essa regulação é abrandada. Mas tanto uma quanto a outra podem terminar por se tornarem excludentes dependendo da função

que o professor lhe conferir, o que ratifica o seu poder de regulação. Dessa forma, a avaliação sempre significou regulação. A adoção de avaliação com diferentes funções representa diferentes formas de regulação na sala de aula.

Se as avaliações podem ser utilizadas com diferentes funções, é porque são expressões de diferentes concepções de educação que fundamentam a escolha por uma ou outra função. Tradicionalmente, a escola brasileira foi muito marcada por concepções tecnicistas em que a avaliação tinha a função classificatória e seletiva, tornando-se, conforme Fernandes e Freitas (2008), um fator de exclusão escolar.

O exame, apontado por Luckesi (2011) tem a função de verificar o que foi aprendido e classificar os estudantes, é uma avaliação estática e freia o processo de crescimento. Mas a avaliação que investiga a qualidade do desempenho do estudante com a intenção de proceder a uma intervenção para lhe proporcione aprendizagem, tem a função diagnóstica que não permite que algo não aprendido continue sem ser aprendido. E isso traz uma grande mudança para o processo pedagógico, pois quem examina, classifica e investe somente no produto. Já quem avalia, diagnostica, intervém e investe no processo para um melhor resultado.

O que é mesmo investir no processo e não no produto? O processo compõe-se do conjunto de procedimentos que adotamos para chegar ao resultado mais satisfatório; o que nos motiva, no caso, é a obtenção do melhor resultado. Produto, por sua vez, significa o resultado final ao qual chegamos e, na escola, infelizmente, admitimos que ele é o suficiente do “jeito que ele se manifesta” (LUCKESI, 2011, p. 63, grifos do autor).

Segundo Fernandes e Freitas (2008), associa-se, usualmente, a avaliação somativa à classificação e à seleção dos estudantes, portanto esta seria mais excludente. E a formativa estaria mais ligada à transformação e emancipação dos sujeitos. Mas, tanto a avaliação formativa quanto a somativa podem ser excludentes, segundo os autores, dependendo das concepções que nortearão o processo educativo.

A organização desse processo é afetada pela diversidade de concepções, interesses e valores dos professores (SORDI; LÜDKE, 2009), que, na maioria das vezes, vivenciaram, como estudantes que foram, uma lógica de avaliação mais centrada na classificação e seleção e que incorporaram a cultura avaliativa estabelecida nos ambientes escolares, fazendo com que até os estudantes se acostumassem a juízos de valor externos que os classificam.

Essa forma de entender a avaliação, de se acostumar com sua feição classificatória e de vê-la como um ato de comunicação com ares de neutralidade, no qual alguém assume a prerrogativa de dizer o quanto vale o trabalho do outro, sem que a este outro seja dada a oportunidade de se manifestar sobre o processo vivido e suas eventuais idiossincrasias, acaba por esvair desta prática o seu sentido formativo. Isso interfere no imaginário social que associa à avaliação práticas repetidas de exames externos que geram medidas, que viram notas que se transformam em signos que se distribuem em mapas que permitem comparar, selecionar e, eventualmente, excluir pessoas/instituições (SORDI; LÜDKE, 2009, p. 315).

Assim se vê como a avaliação somativa se impõe sobre a avaliação formativa e como ela pode se tornar a lógica mais adotada no ambiente escolar, incluindo as avaliações em larga escala, que avaliam apenas em matemática e leitura, divulgam seus resultados e ranqueiam as escolas. Conforme Sordi e Lüdke (2009), a avaliação da aprendizagem constituinte do trabalho pedagógico tem alto poder indutor nas formas de agir dos atores escolares e a adoção de uma avaliação somativa em detrimento de uma avaliação formativa faz com que a avaliação perca seu potencial educativo. Isso decorre de que as memórias de vivência consolidaram “uma função avaliativa que mais afasta do que aproxima, que mais pune do que ensina, que mais ameaça do que acolhe, que mais conclui do que contextualiza, que mais rotula do que explica” (SORDI; LÜDKE, 2009, p. 316).

Os docentes herdaram essa habilidade de examinar, e não avaliar, do sistema de ensino estabelecido ao longo de anos, da prática e da experiência pessoal como educandos que foram na trajetória de estudantes submetidos a exames, reproduzindo com seus estudantes o que ocorreu com eles, afirma Luckesi (2011). Mas o autor também aponta: não se trata de um desvio ético ou de conduta, é o senso comum adquirido ao longo da vida que governa essa ação.

A necessidade de regulação sobre a aprendizagem, associada a concepções e práticas incorporadas ao cotidiano escolar e de sala de aula levam professores pelos meandros das dimensões: pedagógica, ética, política e social da avaliação. Tanto as situações de prova quanto as atividades que vão se desenvolvendo em sala de aula geram juízos de valor por parte dos professores que estabelecem critérios técnicos para avaliar, ressaltando-se a dimensão pedagógica da avaliação.

Mas, para Fernandes e Freitas (2008), as relações entre professores e estudantes fazem emergir juízos de valor expressos em observações e comentários sobre desempenho, comportamento, valores e atitudes do professor e dos estudantes.

Quando o professor deixa que suas impressões guiem suas ações avaliativas para subordinar o estudante em uma relação de superioridade, em que a avaliação é uma

forma de punição, ele acaba por prescindir da dimensão pedagógica e sua legitimidade técnica para avaliar, deixando de lado princípios e critérios estabelecidos pelo coletivo escolar na dimensão ética.

A escola, portanto, não é apenas um local onde se aprende um determinado conteúdo escolar, mas um espaço onde se aprende a construir relações com as “coisas” (mundo natural) e com as “pessoas” (mundo social). Essas relações devem propiciar a inclusão de todos e o desenvolvimento da autonomia e autodireção dos estudantes, com vistas a que participem como construtores de uma nova vida social (FERNANDES; FREITAS, 2008, p. 23, grifos dos autores).

A avaliação tem sua dimensão social também, que, se empregada de forma a classificar e selecionar, excluirá os estudantes e perpetuará sua condição social e a desigualdade já existente. Mas, se for utilizada para promover a aprendizagem de todos, contribuirá para a inclusão e transformação da sociedade e da condição dos estudantes e sua comunidade.

Mas, de fato, todas as dimensões estão ligadas à dimensão política no uso da avaliação. Fernandes e Freitas (2008), em especial atenção à legitimidade política que a avaliação deve ter na escola, reafirmam a legitimidade técnica da dimensão pedagógica associada à legitimidade política que vem de princípios e critérios avaliativos “refletidos coletivamente, referenciados no Projeto Político-Pedagógico, na proposta curricular e em suas convicções acerca do papel social que desempenha a educação escolar” (FERNANDES; FREITAS, 2007, p. 17).

No âmbito político, Fernandes (2008) aponta estudos que indicam que as avaliações somativas estão sendo denominadas de avaliações da aprendizagem, porque se dão ao final de um ciclo, percurso ou etapa, e as avaliações formativas estão sendo denominadas de avaliações para a aprendizagem, porque tem por objetivo reorientar o processo para o estudante ter o melhor resultado para ele.

Segundo relatório da Unesco (2019), há uma diferença entre avaliação da aprendizagem e avaliação para a aprendizagem. Avaliações para a aprendizagem são formativas e podem ser internas ou externas à escola. As avaliações da aprendizagem são somativas, também podem ser internas ou externas à escola. As avaliações externas, denominadas também de larga escala, são um conjunto de políticas, práticas e ferramentas para gerar dados sobre resultados de aprendizagem. Elas tiram um retrato de um determinado grupo de estudantes em determinado ano acadêmico e em determinada disciplina.

As avaliações em larga escala, ainda segundo o Relatório Unesco (2019), são provas padronizadas com consequências para professores e escolas e pouco impacto para quem as realiza, os estudantes. Mas, se elas levam a redução do currículo à matriz avaliativa, os impactos para os estudantes são sérios. Elas também afetam políticas educacionais, reformas curriculares, alocação de recursos, escolas e salas de aulas. E essa é uma cultura global, pois organismos econômicos internacionais exigem que os países adotem avaliação educacional como contrapartida quando são procurados. Pelas suas características, impactos e objetivos, as avaliações em larga escala são macrorregulações sobre a educação, a escola e os professores.

As áreas que são mais facilmente mensuráveis pelas avaliações em larga escala para que possam descontextualizar e comparar os resultados entre sistemas de ensino e até países são leitura e matemática, como na Prova Brasil, por exemplo, e leitura, matemática e ciências, como no PISA. Apesar de serem áreas que possibilitam ao indivíduo continuar aprendendo, elas deixam de fora outras áreas e outras formas de avaliação também, porque o objetivo dos analistas é procurar identificar tendências gerais nos resultados para que os formuladores de políticas fundamentem suas propostas, monitorem, fiscalizem e responsabilizem atores, escolas e sistemas, e isso não seria possível acrescentando-se outras dimensões do conhecimento ao escopo da avaliação em larga escala. Daí o risco, e temos visto isso se concretizar, de se valorizar o que se mede e de se reduzir a aprendizagem àquilo que é medido. Além disso, avaliar somente leitura e matemática como forma de comparar resultados entre sistemas e países permite que a regulação transnacional continue a influenciar países no sistema de interdependência entre nações, divulgando avaliações como soluções educacionais de países centrais a países periféricos e condicionando os financiamentos à adoção dessas propostas.

Na escola, há instrução e formação. Se a avaliação em larga escala avalia a instrução, não avalia a finalidade da educação, que é a formação integral dos sujeitos.

E conforme Freitas et al. (2014) ressaltam, é preciso pensar se vamos ratificar esses valores vigentes na sociedade atual ou queremos um novo conjunto de valores. É por isso que avaliação não se trata apenas de uma questão técnica (FREITAS et al., 2014). Como explicitam os autores, a educação é um fenômeno regulado pelo Estado, a escola é uma instituição do Estado e, portanto, regulada, por ele. A avaliação como macrorregulação tornou-se uma cultura nas últimas décadas, com a apropriação das ferramentas avaliativas pelas políticas neoliberais. O que tem consequências sociais

contundentes, como a exclusão dos estudantes e a perpetuação das desigualdades.

A própria escola corrobora com a exclusão, pois investe seus esforços para preparar os estudantes que respondem melhor e, no dia da prova, como relata Horta Neto (2013), deixam de fora os estudantes com mais dificuldades de aprendizagem para tentar obter scores mais altos nos testes padronizados das avaliações em larga escala, o que tira a chance de o aluno aprender e estreita o currículo.

Das avaliações internas à escola, somativa ou formativa, às avaliações externas e em larga escala, as funções se modificaram, assim como as concepções teórico-metodológicas foram se modificando, se perpetuando e se consolidando, ou sendo rejeitadas e descartadas ao longo de décadas. As avaliações, que deveriam ser para a aprendizagem dos estudantes e deveriam se retroalimentar dos dados a favor da formação integral, parecem ter se fixado apenas na verificação do desempenho, sendo apropriado dizer que temos mais avaliações da aprendizagem que avaliações para a aprendizagem.

Nesse amplo e complexo processo educativo, as avaliações podem ser elaboradas e aplicadas tanto internamente como externamente e em diferentes níveis, por isso não podem ser compreendidas como algo à parte na escola nem isoladas do contexto em que a escola está inserida (FREITAS et al., 2014).