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1. CONSTITUINDO UM CAMPO DE ESTUDOS

1.4. Avaliando os avanços e projetando o futuro

No INES, os anos 2000 começam com o desmonte de todo o trabalho que vinha sendo construído a partir de 1996. O fim do projeto de português como segunda língua e a contratação de uma consultora alinhada com a perspectiva oralista (CUNHA COUTINHO, 2003) nos dizia que os pressupostos da educação bilíngue não haviam sido compreendidos e que, talvez, havíamos sonhado alto demais para aquele momento.

A nível nacional, parecia haver uma estagnação. Thoma e Klein (2010) apontam sentimentos de nostalgia e decepção entre lideranças surdas do Rio Grande do Sul, um

dos principais polos das lutas travadas na década de 90, pelos rumos dos movimentos surdos, compreendendo-os como fruto do momento histórico e das diferenças no interior das comunidades surdas que, por serem heterogêneas, produziam aspirações diferenciadas pulverizando, fragmentando e ressignificando as lutas, ainda que houvesse aspirações comuns como a luta pelo reconhecimento da Libras no Brasil.

A partir de uma pesquisa, realizada entre as lideranças surdas deste estado, para avaliar os impactos, nas políticas públicas para a educação de surdos, do documento A

educação que nós surdos queremos, bem como para identificar os novos desafios à

educação de surdos diante de uma política de educação bilíngue, Thoma e Klein (2010) apontam algumas mudanças na educação de surdos, entre elas, a formação de professores surdos e sua inserção nos espaços escolares.

De fato, o decreto 5.626/2005, que regulamenta a lei de 10.436/2002, ou Lei de Libras, dispõe, em seus artigos 4º e 5º, sobre a formação de docentes de Libras para atuarem na educação básica e superior. Em atendimento a este decreto, merece destaque a realização, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), do curso de graduação em Letras/Libras, na forma presencial para os alunos locais e, à distância, com polos espalhados por grande parte do território nacional, entre os quais o INES e a UNICAMP.

O currículo do curso é composto por disciplinas específicas que objetivam, não só o conhecimento sobre a Libras e a Literatura surda, bem como abordar questões que envolvem a escrita de sinais, a história da educação de surdos, o uso das novas tecnologias e o ensino da Libras como primeira e segunda língua, entre outras. A primeira turma, iniciada em 2006, com 9 polos, formou 374 professores de Libras e a segunda, iniciada em 2008, formou 378 professores de Libras e 316 bacharéis em tradução e interpretação Libras/Língua Portuguesa e foi realizado em 15 polos. Além desse curso de graduação, a UFSC oferece também um programa de pós-graduação tendo em seus quadros vários professores doutores surdos sendo as aulas, em sua maioria, ministradas em Libras CUNHA COUTINHO, 2014).

contava com as habilitações em Magistério para Educação Infantil e em Magistério para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental e iniciou sua primeira turma em maio de 2006, ano em que foi transformado em Pedagogia Bilíngue, passando a oferecer as habilitações de Magistério para Educação Infantil; Magistério para Anos Iniciais do Ensino Fundamental (inclusive Educação de Jovens e Adultos – EJA); Magistério das Disciplinas Pedagógicas do Ensino Médio e Funções extra-classe, conforme art. 64 da LDB: administração, orientação e supervisão escolar e conta, atualmente, com 63 alunos surdos e 149 ouvintes.

O diferencial desse curso são as disciplinas na área da linguagem que não costumam compor o currículo de outras faculdades de Pedagogia, tais como, Tópicos Avançados de Âmbito Bilíngue, Leituras e Escritas, Práticas Discursivas e Especificidades Linguísticas, além de sete períodos de Língua Portuguesa escrita. Anualmente o curso recebe 60 alunos através de vestibular, com uma turma pela manhã e outra à noite, dispondo de uma dupla de intérpretes para cada turma. Estes profissionais, nomeados por meio de concurso público, atuam também em todas as atividades que envolvam os alunos surdos, tais como, orientações de monografia, cursos de extensão, grupos de pesquisa e reuniões (CUNHA COUTINHO, 2014).

O trabalho dos intérpretes envolveu, também, a tradução, para a Libras, de todos os documentos da estrutura organizacional da Faculdade como Manual do Aluno e Regimento do Colegiado e de textos acadêmicos, projeto já iniciado, embora ainda se encontre em fase experimental (idem). Vale destacar que está prevista, em seu projeto, uma flexibilidade na correção de provas e/ou trabalhos redigidos pelos alunos surdos, usuários da Língua Portuguesa como segunda língua, “quando serão considerados o aspecto semântico e a singularidade linguística manifesta no nível formal de sua escrita” bem como estão previstos “mecanismos a serem utilizados para avaliação de conhecimentos expressos em LIBRAS” (p.11).

Com relação à inclusão e à presença de intérpretes da educação básica à universidade, outra reivindicação do documento de 1999, Thoma e Klein (2010) identificam alguns avanços, embora a acessibilidade não esteja, ainda, garantida a todos

os surdos. Apontam também a ampliação, no Rio Grande do Sul, da presença de surdos na universidade, fruto do número de escolas de surdos existentes no estado, segundo as pesquisadoras, maior que nos outros estados brasileiros48, o que evidencia a importância,

na educação básica, de uma política linguística que respeite a condição bilíngue dos alunos surdos (THOMA e KLEIN, 2010).

Outros pontos destacados por essas pesquisadoras são a imposição da língua e da cultura ouvinte materializadas na política de inclusão; a falta de uma política linguística que favoreça o acesso precoce à língua de sinais; o pequeno percentual de professores surdos nas escolas, o que evidencia a docência como um espaço ainda a ser conquistado pela comunidade surda; a falta de intérpretes nas escolas inclusivas e a falta de fluência dos professores ouvintes em Libras, o que constitui um desafio, na medida em que a perspectiva bilíngue está se constituindo como o discurso hegemônica nas políticas de educação de surdos no Brasil.

Tais críticas evidenciam a fragilidade com relação à implantação das ações previstas na legislação que regulamenta a política de educação de surdos no Brasil, bem como as incompatibilidades presentes nesses textos legais. Um dos exemplos mais sintomáticos é que, apesar do reconhecimento do direito dos surdos a terem a Libras como língua de instrução, a política inclusiva não favorece o seu acesso precoce a essa língua.

Thoma e Klein (2010, p.127-128) apontam, também, para a necessidade da construção de políticas e práticas pedagógicas que possam atender às necessidades e aos anseios da comunidade surda, “pautadas por outros olhares sobre os surdos, constituindo outros modos de fazer essa educação, de ser professor de surdos e de ser surdo nas suas múltiplas possibilidades identitárias”.

A criação, no ano de 2012, da primeira escola bilíngue de surdos de Palhoça, em Santa Catarina, com certeza, advém da luta permanente desta coletividade que clama por ver seus direitos, conquistados na legislação brasileira, concretizados em espaços educacionais reais. A aprovação da Lei nº 5.016, de 11 de janeiro de 2013, no âmbito do

Distrito Federal que estabelece as diretrizes e parâmetros para a implementação e o desenvolvimento de políticas públicas voltadas a uma educação bilíngue para os surdos, ao respeitar a pauta de reivindicações da comunidade surda, também foi muito comemorada, com a expectativa de que esta sirva de exemplo para que os demais Estados estabeleçam suas diretrizes em relação a este tipo específico de educação.

No INES, nos últimos dez anos, houve uma grande renovação do corpo docente, resultado de quatro concursos públicos para professores da educação básica desde a educação infantil até o ensino médio, mas a grande novidade foi a nomeação de vinte e cinco professores/as surdos/as e de quarenta e quatro intérpretes aprovados/as nos concursos públicos realizados nos anos de 2012 e 2014.

A notícia da nomeação dos/as primeiros/as professores/as surdos/as veio a público no dia sete de maio de 2013 e, nos dias que se seguiram, as redes sociais mostraram fotos postadas por esses/as professores/as registrando o momento exato da sua posse. O número de comentários e compartilhamentos feitos por pessoas surdas e ouvintes dava a noção da importância desse acontecimento. Sem dúvida alguma, foi um marco na história do INES e da educação de surdos, pois estes ganham o direito de, legitimamente, como docentes, participarem das decisões quanto aos rumos da educação de surdos a partir de suas vivências, concepções e, principalmente, sua língua.

Essa vitória é fruto dos sonhos e das lutas de muitos profissionais e/ou ativistas, ouvintes e surdos, funcionários do INES e de outras instituições, que vem intensificando as lutas pela educação bilíngue para surdos bem como das políticas de formação de professores surdos, em especial do curso de graduação em Letras/Libras.

Objetivando ampliar a oferta de formação de professores que possam atuar na educação de surdos a partir de uma proposta de educação bilíngue, o INES se prepara para implementar, no segundo semestre de 2015, o Curso de Pedagogia Bilíngue EAD, na modalidade semipresencial, nos moldes do já citado curso de Letras/Libras promovido pela UFSC, com 10 polos distribuídos pelas cinco regiões do Brasil, escolhidos em função

da demanda de surdos indicada pelo censo do IBGE. Esse curso constitui uma das metas do plano Viver sem Limite49 do Governo Federal e será financiado por ele.

Apesar das contradições, esses são exemplos de políticas públicas que possibilitam a emancipação de sujeitos que até há bem pouco tempo estavam alijados do Ensino Superior, porém ainda representa pouco diante de uma grande demanda de surdos que ainda não teve seu acesso garantido aos bancos da universidade – alguns nem à educação básica – em parte porque esta ainda se mantém muito pouco permeável às recentes conquistas do movimento surdo, como as leis que garantem a acessibilidade por meio de intérpretes de Libras. Leis promulgadas mas não cumpridas, como tantas no Brasil.

Tais iniciativas, aliadas à política de inclusão do Ministério da Educação, apontam para uma quebra da hegemonia do INES nas discussões sobre a educação de surdos no Brasil, mas, sendo uma escola bilíngue para surdos, continua um espaço privilegiado para a pesquisa e a construção de conhecimento, não somente acerca das estratégias que melhor contribuam para uma educação de qualidade para esses estudantes, como também sobre a Libras, as identidades e culturas surdas, espaço agora enriquecido pela chegada dos profissionais surdos.

A esse aspecto, soma-se também um valor histórico e de referência que o INES ainda detém, como berço da Língua Brasileira de Sinais e das culturas surdas. Prova disso foi a manifestação de repúdio organizada por militantes, que reuniu em torno de quatro mil pessoas em Brasília, em maio de 2011, em função da ameaça de fechamento do seu Colégio de Aplicação ocorrida em março do mesmo ano, quando da visita, ao INES, de uma representante da SECADI (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade) secretaria do Ministério da Educação encarregada da implementação das políticas públicas para a educação das pessoas surdas.

Essa ameaça acordou o movimento surdo e gerou uma série de manifestações por todo o Brasil. Além da reivindicação pelo não fechamento da escola, foram propostas emendas ao PNE para o decênio 2011 – 2020, que objetivavam garantir a ampliação do

número de escolas bilíngues e uma maior participação dos movimentos sociais de surdos nas decisões sobre implementação de legislação e políticas públicas para os surdos (FENEIS50, 2011), garantida pelo artigo quarto, parágrafo terceiro da Convenção dos

Direitos das Pessoas com Deficiência, conforme exposto na seção 1.1 deste capítulo. Desde então, a FENEIS, juntamente com seus apoiadores ouvintes, tem mantido um diálogo com o governo federal no sentido de terem suas reivindicações atendidas, fazendo valer seus direitos enquanto entidade representativa dos surdos no Brasil.

O entusiasmo, o otimismo e os sonhos que caracterizaram o final da década de 1990, no INES, continuam como um futuro possível. O INES, uma instituição que, na contramão das políticas públicas orientadas para a inclusão, consegue se manter como uma escola bilíngue para surdos, busca a sua identidade como tal, mas a pergunta feita por Skliar (1998) há dezesseis anos atrás – O que muda na educação de surdos quando se diz

que alguma coisa muda? – continua carecendo de uma resposta mais substancial. Para

além de compreender o direito dos surdos de serem educados a partir de uma política de Educação Bilíngue, é necessário construir uma prática pedagógica coerente com essa opção. Esse é o nosso principal desafio e, pelo menos, é o objetivo deste trabalho.

50 Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos