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1. CONSTITUINDO UM CAMPO DE ESTUDOS

1.3. O INES na história da educação de surdos

1.3.3. Educação Bilíngue

Nos dias de hoje, parece ser reconhecido universalmente, ou falta pouco para isso, que, na aplicação desse princípio tão fecundo, a linguagem dos gestos e uma língua falada qualquer, não podem se prejudicar em nada, ainda que em aparência uma e outra não devam concordar, pelo menos na construção (BERTHIER, 1873, p.57).

Entendendo que os objetos do mundo social são construídos discursivamente, em meio a relações de poder, a Educação Bilíngue, na educação de surdos, traz em seu bojo uma ruptura com os discursos e práticas hegemônicas cujas crenças e representações se constituíam a partir da noção de deficiência, numa abordagem clínica e reabilitadora da surdez.

Esse paradigma acolhe as reivindicações dos movimentos sociais de surdos que, a exemplo de outras minorias, passam a reivindicar o direito de se narrarem e de reclamarem uma identidade outra que não a de deficiente. Novamente o conceito de representação é evocado aqui para compreendermos o processo de construção da identidade e da diferença como um território contestado em que significados não fixos e não estáveis podem ser problematizados, disputados e reconstruídos (FAVORITO, 2006).

Nesse sentido, a Educação Bilíngue propõe a construção de outros significados sobre os surdos e a surdez, que não os encapsule nas narrativas sobre a deficiência mas que, informados por um olhar socioantropológico, possa compreendê-los a partir da diferença, uma diferença linguística, cultural e politicamente reconhecida, ao contrário

daquela em que o diferente é representado como exótico e diverso, a partir de um olhar etnocêntrico (MAHER, 2007b). Nesse modelo, a surdez é entendida como um espaço social e histórico de produção de diferenças, via discurso, e os surdos como sujeitos históricos, pertencentes a uma minoria linguística e cultural.

A existência de culturas surdas, tema bastante polêmico até para profissionais que se alinham a esta abordagem de ensino, é assumida, neste trabalho. No entanto, os surdos estão inseridos, frequentemente, em ambientes bilíngues e multiculturais. Não deixam de compartilhar da cultura local, mas com algumas peculiaridades que se traduzem, principalmente, pela comunicação por meio de uma língua visual46 e pela forma como

interagem e percebem o mundo através de artefatos culturais próprios.

Partindo do modelo socioantropológico e buscando uma postura pós cultural, considerando o hibridismo e a heterogeneidade do mundo em que estamos, todos nós, imersos, Coelho (2010, p.21) utiliza a expressão ‘marcadores culturais’ para designar os “traços culturais relevantes, que emergem enquanto elementos significativos, estruturantes e organizadores das narrativas dos indivíduos, e que contribuem para os processos de construção identitária destes, no seio de uma dada comunidade”. Esta, talvez seja uma forma menos essencializada de pensar as questões referentes à cultura que, por uma necessidade de afirmação, comum aos grupos minoritários, acabam sendo compartimentalizadas e classificadas como se fosse possível vivermos imersos em uma cultura essencialmente pura.

No âmbito da educação, essa abordagem propõe que a língua de instrução seja a Libras, língua de acesso natural ao surdo, pois não necessita de um ensino sistemático e, por isso, é considerada a primeira língua das pessoas surdas, e que a Língua Portuguesa assuma uma perspectiva de segunda língua. A presença dessas duas línguas em contextos de educação de surdos, no entanto, não caracteriza, por si só, uma proposta de educação bilíngue. Nas escolas inclusivas, onde existem surdos sinalizadores e intérpretes, podemos

identificar a presença das duas línguas sem que, contudo, esteja garantida a oferta de um projeto de educação bilíngue para surdos.

Assim como a Comunicação Total, a emergência da Educação Bilíngue para surdos teve sua origem nos estudos realizados, a partir de 1960, por William Stokoe sobre a Língua Americana de Sinais (ASL). Tais pesquisas, ao revelarem o status linguístico das línguas de sinais, favoreceram o conhecimento e o futuro reconhecimento das línguas de sinais em diversos países e embasaram teoricamente a luta a favor do reconhecimento dos surdos como pertencentes a uma minoria linguística.

No Brasil, as discussões sobre a Educação Bilíngue têm início a partir do I Congresso Latino Americano de Educação Bilíngüe para Surdos, realizado em 1995, no Rio de Janeiro, onde foram apresentadas pesquisas realizadas por Ferreira-Brito (1990, 1993, 1995), Felipe (1988), Fernandes (1989), Moura, Pereira e Lodi (1993), Góes (1996), Souza (1998), ano em que, no INES, foi criado o Comitê Pro-Oficialização da Libras (PEDREIRA, 2006).

Também merece destaque a criação, em 1996, do Núcleo de Pesquisas em Políticas Educacionais para Surdos – NUPPES – no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a coordenação de Carlos Skliar, que tinha como principal proposta, desvincular a educação de surdos da educação especial e do discurso hegemônico da deficiência. Uma das atividades programadas por esse núcleo era o Fórum de Discussão Sobre Educação de Surdos que acontecia mensalmente no auditório da UFRGS com a participação de professores de surdos, pesquisadores, alunos surdos e ouvintes, intérpretes e familiares de surdos (STUMPF, 2005). O objetivo desse grupo era a criação de um novo espaço acadêmico denominado Estudos Surdos, já citado anteriormente.

No INES, seguindo uma tendência mundial de (re)pensar a educação de surdos a partir dessa nova perspectiva, foram realizados intensos debates que envolveram toda a instituição por meio de representantes dos diferentes setores da escola que se reuniam semanalmente nas reuniões da COAPP, tendo sido gestados em decorrência do trabalho

Departamento de Desenvolvimento Humano, Científico e Tecnológico (DDHCT), cujas diretoras partilhavam dos mesmos ideais com relação à educação de surdos. Ainda era forte a influência da abordagem oralista e a proposta de uma educação na perspectiva bilíngue gerava conflitos explícitos entre os profissionais da instituição que defendiam as diferentes abordagens (CUNHA COUTINHO, 2003).

A implementação da abordagem bilíngue no INES tomou forma por meio de dois projetos entre os anos de 1996 e 2000. O primeiro, na Educação Infantil, através de um convênio com a UERJ, sob orientação da professora Eulália Fernandes, contava com a participação de um profissional surdo, além da professora da turma, professora de educação física e uma fonoaudióloga. O segundo, implementado pela equipe de Língua Portuguesa, propunha o ensino dessa disciplina em níveis, em função da diferença de proficiência nessa língua entre alunos de uma mesma série/turma. O planejamento da disciplina foi organizado em quatro níveis e os alunos do EF2 e Ensino Médio foram avaliados segundo os parâmetros propostos para cada um. Assim, nas aulas de português, deixavam suas turmas de origem para se agrupar segundo esses níveis (NASCIMENTO e SOUZA, 1998; FAVORITO, 1999).

Esse trabalho contou com a consultoria da professora Alice Freire da UFRJ que, além de orientar as pesquisas que os professores realizavam nas suas salas de aula, ministrou o curso Introdução à pesquisa da aquisição de segunda língua, primeiramente para a equipe de língua Portuguesa e, posteriormente para outros professores interessados (NASCIMENTO e SOUZA, 1998)47, estendendo a sua atuação ao segmento de EF1. As oficinas pedagógicas realizadas com as professoras desse segmento, objetivavam uma reflexão sobre questões de leitura e escrita na tentativa de definirmos uma base teórica comum sobre a qual o trabalho seria desenvolvido, qual seja, a língua como discurso que toma forma entre sujeitos sócio historicamente situados e a aprendizagem numa perspectiva sociointeracional (FREIRE, 1998).

Em ambos os segmentos contávamos com a participação de monitores surdos que atuavam junto aos alunos e professores (1º segmento) e aos professores (2º segmento) com o objetivo de interagir em Libras e favorecer a aquisição dessa língua. Realizávamos também filmagens de algumas aulas para serem posteriormente discutidas bem como de várias atividades externas que incluíam visitas a museus, passeios em pontos turísticos do Rio, fábricas, entre outros, que depois eram tema de discussão junto aos monitores surdos em sala de aula (CUNHA COUTINHO, 2003).

Toda essa efervescência culminou, ao final de 1998, com a formação de uma chapa que concorreu e foi vencedora na consulta à comunidade escolar, apesar de não ter sido empossada pelo ministro da educação, conforme já exposto na introdução desta tese e a partir de 1999, nos oito anos que essa direção permaneceu no instituto e mais quatro de uma outra direção com o mesmo enfoque, assistimos ao desmonte de um trabalho que tinha todas as condições de escrever uma nova história no campo da educação de surdos no Brasil.

Essa importante década termina com a realização, em Porto Alegre, de 20 a 24 de abril de 1999, do V Congresso Latino-Americano de Educação Bilíngue para Surdos, organizado pelo NUPPES (Núcleo de Pesquisa em Políticas Educacionais para Surdos), Nesse evento, a comunidade surda organizou um pré-congresso articulando um encontro entre educadores e lideranças surdas nos dias que antecederam o congresso, com a finalidade de discutir temáticas relacionadas à comunidade surda.

O congresso contou com a presença de, aproximadamente, 300 surdos de diferentes regiões do Brasil, da América Latina, da América do Norte e da Europa, além de familiares, intérpretes e professores ouvintes que atuaram, além da interpretação, na relatoria dos debates ou, simplesmente, como observadores, pois era necessário garantir que o debate se realizasse com autonomia a partir da perspectiva dos surdos (THOMA e KLEIN, 2010).

O resultado desse encontro foi a elaboração de um documento intitulado A

comunidade, cultura e identidades surdas e à formação de profissionais surdos. Entre essas reivindicações destaco: reconhecer a Libras como língua de instrução; oportunizar a aquisição da Libras, da Língua Portuguesa e de outras línguas; não veicular, pela televisão, posturas que provoquem o preconceito contra a Libras e seus usuários; levar em conta o conhecimento da Libras na escolha de professores para surdos; realizar estudos a fim de levantar a real situação educacional dos surdos: escolaridade, número de surdos não atendidos, evadidos, analfabetos, e etc.; assegurar ao surdo o direito de receber os mesmos conteúdos que os ouvintes, mas através de comunicação visual, entre outras.

Os congressistas, um total de aproximadamente 1500, saíram em passeata pelas ruas de Porto Alegre até o Palácio do Governo Estadual, entregando o documento às autoridades locais (Governador, Secretária de Educação do Estado e representantes da Assembleia Legislativa), o que deu visibilidade ao movimento surdo (THOMA e KLEIN, 2010).

Apesar do pouco tempo decorrido desde então, e da impossibilidade de estabelecer o distanciamento necessário para avaliações mais contundentes, já é possível observar alguns desdobramentos das lutas intensificadas na década de 1990 que articularam os movimentos surdos e universidades “como fator potencializador para uma virada epistemológica no campo educacional, social, cultural e político dos surdos no Brasil” (THOMA e KLEIN, 2010, p.109) e de como estes afetaram o trabalho no INES. Este é o objetivo da próxima sessão.