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Avanço das fronteiras do capital e os conflitos por água no Brasil

Organograma 2 – Perspectiva (des)integradora do agrohidronegócio

3.2 Avanço das fronteiras do capital e os conflitos por água no Brasil

O Brasil é mundialmente reconhecido pela riqueza em água doce, devido à grandiosidade dos rios que cortam o território nacional concentrando 13,8% de toda a água doce do planeta e à presença do Aquífero Guarani que abrange uma área de 840.000 km, englobando porções dos estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. As reservas permanentes desse aquífero (água acumulada ao longo do tempo) é da ordem de 45.000 Km³.

Desigualmente distribuída pelas cinco regiões brasileiras, temos dois extremos, ou seja, de um lado a região Norte, onde se localiza a maior bacia hidrográfica do mundo e, de outro, a região Nordeste, onde se registra um elevado déficit hídrico em sua porção semiárida. A água no Brasil encontra-se assim distribuída:a região Norte tem aproximadamente 68,5%, o Centro-Oeste 15,7%; o Sudeste 6%; o Sul 6,5% e o Nordeste 3,3%, sendo o sertão pernambucano a região com a menor disponibilidade de água por pessoa/ano (1.270 m³). Para Malvezzi (2008, p.82-3), o

problema do Nordeste, após a construção de 70 mil açudes que armazenam 37 bilhões de metros cúbicos de água, está na sua distribuição. Essa água é suficiente para as demandas domésticas. Daí que ressalta o que essa abordagem propõe, e a paisagem, seja física ou cultural, exige uma filtragem mais ampla que, algumas vezes, foge até mesmo das questões geográficas mais clássicas, necessitando uma filtragem científica, cultural, filosófica, política, entre outras, mostrando um caráter multidisciplinar no seu estudo”.

a reivindicação das adutoras que cumpram esse papel distributivo. Segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), 530 obras seriam suficientes para atingir aproximadamente 1.300 municípios, oferecendo segurança hídrica a 34 milhões de nordestinos que vivem no meio urbano.

Em 2002 a CPT passou a registrar os conflitos pela água74 e, desde então, esses dados têm permitido analisar a intrínseca relação existente entre o modelo atual de desenvolvimento adotado para o Brasil e o fenômeno de apropriação/mercantilização da água. Atendendo aos preceitos neoliberais, a Política Nacional de Recursos Hídricos (lei nº 9.433/97) implementou um modelo mercantil de gestão hídrica favorável à privatização do uso da água, com destaque para a outorga como instrumento que viabiliza a exploração da água sob os ditames das leis de mercado. Sobre esse assunto, Malvezzi (2011, p. 86) afirma que a água

passou a ser vista com mercadoria, como um bem a ser privatizado e mercantilizado, ainda que seja pelo “jeitinho” brasileiro da outorga. O argumento da normatização do uso da água pela outorga – instrumento de controle do uso - é legítimo, mas ele é apenas o pretexto para o uso intensivo da água de forma legal e tantas vezes ilegal, além de predadora. Mesmo que funcionasse como instrumento de normatização, a outorga não garante a equidade social no uso da água, já que o capital tem o poder de reservar para si volumes que as populações não têm.

A atuação do Estado tem alargado as “fronteiras” do capital sobre diferentes frações do território brasileiro, inclusive por regiões ditas pouco desenvolvidas, o que tem gerado diversos conflitos pelo acesso e pelo controle da água. Atualmente, no Brasil, há uma relação direta entre os grandes empreendimentos executados pelo Estado e a questão da água, porque tais projetos desenvolvimentistas são fortemente dependentes de grandes volumes desse bem natural. Irrigação (fruticultura), mineração, monocultivos (soja, eucalipto), associados à geração de energia hidrelétrica (construção de barragens) e à mineração, têm protagonizado disputas pelo território entre o capital e as comunidades camponesas e povos tradicionais. Para Gonçalves (2013, p. 93) é

[...] clara a disputa entre grandes empresas de capital nacional e/ou estrangeiro pelos territórios – terra e água - de comunidades camponesas. Estes conflitos envolvem e prejudicam principalmente comunidades de pescadores, ribeirinhos, indígenas, quilombolas, pequenos agricultores, assentados pela reforma agrária, dentre outras.

74 A CPT entende os conflitos pela água como “ações de resistência, em geral coletivas, para garantir o

uso e a preservação das águas e de luta contra a construção de barragens e açudes, contra a apropriação particular dos recursos hídricos e contra a cobrança do uso da água no campo, quando envolvem ribeirinhos, atingidos por barragens, pescadores, etc.” (Conflitos no Campo no Brasil, 2006, p. 10).

No cerne desses conflitos, estão formas distintas de uso e de apropriação da água, pautadas por racionalidades antagônicas e mediadas por correlações de forças desiguais entre os sujeitos. De um lado, está o Estado exercendo a função de direcionar recursos públicos para a execução de projetos, visando ao crescimento econômico do Brasil, principalmente através do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES) e, no outro horizonte, estão os sujeitos que buscam, por meio do enfrentamento, manter o domínio sobre os territórios de vida e de trabalho. Segundo Pacheco (2013, p. 98), os

conflitos sociais existem porque a água está ameaçada como bem comum. O aprisionamento da água para uso privado, para a sua mercantilização direta ou na forma de minérios, energia, insumo na produção agrícola e industrial, é o que a torna escassa e motivo de disputa. A água pode ser tratada como um mero recurso natural, na visão de empresas e, muitas vezes, de governos, ou como um bem essencial à própria vida. A disputa se dá por interesses e formas radicalmente diferentes de se relacionar, e os conflitos se intensificam entre a visão diversa do capital viabilizado pelos governos e a visão cosmológica dos povos e comunidades tradicionais.

Ao longo dos últimos 11 anos, houve um aumento vertiginoso nos casos de conflitos pela água (Quadro 10) no Brasil, passando de 8 ocorrências (1.227 famílias envolvidas) em 2002 para 93 casos em 2013 (envolvendo 26.976 famílias), em todas as regiões do país, inclusive naquelas com maior infraestrutura e aparato estatal de fiscalização. O Estado, como grande empreendedor das obras hídricas, tem socializado os custos e privatizado os seus benefícios, pois os empreendimentos financiados com recursos públicos são entregues para o capital privado, como é o caso das hidrelétricas e dos projetos de irrigação. Em 2013 foram registrados 104 casos de conflitos pela água no Brasil, envolvendo 31.426 famílias. Quando a edição do Caderno de Conflitos no Campo 2013 já havia sido finalizada, chegou até o conhecimento da CPT a ocorrência de mais 11 conflitos, não sendo, porém, mais possível inseri-los, pois os dados já tinham sido analisados pelos autores.De acordo com Pacheco (2013, p. 98), entre as causas dos conflitos

temos: 44 casos provocados pela construção de barragens e hidrelétricas (42,31 %); 31 ocorrências deflagradas por mineradoras (29,8 %); 15 casos por destruição e poluição (14,4 %) e 11 correspondem, especificamente, à apropriação e impedimento de acesso (10,6%), embora todas as formas apresentadas acima também representem expropriação e impedimento de acesso.

Nesse cenário desenvolvimentista, os camponeses e os povos tradicionais passam a enfrentar um novo agente desterritorializante, ou seja, os grandes grupos

econômicos, tais como a Odebrech e a Camargo Correia, além dos velhos e novos coronéis donos das terras e da água.

Quadro 10 – Conflitos por água no Brasil – 2002/2013

Ano Casos Famílias Ano Casos Famílias

2002 8 1.227 2008 46 27.156 2003 20 9.601 2009 45 40.335 2004 60 21.449 2010 87 39.442 2005 71 32.463 2011 68 27.571 2006 45 13.072 2012 79 31.784 2007 87 32.747 2013 93 26.967 Org.: DOURADO, J. A. L. Fonte:Conflitos no campo, 2013.

As causas dos conflitos são diversas (Quadro 11) e, mesmo enfrentando vários movimentos de resistência, o Estado tem seguido adiante com a execução de obras extremamente polêmicas, como a hidrelétrica de Belo Monte (PA), a transposição do São Francisco e o Projeto Baixio de Irecê. Além dessas, há uma agenda de planejamento para a construção de hidrelétricas e perímetros irrigados em vários estados brasileiros nos próximos anos. O represamento dos rios é a principal causa de conflitos nas regiões Norte e Sudeste, com destaque para os empreendimentos barrageiros na Amazônia, a nova fronteira hidroenergética do Brasil. A mineração constitui outra atividade econômica geradora de conflitos, principalmente no Nordeste e Sudeste do país. O Centro-Oeste,entre todas as regiões brasileiras, possui o menor número de ocorrência de conflitos pela água.

Quadro 11 – Número e causas dos conflitos pela água no Brasil em 2013 por região geográfica

Região Casos Preservação Uso e Barragens e açudes Apropriação Particular

Nordeste 37 27 8 2 Norte 27 6 19 2 Sudeste 18 8 9 1 Centro-Oeste 3 1 2 0 Sul 8 3 5 0 Total 93 45 43 5 Org.: DOURADO, J. A. L. Fonte:Conflitos no Campo, 2013.

Analisando os casos de conflitos pela água na região Nordeste (Quadro 12), a Bahia registrou o maior número entre todos os estados, envolvendo movimentos de camponeses e de comunidades tradicionais no enfrentamento aos projetos de irrigação e

de mineração, principalmente. Em 2013, a atividade mineradora foi responsável por 15 conflitos, com destaque para os municípios de Pindaí (10 casos) e Caetité (5 ocorrências), envolvendo comunidades tradicionais e o Projeto Pedra de Ferro/Bamin75, ambos localizados na região semiárida do Sudoeste baiano. Já no estado do Ceará, duas obras do PAC (Barragem do Figueiredo e Eólica Icaraí) e uma obra do DNOCS (Projeto de Irrigação Tabuleiro de Russa, em Limoeiro do Norte) foram as principais responsáveis pelos 4 conflitos registrados. Em Pernambuco, o estado com o segundo maior índice de conflitos, 2 dos 5 casos foram deflagrados por obras do PAC (Complexo Suape e a transposição do São Francisco). Somados os conflitos nos estados nordestinos, obteve-se o total de 4.182 famílias envolvidas, em sua maioria camponeses e populações tradicionais que lutam contra os projetos hegemônicos do Estado executados em benefício da reprodução do capital, em terras até então pouco valorizadas economicamente.

Quadro 12 - Conflitos pela água na Região Nordeste – 2013

Estado Nº de Conflitos Nº de Famílias Alagoas 2 66 Bahia 21* 259 Ceará 4 465 Maranhão - - Paraíba 3 1300 Pernambuco 5 892 Piauí - -

Rio Grande do Norte 1 1200

Sergipe 1 **

Total 37 4.182

Org.: DOURADO, J. A. L. Fonte:Conflitos no Campo, 2013.

* Com os dados atualizados o número de conflitos na Bahia passa para 27 casos.

**Dados não informados.

Em 2013 foram registrados 21 conflitos pela água na Bahia. A sequência histórica dos conflitos pela água na Bahia registrada pela CPT (Quadro 13) acompanha a tendência ascendente do Brasil. Ao resgatar os últimos quatro anos (2010, 2011, 2012 e 2013) registrados pela CPT, constatou-se haver uma supremacia dos conflitos

75 O minério de ferro é exportado, em sua grande maioria, para a China e o Japão, com total isenção de

ICMS e com taxas extremamente reduzidas de royalties, repassados para municípios e estados mineradores.

deflagrados pela mineração (ferro, urânio e ouro, principalmente), trazendo à tona os desdobramentos do avanço dessa atividade sobre os territórios camponeses e quilombolas.

Quadro 13 – Conflitos pela água na Bahia – 2002/2013

Ano Número de conflitos Número de famílias envolvidas

2002 1 23 2003* - - 2004 4 395 2005 7 775 2006 3 750 2007 2 725 2008 7 1.964 2009 2 1.230 2010 15 5.230 2011 9 1.151 2012 8 720 2013 21 259 Org.: DOURADO, J. A. L. Fonte:Conflitos no Campo, 2013.

* Não foram registrados conflitos pela água nesse ano, na Bahia.

A análise das informaçõesdisponibilizadas pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), relacionadas à mineração na Bahia (Mapa 8), permite visualizar que as regiões da Chapada Diamantina e a região Norte são aquelas com maior quantidade de pedidos de autorização/requerimento de pesquisa e pedidos de concessão/requerimento de lavras. No Extremo Sul, é a territorialização dos monocultivos de eucalipto a causadora do aquecimento do mercado de terras e da expropriação de camponeses e indígenas, causadores, por sua vez, de disputas territoriais envolvendo o acesso à terra e à água, como é o caso registrado no município de Mucuri, devido à presença da empresa Suzano/Fibria Papel Celulose.

Os conflitos decorrentes da implantação dos perímetros irrigados Baixio de Irecê e Salitre comparecem, na edição de 2008, como um conflito por terra; todavia, esses movimentos configuram-se como conflitos pelo acesso à água. Nesse mesmo ano, muitos conflitos tiveram como propósito solidarizar com o ato de Dom Luiz Cappio contra a transposição do São Francisco.

O crescimento do número de conflitos pela água na Bahia está relacionado ao processo de valorização das commodities agrícolas e minerais no mercado internacional. Essas tensões trazem à tona a necessidade de repensar o modelo de desenvolvimento

adotado para o Brasil, porque não alteram as estruturas de poder político e econômico. Para Thomaz Junior (2012, p. 11), as

disputas por água nos territórios de expansão do agrohidronegócio – perímetros irrigados, áreas de mineração, expansão da soja e da silvicultura, na região do Semi-árido baiano – trazem à tona as contradições expressas pelo modelo de desenvolvimento adotado para essa região, bem como as reivindicações das comunidades tradicionais (quilombolas, ribeirinhas), camponeses e povoados que ainda hoje não têm acesso à água, ficando estes impossibilitados

Em pleno século XXI, a perspectiva quinhentista de explorar até a exaustão é a tônica das atividades praticadas pelos grandes grupos econômicos nacionais e estrangeiros, sem respeitar a existência de outras lógicas materializadas no território. A subordinação às leis de mercado leva o Estado a imprimir uma proposta desenvolvimentista em que camponeses e povos tradicionais são transformados em obstáculos diretos à concretização de tal perspectiva, porque esses sujeitos, sempre sobrepujados/não contemplados/alienados/afastados/distanciados das políticas públicas e do acesso aos benefícios oriundos dos investimentos estatais, foram, ao longo da história, ocupando os espaços que atualmente despertam o interesse do grande capital. Mesmo depois de enfrentar todos os revezes decorrentes do processo de reestruturação produtiva do capital, associados aos desastres da Revolução Verde, a opção adotada para promover o crescimento econômico brasileiro tem sido a incorporação de novas áreas à lógica destrutiva do capital e sua incessante corrida para acumular lucros. Tal cenário nos credencia a perspectivar o agravamento dos conflitos porque camponeses e povos tradicionais, cada vez mais, serão pressionados a ceder seus territórios para o capital, levando-os a protagonizar movimentos de resistência à consolidação do agrohidronegócio, que avança num avassalador processo de supressão dos obstáculos à sua territorialização, utilizando para tanto o poder político e midiático.

3.3 Polígono do Agrohidronegócio na Bahia e a usurpação dos territórios