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Novo Modelo de Irrigação: transferência disfarçada do papel do Estado para o capital privado

POLÍTICAS PÚBLICAS DE IRRIGAÇÃO E A GEOGRAFIA DO AGROHIDRONEGÓCIO NO SEMIÁRIDO BAIANO

2.2 Novo Modelo de Irrigação: transferência disfarçada do papel do Estado para o capital privado

O Programa Brasil em Ação implantado na década de 1990, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, é composto por 42 empreendimentos, dos quais 16 são projetos na área social e 26 na área de infraestrutura, abrangendo os seguintes setores: saúde, habitação, emprego, saneamento, água, turismo, agricultura, educação, comunicações, transportes e energia. Inserido no Programa Brasil em Ação, o projeto Novo Modelo de Irrigação, com financiamento de R$2.487 bilhões tinha como objetivo promover e consolidar o desenvolvimento sustentável de áreas irrigadas e irrigáveis. Com esse projeto, a irrigação passou a ser concebida como negócio, cuja base deve ser a iniciativa privada, responsável pela construção das obras de infraestrutura e toda a parte envolvendo a produção, processamento e comercialização, além de buscar estabelecer relações de parcerias entre o mercado consumidor, todos os componentes da cadeia produtiva e o governo. Havia, pois, um forte interesse em alterar a legislação de

irrigação vigente (Lei n.º. 6662/79), para modernizar a agricultura praticada nos perímetros públicos de irrigação, através do fomento à adoção do pacote tecnológico e da especialização da produção, atendendo às demandas do mercado externo. Destaca-se que essa medida é estratégica para o agronegócio porque busca uma solução para “eliminar” as práticas camponesas no interior dos perímetros de irrigação, visto que, em determinadas situações, parte dos lotes são direcionados para atender a população desalojada pela desapropriação das terras de interesse público.Essa incorporação dos camponeses aos perímetros irrigados traz obstáculos à expansão da agricultura comercial porque os camponeses acabam ocupando os lotes com a policultura, cuja produção é direcionada para o autoconsumo, sendo os excedentes comercializados localmente.

O Novo Modelo de Irrigação é uma evidência de que as terras semiáridas do Nordeste já estavam no cálculo do capital, aguardando o momento ideal para serem incorporadas à lógica do agronegócio, com a “mercantilização da terra, a produção para o mercado em lugar da produção para o autoconsumo” (IANNI, 2004, p. 180), em que a terra é transformada em objeto e meio para a reprodução do grande capital. Ao analisar os documentos oficiais, não constatamos nenhuma abordagem sobre a questão agrária, sobre o acesso à terra por parte dos camponeses historicamente condicionados aos ditames da elite agrária regional nordestina, revelando a perspectiva de “mudar alguma coisa para nada modificar” (IANNI, 2004, p. 183). Há, como direcionamento, a destinação de uma parcela mínima (20% dos lotes) para as populações desalojadas ou a sua incorporação como mão de obra nos projetos de irrigação, predominando os lotes empresariais61.

Entre as recomendações do Novo Modelo de Irrigação destacamos a gestão dos perímetros irrigados na perspectiva do Gerenciamento Global Ampliado (GGA), com protagonismo do setor privado, ficando ao Estado o papel de implementar a infraestrutura hídrica e tratar da estrutura fundiária, inclusive resolvendo questões relacionadas à desapropriação das terras. Tal proposta deixa evidente a supremacia do setor privado como gerenciador do setor relacionado à agricultura irrigada com incentivo ao agronegócio, tido como modelo ideal para os projetos de irrigação. Analisar esses novos espaços modernizados – os perímetros irrigados e seus impactos

61 Os projetos públicos de irrigação são geralmente divididos em lotes familiares (até 6 hectares), lotes

empresariais (30 hectares em média) e lotes para profissionais de Ciências Agrárias (máximo de 10% da área total de um Projeto, para efeito de demonstração e orientação técnica aos agricultores familiares).

sobre os espaços urbanos – é desafiador porque os investimentos feitos em infraestrutura vão conformando as mudanças sociais e territoriais, tendo como resultado o “acirramento da divisão social e territorial do trabalho no setor, transformando as tradicionais relações cidade-campo” (ELIAS, 2006, p. 115) bem como o surgimento de conflitos pela terra e pela água. Nessas áreas há o direcionamento das atividades com vistas a garantir a especialização e a integração das atividades para atender às demandas do agrohidronegócio, além de contar com uma remodelagem das práticas camponesas, devido à necessidade de o grande capital agregar terras, água e mão de obra barata para viabilizar a sua reprodução ampliada.

No contexto do Novo Modelo de Irrigação, embora a abertura e o favorecimento ao setor privado se constituam pano de fundo para a sua implantação, não fica claro como a iniciativa privada atuaria, quais seriam suas responsabilidades e sua relação com o Estado. Esses delineamentos se tornariam mais claros a partir dos anos 2000, com a possibilidade de estabelecer as chamadas “Parcerias Público-Privadas” (PPPs) mediante a concessão de direito real de uso (CDRU), por um período que pode variar entre 30 e 45 anos. Durante esse período, a gestão do perímetro irrigado ficaria sob a responsabilidade da empresa e/ou do consórcio vencedor da licitação, com autonomia para direcionar as atividades agrícolas a serem desenvolvidas, tendo como base a concepção de “empresa-mãe”, ou seja, uma empresa responsável por fazer a exploração e a gestão do perímetro irrigado. A área destinada aos lotes familiares também estaria, nesse modelo de gestão, subordinada à “empresa-mãe”. Como os projetos de irrigação são em sua totalidade criados pelo Estado, deverão ter ao menos uma parcela mínima de seus lotes destinada a assimilar parte da população impactada com a desocupação da terra.

Esse incentivo à irrigação no Semiárido não é neutra porque, segundo Germani (1993, p. 501), “la decisión de utilizarla, la tecnología adoptada y los resultados están fuertemente permeados de connotaciones políticas dependiendo de la realidade que se presenta, donde el papel del Estado ocupa um protagonismo importante.” Os programas e projetos implantados pelo governo federal não contemplam todos os perímetros irrigados existentes no Semiárido brasileiro, sendo escolhidos os mais promissores para receber os investimentos, na perspectiva de se tornarem projetos-modelo para os demais. Como exemplo de projetos inseridos na proposta do Novo Modelo de Irrigação para receber financiamento, temos o Projeto Jaíba (MG),o Projeto Salitre (BA) e o Projeto Acaraú (CE). Esses projetos são selecionados para receber investimentos

públicos para que sua estrutura técnica e organizacional seja modernizada, tornando-se atrativos para a iniciativa privada.

Desde a criação dos primeiros projetos de irrigação, na década de 1960, até o momento atual passaram-se 50 anos, havendo grandes alterações na base de reprodução do grande capital, no papel do Estado, na divisão territorial do trabalho e na relação capital-trabalho, ao passo que as políticas e os programas governamentais voltados para atender à realidade do Semiárido brasileiro têm mantido intacta uma questão histórica e sem solução ainda hoje, ou seja, a propriedade da terra. A questão agrária não se configura como um elemento a ser tratado pelas políticas públicas que abrangem a irrigação, pois, de acordo com a Política Nacional de Irrigação, a criação dos perímetros irrigados não tem por função fazer reforma agrária. Inicialmente, a preocupação era com o armazenamento de água que, embora necessário, nunca resolveu a problemática da seca no Nordeste semiárido, e a validade da “solução hídrica” já foi refutada. Para Germani (1993, p. 507), acumular água

por si solo, no era una solución para el problema que se presentaba. Primero porque el problema no era tanto de falta de agua sino principalmente de la distribución irregular del régimen de lluvias. Segundo porque la oligarquia sertaneja se aproprio de la construcción de los azudes, reforzando la estrutura de la tierra del semiárido nordestino que se caracterizaba por la articulacíon latifúndio- minifundio-capital mercantil.

Em muitos casos, a construção de açudes intensificou ainda mais o processo de subjugação dos camponeses em relação aos proprietários das terras, porque o acesso à água ficava restrito àqueles que se submetiam aos ditames dos “senhores da água”, como aponta Oliveira (2008, p. 178, grifos do autor):

O Dnocs dedicou-se, sobretudo, à construção de barragens para represamento de água, para utilização em períodos de seca, e a construí-las nas propriedades de grandes e médios fazendeiros: não eram barragens públicas, na maioria dos casos. Serviam, sobretudo, para sustentação do gado desses fazendeiros, e apenas marginalmente para a implantação de pequenas ‘culturas de subsistência’ de várzeas, assim chamadas ribeiras das barragens. O investimento do Dnocs reforçava, num caso como noutro, a estrutura arcaica: expandia a pecuária dos grandes e médios fazendeiros, e contribuía para reforçar a existência do ‘fundo de acumulação’ próprio dessa estrutura, representado pelas ‘culturas de subsistência’ dos moradores, meeiros, parceiros e pequenos sitiantes.

Embora criado para atuar em escala nacional, o DNOCS ficou limitado à região de mais antigo povoamento e de estrutura socioeconômica (acesso limitado à terra e à

água, associação entre latifúndio-minifúndio, currais eleitorais, algodão-pecuária) sob o controle dos coronéis, em muitos casos também representantes políticos. Essa estrutura de poder, arcaica em sua natureza, permitiu que o poder político e econômico dos coronéis perpetuasse e, em muitos casos, fosse fortalecido porque, como destaca Oliveira (2008, p. 179), se trata de uma estrutura que favoreceu o “enriquecimento e o reforço da oligarquia”.

Quando o Estado adota a política de implantação de perímetros irrigados na década de 1960, as contradições envolvendo o acesso à terra e à água tornam-se ainda mais acentuadas porque os critérios de elegibilidade62 do irrigante desconsideram totalmente a realidade local dos camponeses moradores das terras ocupadas pelos projetos de irrigação. Segundo Germani (1993, p. 534),

la intervención del Estado en la implantación de los proyectos públicos de regadio implica uma desarticulación de las comunidades existentes em las áreas expropriadas sin que existia la obligación de tenerlas em cuenta en los proyectos. Esto trae como consecuencia el desalojo de um gran número de personas a veces mucho más grande que el número de personas asentadas em los proyectos, a los que se añaden los problemas causados por los retrasos en la implantación del perímetro.

Bursztyn (1984) destacava o fato de que os camponeses expropriados pela execução de obras para garantir a segurança hídrica no Semiárido não tinham prioridade no acesso aos lotes, tornando-se, em sua maioria, mão de obra disponível para trabalhar nas lavouras comerciais. Passados 30 anos, essa visão não foi superada no âmbito da esfera governamental, embora esta considere que a inserção dos camponeses na agricultura irrigada, como força de trabalho, já justifica os investimentos feitos na criação dos projetos de irrigação. Ante o exposto, podemos afirmar que o Novo Modelo de Irrigação não é tão “novo” assim porque seu intento é reafirmar a importância de garantir as condições para a reprodução do grande capital nos perímetros irrigados, mediante o acesso à infraestrutura financiada com recursos públicos pelo setor privado. Embora essa perspectiva não estivesse explícita no corpo da Política Nacional de Irrigação, o fato é que, desde a sua implantação, a orientação sempre esteve voltada para o fomento à agricultura destinada a atender às demandas do mercado.

A criação dos polos agrícolas a partir dos perímetros irrigados acaba atraindo

62 Entre os critérios de elegibilidade dos colonos estão: a) idade – os candidatos não podem ter acima de 45 anos;

b) estado civil - apenas homens casados podem se candidatar; c) número de filhos – ter pelo menos dois filhos; d) escolaridade – não podem ser analfabetos; e) preparo - os candidatos passam por uma entrevista para verificar se possuem aptidão para a agricultura empresarial.

empresas de grande porte, nacionais e multinacionais, além de desencadear significativas alterações nas técnicas e nos instrumentos utilizados na produção (máquinas, insumos, tipos de lavouras e exploração dos recursos naturais – terra e água), acentuando os riscos e os acidentes de trabalho. Por outro lado, há a reconfiguraçãodas relações de produção entre os camponeses, que passam a utilizar, mesmo que de forma subalterna, o pacote tecnológico que é a base do agrohidronegócio, fato que leva muitos ao endividamento, à subordinação e à perda da terra. Articulada dessa maneira, a Política Nacional de Irrigação gera uma modernização agrícola com caráter conservador, limitadaà introduçãodo uso de insumos químicos e mecanização da produção, conservando sem alteração a estrutura anacrônica da propriedade e das relações sociais.

A Lei nº 12.787, promulgada em janeiro de 2013, trouxe reformulações no arcabouço legal, institucional, regulatório bem como no sistema de gestão, créditos e subsídios da Política Nacional de Irrigação, a saber:

I – incentivar a ampliação da área irrigada e o aumento da produtividade em bases ambientalmente sustentáveis; II – reduzir os riscos climáticos inerentes à atividade agropecuária, principalmente nas regiões sujeitas a baixa ou irregular distribuição de chuvas; III – promover o desenvolvimento local e regional, com prioridade para as regiões com baixos indicadores sociais e econômicos; IV – concorrer

para o aumento da competitividade do agronegócio brasileiro e para a geração de emprego e renda; V – contribuir para o

abastecimento do mercado interno de alimentos, de fibras e de energia renovável, bem como para a geração de excedentes agrícolas para exportação; VI – capacitar recursos humanos e fomentar a geração e transferência de tecnologias relacionadas a irrigação; VII – incentivar

projetos privados de irrigação, conforme definição em regulamento. (BRASIL, 2013. Grifos nossos).

Outrossim, nesse mesmo contexto, foi criada a Secretaria Nacional de Irrigação (SENIR), que tem entre as diretrizes estabelecidas pelo art. 19º do decreto nº 8.161/2013, “promover os negócios da agricultura irrigada” e “promover a implementação de projetos de irrigação e drenagem agrícola”. Ou seja, o propósito da política de irrigação atual é respaldar as ações de expansão do agrohidronegócio em áreas com restrições tanto do ponto de vista ambiental (disponibilidade hídrica) quando econômico (oferta de infraestrutura). Faz-se necessário destacar o papel do Estado ante a seara de discursos usados para justificar os investimentos públicos em novos projetos de irrigação bem como na revitalização de muitos outros. Pontes et al. (2013, p. 3214) afirmam que as

acompanhadas da implantação dos perímetros irrigados como estratégia geopolítica de expansão seletiva da fronteira agrícola, na perspectiva da indução do desenvolvimento. Os perímetros irrigados são áreas delimitadas pelo Estado para implantação de projetos públicos de agricultura irrigada que, em geral, possuem significativo potencial agricultável, caracterizado pelos solos férteis, presença hídrica, clima favorável e abundante força de trabalho. Estes elementos conjugados às infraestruturas implementadas (canais, piscinas etc.) favorecem ampla produtividade agrícola. Tal estratégia é, agora, retomada pelo governo com grande ênfase e, certamente, vem ao encontro deste capital transnacional que aqui se instala para produzir commodities agrícolas, a partir de terra, água e mão de obra, facilidades de infraestrutura e de financiamento, além de condições políticas e institucionais favoráveis.

Segundo as estimativas, até 2015 serão investidos R$6,9 bilhões na construção e na revitalização de perímetros irrigados, visando à ampliação da área abrangida pelos perímetros já existentes em 193.137 ha e a instalação de 200.000 ha em novos perímetros. A perspectiva é aumentar em 100% a gestão privada das áreas irrigadas, com ênfase nas parcerias público-privadas (PONTES et al., 2013).

A geografia histórica dos programas e projetos voltados à questão hídrica no Semiárido revela a existência de nexos entre o Estado, o capital e as elites agrárias regionais, cujas forças sociais impõem aos camponeses e às populações tradicionais diversos obstáculos à sua permanência em seus lugares de morada e à reprodução de suas práticas. A despossessão dos direitos territoriais em nome do progresso e do desenvolvimento revela como as relações são desiguais e combinadas na produção desses novos espaços, completamente dependentes e subordinados aos interesses do capital. Ao analisar os efeitos da implantação dos projetos de irrigação, Germani (1993, p. 537) destaca que antes,

en el espacio de la roza, el trabajo tenía como sentido garantizar los médios necessários a la supervivência del grupo doméstico. Ahora, la producción em el área de regadio cambia la óptica y el trabajo passa de estar limitado en la manutención del grupo familiar para a la realización de um saldo elevado de produto-renta, del cual dependerá su permanência, o no en el proyecto. De esta manera, el trabajo queda marcado por una dependência total al mercado y del control de las instituciones responsables de inversiones.

A fetichização acerca da implantação de perímetros irrigados, envolta no manto da “modernização conservadora” da agricultura no Semiárido, tem um forte componente de classe em que a tecnologia é utilizada para embasar as críticas à produção camponesa – tida como insuficiente e superada – bem como à desvalorização

do trabalho na/com a terra, como meio de reprodução, para torná-lo meramente produtor de mercadorias, viabilizando a extração de mais-valia. Como ressalta Marx (2009, p. 578), só é “[...] produtivo o trabalhador que produz mais-valia para o capitalista, servindo assim à auto-expansão do capital”. Acreditamos ser impossível analisar as políticas públicas implantadas com o escopo de planejamento/desenvolvimento regional, com base na problemática das secas, sem considerar a dialética da oposição entre camponeses versus latifundiários, sendo estes últimos resquícios da estrutura produtiva do “Nordeste” algodoeiro-pecuário (OLIVEIRA, 2008, p. 176), agora metamorfoseado em agrohidronegócio, continuando, porém a atrair e a cooptar os investimentos feitos pelo Estado em benefício próprio. De fato, o capital não se mantém sem a interferência do Estado, sendo este responsável por instrumentalizar o espaço para viabilizar a reprodução ampliada bem como preservar seu sistema orientado para a expansão e acumulação, que é em sua essência “irreformável e incontrolável” (MÉSZÁROS, 2007, p. 58).

Ao contrário daquilo que apregoam os discursos inflados acerca do desenvolvimento local/regional/sustentável, essas políticas públicas (programas e projetos) exercem um importante papel para o sistema sociometabólico do capital, por meio da introdução de corretivos parciais e mecanismos de controle social, no campo e na cidade, utilizando forças desiguais para manter a “ordem estabelecida”. O Novo Modelo de Irrigação é, em sua essência, o resultado inexorável do imperativo das intervenções radicais do Estado em zonas especiais de desenvolvimento econômico, com favorecimento dos governos estaduais à expansão do grande capital em sua busca pelo controle sobre a terra, a água e o trabalho, mediante o estabelecimento de relações de poder iníquas. Dada a importância que o controle da terra e da água tem para a expansão do grande capital no campo, Thomaz Junior (2011a, p. 313) chama atenção para o seguinte aspecto:

A evidente vinculação entre a expansão das áreas de plantio das commodities com a disponibilização dos recursos terra e água tem sido imprescindível para as estratégias do capital. Assim, a posse da terra e da água nos remete a refletir o papel do Estado no empoderamento do capital e seus efeitos, no quadro social da exclusão, da fome e da emergência da reforma agrária e da soberania alimentar. É dessa complexa e articulada malha de relações que estamos focando esse processo, no âmbito do agrohidronegócio, por onde nos propomos entender os desafios para a sociedade, para os moradores das cidades e dos campos, ou seja, a dinâmica geográfica da reprodução do capital no século XXI e os cenários que põem, para os trabalhadores.

As determinações destrutivas do capital sobre o campo causam a despossessão, a subordinação, a proletarização e a precarização das relações de trabalho e da própria existência humana, porque submetem as populações ao fetichismo do espaço- mercadoria, formatado sob a perspectiva irracional do desenvolvimento (in)sustentável. Essa irracionalidade sistêmica, embora pareça contraditória para o próprio sistema sociometabólico do capital, é, na verdade, responsável por sua perpetuação, mediante a interiorização e consolidação do ideário do capital, envolvendo, inclusive, a “[...] expropriação do savoir faire do trabalho” (ANTUNES, 2001, p. 190). Irracionalidade, irreformabilidade e incontrolabilidade são características próprias do sistema do capital, conforme destaca Mészáros (2007), pois, para viabilizar sua reprodução, este promove uma revolução nas forças produtivas, ao passo que sustenta relações hegemônicas e antagônicas para continuar edificando seu processo sociometabólico. O incremento tecnológico verificado no campo no Semiárido, via projetos de irrigação, tem provocado alterações nos valores da produção societal, passando de valor de uso para valor de

troca, submetendo os camponeses a situações de alienação e estranhamento.

Na realidade, os projetos desenvolvimentistas pautados na disseminação das grandes obras de segurança hídrica pressupõem um reducionismo da irrigação como fábula, consagrada no discurso único fundamentado na produção de imagens e no imaginário de superação da miséria e da pobreza dos camponeses caatingueiros provocadas pela seca. Todo o aparato ideológico e político que sustenta as ações de criação dos programas e projetos voltados para o incentivo da irrigação no Nordeste semiárido busca, maciçamente, disseminar a ideia de que essa alternativa seja a condição elementar para a melhoria nas condições de vida desses moradores e para o