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Paisagens mineiras que conservam características pretéritas e bucólicas mais uma vez são palco para o desenrolar da ação e m Maluquinho 2. Quase todas as filmagens foram realizadas no povoado de São José das Três Ilhas, distrito do município de Belmiro Braga, a 70 km de Juiz de Fora. É um povoado muito pequeno que tem apenas cerca de 200 habitantes e possui casas e igreja com arquitetura preservada de estilo colonial. Vistas verdejantes e cheias de colinas também são apresentadas neste filme, uma paisagem típica de certa região de Minas. Há, no entanto, também algumas paisagens mais secas, que remetem ao western – não essencialmente pela decupagem e mise-en-scène, como no outro filme, mas principalmente pela direção de arte e escolha da locação, inserindo animais como sapos e cobras. Assim, são as próprias paisagens secas mineiras que acabam se aproximando dos não- lugares cinematográficos.

cinematográfico do filme por excelência. A sequência que se passa no local é bastante longa, tem cerca de 12 minutos. Diegeticamente, trata-se de um espaço brasileiro. Contudo, não apresenta nenhum característica particularmente nacional. Construído em estúdio, não é muito diferente das cavernas retratadas em Indiana Jones ou em Goonies (fig. 11).

Figura 11 – Caverna em Maluquinho 2

Fig. 11 - A caverna em Maluquinho 2, um não-espaço fílmico.

Quanto às representações de regionalismos, cabe notar que a caracterização mineira no segundo filme é mais farsesca, principalmente devido à composição de alguns de seus personagens, como comentado no capítulo anterior. Dessa maneira, o sotaque mineiro (que praticamente não se ouviu no primeiro filme apesar do tom mais realista da história) é um tanto forçado na continuação. Transformar algumas características regionais em caricatura cômica facilita a sua apreensão por aqueles que não estão habituados a elas, uma vez que o registro em tom de fábula afasta desses aspectos uma estranheza que existiria num registro mais naturalista. A fábula afasta esses elementos, portanto, do mundo histórico, do real, tornando-os mais deglutíveis.

Também como um elemento nacional, o catolicismo está presente no filme. De forma farsesca, as beatas representam um tipo de fiéis rançosos, ávidos pelo destaque social por meio do trabalho espiritual. Retratados de forma mais positiva, Iaiá e Tonico pedem a

religiosidade é um dos poucos elementos nacionais que destoa um pouco da assepsia típica da memória internacional-popular.

O folclore é um desses elementos que foram reapropriados. Ele aparece de forma central, mas não se origina da tradição brasileira. Diegeticamente, Tatá Mirim, um dos personagens principais, é criado por Maluquinho: trata-se de folclore inventado por uma criança. A criatura vem do centro da Terra e é feita de fogo, em possível referência ao Boitatá (este sim um ente do folclore nacional). É uma forma relativamente simples de se criar com efeitos especiais. A mineirice do ser imaginário consiste em querer vagar pela superfície da terra para comer pão de queijo. Dessa maneira, as características regionais da entidade viram ornamentos. E como fogo, Tatá adquire formas bastante diferentes. Sua inspiração no ET de Spielberg é bastante clara, e a cena em que se despede de Maluquinho é evidente nesse ponto (fig. 12). Mais uma citação ao cinema hegemônico.

Mas aparentemente ele não foi planejado para o possível estabelecimento de produtos licenciados. De um lado, por ser uma chama, ele chega a uma estilização máxima e universal que o torna bastante exportável. Doutro lado, ele não tem nada parecido com um rosto, possuindo uma expressividade limitada. Os espectadores pouco o veem e ele não cria muita empatia. Isso parece provocar um problema de identificação. Não é como o E.T de Spielberg, que demonstra emoções e aprende a falar. Ele é um ser com tanta indefinição na narrativa que as resenhas da imprensa frequentemente se equivocaram em relação à sua procedência, muitas tomando como certo se tratar de um mito nacional, dada a tradição no gênero. Chamaram-no de “monstro pré-histórico” (CINEMA..., 1998, p. 1), “figura mística do folclore brasileiro” (SET..., 1998, p. 56), “duende” (MALUQUINHO II, 1996, p. 7) e um dos “mitos da cultura indígena” (ORICCHIO, 1998, p. D15).

Neste filme, as referências internacionais-populares parecem estar atreladas também a uma tentativa de modernização do projeto em relação ao filme anterior. O personagem de Maluquinho é vestido de forma mais adolescente, com jaqueta de couro e cabelo frequentemente penteado com gel. A música-tema filia-se ao pop-roque, ritmo mais internacional que a MPB do filme anterior. Seu intérprete principal é Herbert Vianna, vocalista da banda Paralamas do Sucesso. Em depoimento, Tarcisio Vidigal disse que convidou a banda mineira Skank, que então fazia sucesso entre o público jovem, para compor

parceria se concretizasse. O ritmo mais acelerado de ação, a música e o figurino diminuem o clima de contemplação e vestem o filme com uma roupagem mais moderna que o anterior. Talvez, assim, tente acompanhar o crescimento do espectador infantil que assistiu ao primeiro filme.

Figura 12 – Tatá Mirim e Maluquinho

Fig. 12 – Tatá Mirim e Maluquinho em Menino maluquinho 2

Neste filme de sequência, outra veia do nacional-popular evidencia-se diegeticamente no planejamento de uma comemoração do centenário da pequena cidade mineira fundada pelos avós de Tonico e de Costa. A preservação e o festejo da memória regional se dão por meio de manifestações artísticas e culturais populares, como o circo, a fanfarra e o desfile de fantasias. Neste, muitos dos figurantes que aparecem são moradores do próprio povoado onde as filmagens foram feitas. O popular aqui se filia a um tipo de manifestação feita pelo povo.

Como artistas, as crianças procuram apoio para a realização da festa e do circo. Maluquinho faz um discurso para o prefeito Costa parodiando a expressão latina panis et

circenses de forma mineira: “Pão de queijo e circo, pão de queijo e circo. A vida não é só pão

de queijo, seu prefeito, é também circo.” A conotação de manipulação das massas da política

manifestação cultural do povo (no caso, representada pela festa do centenário da cidade) como uma necessidade vital. Uma ideia, deve-se reconhecer, bastante interessante para a classe artística.

O circo é uma manifestação cultural de aspecto popular, referência a que o cinema infantil brasileiro (e o não-infantil também) recorreu diversas vezes. Em Maluquinho 2, a cena em que a lona se enche acompanhada por pulos de alegria das crianças é simbólica. Resgata o circo no imaginário construído para crianças no país, um tipo de entretenimento que perdeu a força de atrair muitos espectadores e sua estrutura de organização familiar. É ainda um entretenimento que desde início do século XX mistura diversas matrizes, bebendo da cultura popular, da cultura de massa e da erudita também (SOUSA, 2009). Após a chegada dos amigos de Maluquinho na cidade, vô Tonico e as crianças pulam sobre uma caminhonete e gritam com alegria um refrão brasileiro popular no anúncio do circo: “Hoje tem marmelada? / Tem, sim, senhor!/ [...] E o palhaço, o que é? / É ladrão de mulher!” Ao mesmo tempo que representa a produção cultural de artistas e do povo brasileiro, o circo é também uma referência internacional, uma vez que as artes circenses foram – e são - desenvolvidas em diversos países. Mesmo os números apresentados no filme recebem influência diversas: Nina, por exemplo, exibe uma performance de dançarina espanhola. As crianças apropriam-se das artes circenses e fazem o espetáculo, que inclui até os efeitos especiais de Tatá Mirim no número de mágica de Maluquinho. A produção do circo é muito caprichada, desde o figurino até a maquiagem e a iluminação, que conferem um glamour à imagem e uma tinta internacional-popular. É bastante diferente da apresentação na escola do primeiro filme, uma produção bem mambembe, com figurinos de papel e forca de isopor pintado.

A festa de comemoração do centenário, ocorrida nas ruas da cidade, também apresenta esse glamour em sua realização. O verde, amarelo e azul da bandeira brasileira no uniforme de futebol do primeiro filme perdem lugar para o branco, azul e vermelho da farda da fanfarra e para as múltiplas cores do desfile. Ensaios ocorrem sob a batuta de Tonico, os fogos de artifício são planejados por ele e Pedro Fogueteiro, o circo também é realização dele com as crianças. Essa festa, que é uma manifestação do povo, ocorre sobretudo com o agenciamento essencial de Tonico.

Tonico é, aliás, uma espécie de síntese do filme, ele próprio constituído por referências mundializadas e regionais. O avô de Maluquinho é um inventor um pouco

vide o professor Pardal das histórias em quadrinhos da Disney e o dr. Brown em De volta

para o futuro. O avô inventa traquitanas como um sistema automático que serve café aos

visitantes, um outro que ajusta o telefone ao rosto e uma catapulta para jogar as malas no quarto sem precisar subir a escada. A tecnologia e a técnica são, assim, ressaltadas na diegese. Tonico ainda faz as vezes de produtor cultural, pois banca e organiza incansavelmente a festa em memória do centenário da cidade fundada por seu avô, buscando apoios para tanto. Lembrando a oposição que Ortiz (1985) salientou no pensamento tradicional entre cultura (associada à humanidade, qualidade) e técnica (associada à modernidade, quantidade), na figura de Tonico, as duas categorias de alguma forma se misturam. Sua técnica, porém, não é exatamente relacionada à produção em massa: trata-se de uma produção criativa, mas de pequeníssima escala – parece que ele cria protótipos, que, conforme expressou, venderia se fosse necessário para viabilizar a festa. Essa tecnologia mais romântica e artesanal serviria, assim, aos propósitos da cultura.

O filme passa a imagem de um Tonico que é, como Vidigal, um produtor apaixonado e incansável, que mistura a negociação insistente, o romantismo nacional e uma técnica industrial rudimentar. Na minha percepção, o filme presta uma homenagem não só à função do produtor cultural em geral, mas também é possível que Ziraldo, o roteirista, tenha feito uma referência ao próprio Vidigal, um dos idealizadores dessa aventura caipira.