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Nostalgia brasileira e referências internacionais-populares no Menino 1

Diante da feroz concorrência estrangeira, Helvécio Ratton apostava em qual seria o trunfo do cinema nacional: “Sem a facilidade financeira e tecnológica dos americanos, temos que investir em nossas paisagens brasileiras e nos atores.” (BARROS, 1995, p. 2). Elementos naturais da terra, como as vistas e as pessoas, seriam o diferencial competitivo diante da produção internacional.

A “brasilidade” em Menino maluquinho repousa bastante num regionalismo mineiro. Na produção do primeiro filme, as cidades de Belo Horizonte e Tiradentes forneceram os cenários para as gravações. Na capital do estado, a principal locação é a Rua Congonhas, que ainda exibia na época da produção pavimento de pedras e casas pouco modernas, como numa vila. E Tiradentes, cidade turística, preserva ainda hoje um conjunto arquitetônico colonial pouco alterado.

O filme não faz, assim, a recriação de uma Minas qualquer, mas de uma Minas pretérita – e, como veremos, nostálgica. Um pouco mais da metade do filme é localizada em

materiais e imateriais que eram usuais na década de 1960, mas estavam desaparecendo nos anos 1990, momento da produção do filme. Na cidade, por exemplo, Maluquinho joga bente- altas, brincadeira típica da região de Belo Horizonte que é mencionada na música-tema. Hoje, a brincadeira praticamente desapareceu do repertório infantil. Carrinhos de rolimã, pique- bandeira, pau-de-bosta, pipa e jogo de botão são outras brincadeiras à antiga apresentadas no lado urbano do filme.

É entretanto no mundo rural onde estão concentrados mais fortemente os elementos ancestrais que contêm a beleza de uma cultura popular que morre, a qual restaria reificar. Há, aliás, uma passagem claramente marcada para a entrada nesse mundo. Vô Hortêncio e as crianças voam em um avião de fabricação semiartesanal. Na trilha sonora, há som do motor, uma música ora de tons oníricos, ora de maior tensão, e, à medida que avançam em paisagens verdes, colinas e pastos, surge o som de mugidos de vacas também. Assim que pousam na pista da cidade dos avós, um diálogo entre as crianças explicita a sensação de terem realizado uma viagem ao passado:

MALUQUINHO (apontando): Olha lá, cara! Balão estratosférico!

BOCÃO (com a mão a proteger os olhos da luminosidade): Uau! O avião do seu avô é uma máquina do tempo!

NINA (levantando-se do assento para ver melhor): Ó! Estamos em antigamente! Momentos mais tarde, numa cena evidentemente nostálgica, vô Hortêncio abre um baú cheio de seus brinquedos de infância e tira de lá um pião e uma bola bem gasta. Diz à sua companheira que acha que “os meninos que vêm por aí não vão saber o que é jogar um pião”. Quando Hortêncio pega o brinquedo de madeira e joga-o, ouve-se uma inserção musical de sinos, que chamam a atenção para a ligação do avô com o pião (essencial para a metáfora da morte que o filme propõe posteriormente), mas também acrescentam um tom sagrado ao momento.

Mesmo itens da culinária popular tradicional e modos de fruição alimentar do interior recebem destaque no filme: o melado, “sobremesa da roça” de acordo com explicação de Irene; os doces preparados pela avó de Maluquinho para recepcionar as crianças; as mangas roubadas e chupadas no pé pelos meninos.

Assim, constrói-se no filme um diálogo com elementos nacionais-populares tomados mais em sua acepção folclórica, tradicional e um tanto romântica, exaltando a beleza de pertences e costumes do povo brasileiro transmitidos de geração em geração, em especial

Algumas referências a símbolos e menções à história mineira e nacional vez ou outra aparecem neste filme de forma ornamental e, por vezes, pedagógica também, em um tom celebrativo semelhante ao de festas escolares e cívicas. Não por acaso, na apresentação da escola de Maluquinho, as crianças encenam o enforcamento de Tiradentes e recitam trechos da coletânea de poemas de Romanceiro da Inconfidência , de Cecília Meireles (1953). E numa das últimas cenas do filme, no jogo de futebol, esporte símbolo do país, os dois times vestem uniformes com as cores da bandeira brasileira. A alegre música que acompanha a partida referencia claramente o choro Brasileirinho (Waldir Azevedo, 1947).

Há também algumas outras rápidas referências nacionais vividas talvez pelos adultos que assistem à película, reforçando o sentimento de nostalgia que o filme tende a provocar. Um trem cruza a paisagem enquanto o avô e as crianças voam de balão. Maluquinho, por exemplo, ao jogar futebol de botão com seu pai cita nomes de jogadores do Cruzeiro de Tostão. O avô do menino serviu como piloto de avião na Segunda Guerra Mundial. O quarto de Maluquinho tem um quadro com os dizeres “Senta a Pua” e réplicas de aviões militares, cômodo que é apresentado com uma panorâmica que destaca os brinquedos e decoração de época.

O consumismo e a indústria cultural de massa aparecem muito timidamente no filme. A música é um dos itens dessa indústria que está presente. O s personagens frequentemente cantam trechos de canções brasileiras de sucesso de décadas anteriores à época retratada no filme. São momentos breves, mas um tanto mortos com relação à ação dramática, conferindo assim mais relevo à música: avós e crianças cantam no carro uma marchinha de carnaval da década de 1930, A jardineira (Benedito Lacerda e Humberto Porto, 1939), música que acompanha seu trajeto até a casa e apresenta paisagens bucólicas que a caminhonete atravessa (fig. 8). Irene cantarola em inícios de planos pequenos trechos do samba-canção João

Valentão (Dorival Caymmi, 1953) e do samba Se acaso você chegasse (Lupicínio Rodrigues e

Felisberto Martins, 1938) enquanto executa algumas tarefas domésticas. E vô Hortêncio canta

Tem gato na tuba (João de Barro, 1948) enquanto pinta as demarcações do campo de futebol.

São músicas populares no sentido de terem sido bastante consumidas pelas pessoas numa época passada, mas não só. A jardineira tem inspiração folclórica: é adaptação de uma canção popular tradicional que Humberto Porto teria conhecido em Mar Grande, interior da Bahia (HUMBERTO PORTO, 2002 – 2012). Já João Valentão e Se acaso você chegasse são

acepção de popular.

De uma maneira diferente, o apelo regional e nacional se percebe também na escolha dos músicos para a música-tema. Esta é de autoria de nomes contemporâneos da Música Popular Brasileira consagrados por uma elite cultural, que a compuseram especialmente para o filme. Milton Nascimento, embora carioca, cresceu em Minas Gerais e é nome associado à mineiridade. Fernando Brandt, o compositor, é mineiro também. Aos dois músicos, por sugestão de Tarcisio Vidigal, juntou-se uma intérprete mais ligada ao roque: a paulista Rita Lee. Diz o produtor que seu filho, fã da música Banho de Espuma (Rita Lee, 1981), foi quem deu a ideia. Percebe-se que o produtor procurou, assim, promover o acréscimo de uma voz feminina, uma mistura de gêneros musicais e artistas de diferentes regiões do Brasil. Esta é, ao contrário das anteriores, uma música extradiegética, que se repete em dois momentos do filme por uma boa duração. A voz de Milton Nascimento, porém, é preponderante na mixagem.

Fig. 8 – Paisagens mineiras

Fig. 8 - A caminhonete, no canto inferior do quadro, cruza paisagens bucólicas de Minas Gerais enquanto as crianças e avós cantam A jardineira. Em Maluquinho 1.

Em nenhum dos casos, explora-se a obra de artistas da moda quando do lançamento do filme, ao contrário do que ocorria com os filmes de Xuxa e dos Trapalhões a partir de determinado período. As canções diegéticas podem sim ter integrado o esquema da indústria

consolidada. O artifício do “para para cantar”, comum nas chanchadas e nos infantis mencionados, praticamente não é utilizado no filme – a exceção talvez seja a cena do sonho de Maluquinho, em que ele dança sobre o relógio, embora não propriamente ele pare uma ação para cantar. Essa cena, na verdade, referencia mais os musicais do cinema internacional que as chanchadas.

Portanto, a escolha dessas referências musicais no filme (sambas antigos, MPB, cantigas) revela a busca de diálogo com um público que as compreende como legitimamente artísticas. As obras não promovem, por exemplo, artistas infantis de sucesso da época da produção, como Sandy e Júnior, ou mesmo Xuxa, que tinham uma exposição massiva na televisão. A escolha de Milton Nascimento, por exemplo, dialoga com uma outra tradição: a dos artistas da MPB que se dedicaram à produção de músicas infantis, como Chico Buarque com o disco Os saltimbancos (1977) e Vinícius de Moraes com o disco A arca de Noé (1980).

Falando ainda de símbolos nacionais, é importante notar que Maluquinho, o protagonista, é identificado com um personagem-chave do folclore nacional apropriado por Ziraldo. Quando na saída da escola o menino observa pintinhos, ao fundo, na banca de jornal, vemos um cartaz do Pererê, protagonista de uma revista em quadrinhos de Ziraldo (figura 8). As semelhanças entre Maluquinho e o personagem folclórico são facilmente identificáveis: ambos são meninos travessos, alegres, personagens de Ziraldo – e brasileiros. Assim como o Saci Pererê é um símbolo do folclore brasileiro, Maluquinho, com sua roupa azul e amarelo, acaba se tornando um representante do menino brasileiro.

Figura 9

Fig 9 - Frame de Menino maluquinho – o filme: Maluquinho trama sua próxima travessura. Ao fundo, o cartaz promove a identificação do menino com Pererê, personagem folclórico brasileiro apropriado por Ziraldo em quadrinhos.

referências internacionais. É interessante notar que essas referências encontram-se justamente em alguns itens de consumo das crianças e em suas imagens mentais. Na festa da escola,

Yellow submarine, dos Beatles, foi a música escolhida pelo grupo de Bocão para a

apresentação, que entretanto não chega a ser executada no filme. O banho de Maluquinho é um momento em que a criança recria histórias de aventuras marítimas, gênero importante da literatura e dos filmes infanto-juvenis. Quando sonha, o menino parece fazer parte de um musical coreografado com um cenário insólito: um relógio e um pêndulo gigantes. Maluquinho e Bocão, no quarto, folheiam a revista inglesa Girl Illustrated.

Neste episódio, quando veem fotos de mulheres seminuas estrangeiras, há, aliás, um diálogo curioso. Eles conversam sobre a menina nova na vizinhança, de nome com influência da língua inglesa: Shirley Valéria. Ambos disputam a pequena loira como namorada. Maluquinho, não conseguindo palavra adequada para melhor qualificá-la, afirma que ela vem do estrangeiro: “ela é tão, ela é tão... Acho que ela vem de Nova Iorque!” Bocão contesta: “falando a nossa língua?” Ao que o garoto responde: “ué, ela fala dublado”. A referência internacional-popular está na rua deles e fala português, ou seja, o imaginário construído pelos filmes hollywoodianos dublados concretiza-se. Trata-se de uma menina-sonho-de- cinema-americano desejada pelos meninos, por quem eles brigam, mas logo fazem as pazes.

Em termos formais, há uma citação clara a um cinema de gênero internacional-popular na cena em que Maluquinho, Bocão e Nina encontram os garotos da cidade interiorana. O embate entre crianças forasteiras e locais ocorre com música semelhante à de um western, fotografia em tons ocres, com mise-en-scène de pré-duelo: os meninos locais estão formados em linha, imóveis, carrancudos, silenciosos e distantes dos visitantes amedrontados. Dois planos em campo-contraplano marcam as duas posições. Os visitantes tomam a frente e tentam contato como se dirigissem a índios: “Viemos em missão de paz!” - o que é motivo de piada entre os “nativos”: “Qual é, 'tão achando a gente com cara de índio?” E caem na gargalhada. O western é uma referência dos personagens urbanos para entender o interior do país, que pouco conhecem – é a “roça”, na fala de Bocão. A narração simula temporária e evidentemente o estilo do gênero, de forma a gerar o reconhecimento nos espectadores. Mas não se trata de fato de um western, as crianças não são indígenas e este não é o Oeste americano. De uma só vez, a cena alude a um dos mais celebrados gêneros cinematográficos pela crítica, faz humor com o repertório do imaginário internacional-popular e apresenta uma

interior de seu país.

Ao mesmo tempo que os elementos nacionais criam um certo didatismo fragmentado sobre aspectos variados da cultura brasileira, principalmente a mineira, favorecem também um clima de exaltação de uma identidade nacional calcada no passado e na produção cultural anterior à televisão. As referências internacionais-populares no primeiro filme também estão presentes nas mentes das crianças, contudo, elas aparecem mais como citações de forma pontual – e também um tanto nostálgica - em vez de tomar conta da forma do filme como um todo.

Assim, Maluquinho 1 apresenta uma dupla nostalgia. De um lado, a da infância: “vida de moleque é vida boa”, como diz a música-tema. E de outro, a de épocas passadas, de um Brasil da geração dos pais e dos avós dos pequenos espectadores que assistem à fita. Há uma chave de leitura após a sequência de briga dos pais de Maluquinho. Bocão e seu amigo estão sentados na sarjeta. Maluquinho pergunta, abraçando-o: “Bocão, você acredita em tesouros escondidos?” São como tesouros escondidos, como beauté du mort, que o filme apresenta esses momentos.