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4. ANÁLISE DE DISCURSO

4.1 Avon

A peça selecionada da marca Avon, é intitulada “É Pra Olhar Mesmo | #AvonPride”, produzida em formato de vídeo, veiculado na plataforma YouTube. Segundo a descrição do mesmo,

“Pessoas LGBTQ+ recebem olhares em todo lugar, o tempo inteiro. Já que chamamos tanto sua atenção, por que não dá mais atenção à nossa voz?

Somos muito mais do que você imagina. #AvonPride

Olha de verdade, mas olha direito! Eu tô em todo lugar. Quando me encontrar no seu andar, na sua mesa de trabalho, no seu fone de ouvido, ou dobrando a sua esquina, pode olhar de cima a baixo. E não tira o olho. Eu existo.” (Avon, 20187)

Partindo da descrição da peça, já podemos reaver alguns ideais anteriormente discutidos nesta pesquisa, a afirmação sobre os olhares recebidos pelas pessoas LGBTQIA+, em todo lugar, o tempo inteiro, é aqui compreendida pela carga do preconceito que este olhar carrega, pelo estranhamento causado por este corpo fora do padrão heterossexista, portanto, não é um olhar positivo, possuindo sua conotação de ultraje pelo corpo desviante da normatividade padrão.

A descrição segue com um questionamento: “por que não dá mais atenção à nossa voz?”, o que se ancora no silenciamento histórico que estes corpos foram e são até hoje sujeitados, pelos seus direitos negados, pelas suas liberdades cerceadas e pelo escanteamento de suas existências para as margens da sociedade. O manifesto continua com a afirmação

“Olha de verdade, mas olha direito! Eu tô em todo lugar” e “E não tira o olho. Eu existo.”, ambas frases sendo afirmações de um deslocamento nas relações de poder, daqueles olhos julgadores que pretendem silenciar as existências desses corpos para a aceitação de que mesmo com tantos olhares negativos, tais corpos se negam a ser novamente invisibilizados.

Partindo para a reprodução da peça em si, conforme Silva et al (2019) explica ao citar Orlandi, precisamos compreender, antes de se pensar o discurso publicitário, que a sua inserção em determinadas formações discursivas leva em consideração toda uma carga ideológica preexistente, que se dá através de aspectos da memória, do imaginário coletivo e do mundo social, levando em consideração não apenas a estética, mas toda uma relação histórica e social do que é dito ou não dito nessas (re)produções de sentidos. (SILVA;

7 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1SbSANxv5DQ> Acesso em: 20 nov. 2020.

MEIRELES; BEZERRA, 2019. p.98)

Como primeira etapa de análise do discurso publicitário veiculado na peça da Avon (2018), temos o material bruto coletado da obra, composto de certos aspectos semióticos que remetem para uma estética construída da comunidade LGBTQIA+, através, por exemplo, do uso das cores do arco-íris, dispostas nas luzes das diferentes cenas em que se apresentam as personagens, como também na própria caracterização das personagens, em suas roupas, apetrechos ou maquiagens.

Além disso, há a produção textual do discurso que se segue:

“Pode reparar a vontade.”

“Olha mais! Olha de novo! Mas repara direito.”

“Pode olhar, torto, esquisito, com curiosidade.”

“Onde quiser, quando quiser, o quanto quiser.”

“Hora ou outra todo mundo percebe.”

“Nem preciso explicar o por quê, eu sei! Tem coisa que a gente já nasce sabendo, né.”

“Mas também, né, difícil ignorar!”

Os elementos que compõem a narrativa da peça são trazidos pelas personagens expostas, sendo cada parte do discurso trazida por uma voz diferente, distribuindo a discursividade em camadas ao longo da duração da peça, responsável, de certa forma, por construir a coletividade de um discurso único apresentado no vídeo, ao mesmo tempo em que, nesta mesma distribuição de sentidos, constroem uma narrativa individual no discurso, ao apresentar alguns sentidos pessoais por meio das frases abrangentes.

Figura 2 – #AVONPRIDE (apresentação da marca)

Fonte: Captura de tela (própria)

Portanto, é necessário haver uma reflexão detalhada para que se chegue na compreensão do objeto discursivo, conforme Silva et al (2019), por meio de frases que irão contrapor o que é dito pela campanha. Conforme Orlandi (2001, apud Silva et al 2019), é importante que se observe as metáforas do texto e os deslizes presentes no discurso analisado, através da interpretação, da historicidade e da ideologia. (SILVA et al, 2019. p.99) Seleciona-se para tal um trecho da narrativa manifestada no vídeo da Avon:

“Pode reparar a vontade.”

“Olha mais! Olha de novo! Mas repara direito.”

Pode-se observar, já no trecho inicial da narrativa, a presença de uma intenção discursiva dos corpos de se fazerem visíveis. Os deslizes de sentido presentes nas frases “pode reparar a vontade” e “mas repara direito” estão carregados de uma negação da invisibilidade pela qual as identidades desviantes aqui retratadas passaram; existe uma vontade desses corpos de serem vistos, de serem reconhecidos, de não mais terem suas existências apagadas ou seus direitos negados.

“Pode olhar, torto, esquisito, com curiosidade.”

“Onde quiser, quando quiser, o quanto quiser.”

Este trecho que se segue remete a uma grande historicidade dessas representações identitárias, como bem vimos, que ao final dos anos 70, as políticas identitárias das homossexualidades abandonavam um modelo de busca da libertação sexual através da transformação do sistema, visto que os mecanismos de poder que reiteravam suas existências eram também os mesmos mecanismos de poder que as marginalizavam, então aceitando essa condição de marginalizados, essas existências passavam a se (auto)validar, como diferentes, mas igualmente merecedoras de seus direitos. “Pode olhar torto” e “o quanto quiser” pois aceitamos nossas condições, mas aceitamos também que estaremos onde bem entendemos.

“Hora ou outra todo mundo percebe.”

“Nem preciso explicar o por quê, eu sei! Tem coisa que a gente já nasce sabendo, né.”

A construção de sentidos nestas duas frases que se seguem, utilizam um mecanismo de reiteração de identidade, no deslize presente na formulação de um sentido de alteridade, de ser percebido por outrem, mas também carregada de um sentido metafórico, visto que o

‘perceber’ também denota um caráter de desmascaramento de uma identidade travestida, uma assimilação recorrentemente carregada de preconceitos, ao se ‘perceber’ alguém como trans ou travesti, mas que nesse caso é assumida como um desejo, uma certeza.

Assim como na frase “Tem coisa que a gente já nasce sabendo”, que tem sido, historicamente, uma dialética adotada para ratificar a existência de comportamentos desviantes de sexualidade e o não-binarismo de gênero, que se entende não como uma doença que se ‘contrai’ ao longo da vida como o homossexualismo originalmente indicava, ninguém

“vira” trans, é simplesmente uma construção identitária, tal qual Hall (2006) indica, é algo que surge por meio de processos inconscientes desde o nascimento de um indivíduo, que se revela conscientemente na construção de sua identidade.

“Mas também, né, difícil ignorar!”

O discurso continua com uma frase de potente deslocamento de poder. Aqui nós vemos um corpo midiatizado, representado por meio de um mecanismo de construção de

sentidos, assumindo uma narrativa que durante muito tempo serviu como um carrasco e aprisionamento desse mesmo corpo, que agora se utiliza das mesmas ferramentas e dialéticas para assumir uma história não mais delegada como forma de controle de uma identidade, mas auto-assimilada por meio de um deslocamento de sentidos, são identidades historicamente marginalizadas que tomam o controle de suas próprias narrativas e se fazem ser vistas, percebidas, mas além disso, assumem uma postura de orgulho e aceitação de seus próprios corpos, é realmente “difícil de ignorar”.

Figura 3 – #ÉPraOlharMesmo (apresentação do título)

Fonte: Captura de tela (própria)

Podemos conhecer ao longo da reprodução do vídeo seis personagens/narradores, Igor (stylist), Rosa Luz (Rapper e Artista Visual), Lia Clark (Cantora e Drag queen), Gaby (Executiva de Vendas da Avon), Vanessa (Assistente de cozinha da Sodexo na Avon) e Bia (Modelo). A inserção dessas pessoas reais, sejam famosas como a cantora Lia Clark, ou anônimas, é um marco ilustrativo do que foi discutido sobre a pedagogia da publicidade, esta representação dos corpos reais, literais, que sobrevivem as histórias narradas e que buscam representar diversos outros corpos com trajetórias similares, ao mesmo tempo em que em suas (inter)discursividades, procuram (re)afirmar suas existências.

A peça da Avon também traz algumas outras questões a se considerar, como a representação de duas figuras que carregam o nome da marca, Gaby e Vanessa, por serem ambas funcionárias da empresa, denotam uma certa confiabilidade para a mensagem que está sendo transmitida, pois ao possuírem um vínculo empregatício com a marca, conferem-na

uma validação da intenção retratada pelo discurso, ou seja, são duas pessoas comuns, que fazem parte desse espectro de identidades queer, que se veem representadas e representando estas identidades, ao mesmo tempo que possuem certa validação da própria marca que representam, conferindo ao discurso de um sentido de aceitação e verdade.

Quanto às representações de corpos e identidades desviantes do padrão, também a campanha consegue realizar um trabalho interessante, pela diversidade de corpos e individualidades representadas, fugindo à normatividade daquele ethos do homem, branco, padrão; cujas representações da comunidade LGBTQIA+ na mídia de comunicação de massas, potencialmente acaba perpetuando, como se a única maneira com que uma identidade queer pudesse ser representada fosse por meio do enquadramento de todas as outras normas socialmente impostas do corpo ideal.

O discurso da peça, portanto, denota um caráter e uma reprodução coesiva com a própria mensagem veiculada, ao compreender e representar performatividades distintas de identidades queer, levando em consideração os atravessamentos de etnicidade, classe, fugindo da padronização socialmente imposta dos corpos, como também dos estereótipos previamente discutidos aqui. Os corpos queer, que discursam um manifesto para que sejam enxergados como são, onde são e na medida que são nas suas próprias individualidades que compõem uma coletividade diversa, parecem encontrar na representação dessa peça algum tipo de retorno verdadeiro na compreensão de seus discursos.

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