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Sexualidade: origem e construção identitária

3. GÊNERO E SEXUALIDADE

3.1 Sexualidade: origem e construção identitária

Nos últimos dois séculos, a temática da sexualidade passou a ser recorrente objeto de estudo de diversas áreas do saber, seja do ponto de vista da biologia, religião, psicanálise, antropologia, educação, etc. tornando-se uma questão amplamente discutida, através da qual muitas outras problemáticas são originadas, em se tratando de sua explicação, origem, ou até sua normatização através dos anos, tomando forma como parte ativa de uma relação de poder socialmente ratificada. Isso porquê, como explica Louro (2001), instituições tradicionais como o Estado, a igreja ou a ciência reivindicam sobre a temática da sexualidade as suas verdades e a sua ética,

“Foucault certamente diria que, contemporaneamente, proliferam cada vez mais os discursos sobre o sexo e que as sociedades continuam produzindo, avidamente, um ‘saber sobre o prazer’ ao mesmo tempo que experimentam o

‘prazer de saber’.” (LOURO, 2001. p.541)

Ao que Rodrigues (2008) teoriza, ao dizer que a sexualidade foi percebida a partir de

construções históricas, principalmente de cunho científico e religioso, o que delineou a

Como o autor explica, até o século XVII, as diferenças atômicas que definiam o sexo biológico mostravam-se através de elementos míticos e arquetípicos para representar realidades distintas, mais precisamente, duas realidades distintas, que se limitavam aos órgãos reprodutores, ao que Nunan (2015) concorda, explicando que “a concepção científica de sexualidade era a do one-sex model: a mulher era entendida como sendo um homem invertido e inferior.” (NUNAN, 2015. p.16)

Estas noções de representação da sexualidade, dos dois sexos biológicos, ou conforme vimos, o sexo perfeito, do homem, e o Outro sexo, da mulher, eram o que se entendia como norma dentro de um padrão heterossexual; isto porque, como Louro (2001) vai explicar, a homossexualidade e o sujeito homossexual surgem apenas no século XIX, não porque antes disto os sujeitos homossexuais não existiam, mas a própria noção de uma sexualidade desviante do padrão não era aceita, caso existissem relações interpessoais, amorosas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo biológico, antes, era considerado como uma prática de sodomia, um pecado. A autora diz ainda que é na segunda metade daquele século que essa noção vai mudar, visto que essa prática passaria a definir os sujeitos, a serem julgados e categorizados como desviantes da norma, sentenciados a um lugar de segredo ou segregação social. (LOURO, 2001. p.542)

Os sujeitos desviantes que tomavam parte de tais práticas, tomavam a atenção e geravam interesse de uma investigação mais aprofundada, com o intuito de se defender o padrão social e a saúde das famílias, e daí surge o termo homossexual, cunhado pelo médico húngaro Karoly Maria Benkert, em 1869. (RODRIGUES, 2008. p.67) O autor explica que tal nomenclatura viria marcar a divisão da prática sexual com a intenção reprodutiva, para uma prática voltada para o prazer, que iria a definir uma norma erótica moderna, onde o hetero-sexual e o homo-hetero-sexual representam dois erotismos, um normal/bom e o outro anormal/ruim.

Conforme Nunan (2015),

“com a utilização dos conceitos de instinto sexual, degeneração e evolucionismo, a ciência médica do século XIX estava pronta para justificar teoricamente a moral burguesa. A partir do século XIX, a influência da linguagem científica sobre a linguagem ordinária teria contribuído decisivamente para o sucesso das ideologias sexuais. De fato, boa parte das ideias atuais que mantemos sobre sexualidade devem-se ao prestígio da ciência no imaginário social.” (NUNAN, 2015. p.19)

Portanto, podemos notar que as questões que envolvem a origem e definição da sexualidade, estão diretamente ligadas a relações de poder e a imposição de uma espécie de normatividade de um sujeito padrão ideal, e daqueles que se originam pela negação desse sujeito ou pela oposição a este, sendo o sujeito ideal predicado no ethos de um homem, branco, masculino, heterossexual. A partir deste momento, a sexualidade se torna uma parte importante da individualidade, o que vem a constituir e explicar a importância que se atribui à sexualidade, como explica Nunan (2015), tal importância atribuída e reforçada pelo seu contínuo esquadrinhamento, acaba por constituir um destino aprisionante, especialmente para aqueles indivíduos cuja sexualidade é considerada “desviante”.

Essa noção binária que designa as condições de homem e de mulher constitui, para além da estrutura de reconhecimento do sujeito, uma especificidade “totalmente descontextualizada, analítica e politicamente separada da constituição de classe, raça, etnia e outros eixos de relação de poder que constituem a identidade”. (BUTLER, 2018. p.22) A representação e aprisionamento dessas existências subjetivas foram o primeiro passo para o declínio das velhas identidades que antes representavam o mundo social, até que se chegue na construção do indivíduo moderno e a “crise de identidade”, como Hall (2006) vai retratar, seja o pontapé inicial de um processo amplo de mudança, que ocorre até os dias de hoje, de um deslocamento de estruturas e descentralização de poder e também dos próprios sujeitos.

(HALL, 2006. p.7)

As identidades homossexuais, e aqui consideramos o sentido de homens ou mulheres que se atraem pelo mesmo gênero, assim como Nunan (2015) explica, são formadas de, pelo menos, duas dimensões: primeiro, a dimensão que considera os valores culturais que diferem daqueles predominantes da sociedade onde o indivíduo se insere e de como esse indivíduo é visto pela sociedade mesma; e segundo, de como o indivíduo se reconhece dentro dessa sociedade e os mecanismos de identificação para com seus semelhantes, dentre outras coisas, o desejo homossexual. (NUNAN, 2015. p.78) Vale ressaltar que estas características apenas

fazem parte de uma parcela mínima da identidade homossexual, que irá se desconstruir ao passar do tempo, com a própria descentralização dos sujeitos nas sociedades modernas.

Conforme Hall (2006) identificou, a identidade é formada e reformulada ao longo do tempo, por meio de processos inconscientes e conscientes desde o nascimento de um sujeito, portanto sempre está incompleta, ou melhor dizendo, sempre está “em processo”, sendo atualizada.

(HALL, 2006. p.38)

Vemos que o surgimento de uma identidade desviante, em termos de sexualidade, foi e é um processo de deslocamento e de reformulação de individualidades e, como tal, segue tendências das normas sociais as quais se delimita ou, na mesma proporção, se transgride.

Esse processo, que teve seu início na segunda metade do século XIX, carregou estigmas e definições desde o seu princípio representativo, onde a homossexualidade (à época tratada como homossexualismo5) era uma prática condenada e os sujeitos homossexuais eram objetos de estudo por comportamentos desviantes, ultrajantes. Assim também para Louro (2001), que fala sobre a ciência, o Estado, a igreja, grupos conservadores e outros grupos emergentes que atribuirão a estes sujeitos e a estas práticas, significados e sentidos distintos: a questão da homossexualidade produzida discursivamente, vivenciada pelos indivíduos reais e desviantes, torna-se então uma questão social relevante. Enquanto alguns vão assinalar tais características como desviantes, anormais ou, até mesmo, inferiores, também passará a existir o movimento contrário, afirmando sobre os homossexuais e a prática homossexual, uma normalidade e naturalidade. (LOURO, 2001. p.542)

Essas questões perduraram dentro dos próprios grupos desviantes, por sua incansável reiteração, e perduram até os dias atuais, como veremos mais adiante. Diversos autores citam que o processo de politização da sexualidade, que vai a definir as identidades sexuais modernas, tem seu início nas décadas de 1960 e 70, onde as manifestações e possibilidades de novas sexualidades começam a ser reivindicadas. A luta pelo reconhecimento político e identitário de indivíduos homossexuais, está intrinsecamente ligada as lutas feministas, pela ótica de uma contestação da normalidade da heterossexualidade, que é também socialmente

5 “A homossexualidade deixou de ser considerada transtorno mental em 1973 quando a Associação Americana de Psiquiatria decidiu retirá-la do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM). No entanto, continuou na lista de doenças mentais até 1990, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou a versão 10 da Classificação Internacional de Doenças (CID-10). Embora isoladamente deixasse de ser definida como doença, esta orientação sexual permaneceu conectada a uma linguagem patologizante por meio de categorias que a associam a distúrbios mentais.”

Disponível em: <http://www.clam.org.br/noticias-clam/conteudo.asp?cod=11863> Acesso em: 15 nov. 2020.

construída. (RODRIGUES, 2008. p.76)

Ao final dos anos 70, a política gay e lésbica abandona o então modelo de busca pela libertação sexual e identitária através da transformação do sistema, voltando-se para um modelo ou até mesmo uma metodologia que, conforme Louro (2001) define, poderia ser chamado de ‘étnico’. As identidades homossexuais se (auto)representavam como um grupo minoritário, diferente mas igual na perspectiva da igualdade de direitos dentro da sociedade que existiam. Daí, partindo do ano de 1975, surge um grupo denominado como Movimento de Libertação Homossexual no Brasil, que agitou os debates sobre sexualidade e gênero no país, trazendo novos pareceres para a luta política, atravessada não apenas pelas individualidades no montante da sexualidade, mas considerando questões de classe, etnicidade, raça, nacionalidade etc. (LOURO, 2001. p.543)

Assim, aos poucos, dá-se início a uma projeção da comunidade homossexual, que mais para frente se transformará, algumas vezes, até que se alcance a alcunha dos dias atuais, como a comunidade LGBTQIA+. Apesar dos avanços na questão da visibilidade e de direitos para essa comunidade, ainda é necessário um longo caminho de reformulação de conceitos, leis e estigmas sociais que cerceiam tais identidades desviantes, obviamente na relação com a sociedade normativa e conservadora, mas tratamos aqui principalmente de questões internas, ao passo em que se desenham novas formas de vivenciar a sexualidade e subverter o gênero.

Como Louro (2001) também indica, desde o fim da década de 1970, os ideais políticos cobiçados estavam marcados por valores brancos e de classe média; assumindo padrões e normas dos grupos normativos aos quais haviam sido excluídos, especialmente para os grupos negros, latinos e de menor poder aquisitivo; também para lésbicas, a cultura homossexual – aqui prioritariamente masculina –, seguia os mesmos erros e privilégios masculinos já repercutidos na sociedade geral, delegando as questões lésbicas de maneira secundária; da mesma forma em que bissexuais e transsexuais eram excluídos dessa política de aceitação, mantendo ainda suas condições marginalizadas; como a autora explica, “a comunidade apresentava importantes fraturas internas e seria cada vez mais difícil silenciar as vozes discordantes.” (LOURO, 2001. p.545)

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