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BADENBADEN ADENTRO:

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Os resultados alcançados em nosso espetáculo foram elaborados a partir do trabalho inspirado pelas teorias de Brecht, na conceituação das peças didáticas e do modelo de ação. A noção de modelo, já debatida anteriormente, aparece também nos “livros-modelo” que Brecht elaborou, a partir do registro fotográico de seus espetáculos e da análise tanto de suas intenções quanto das estratégias que ele instaurou para encenar obras de sua autoria e também de outros dramaturgos.

Esses livros são nossa inspiração para o registro que ora segue.

Com o intuito de analisar nossas inspirações e os encaminhamentos, vamos unir o registro fotográico a protocolos feitos pelas atrizes, além de analisar algumas considerações realizadas por especialistas que apreciaram o espetáculo.

Cumpre esclarecer que também nosso objetivo não é oferecer nossas estratégias de encenação como modelo. Trata-se de uma tentativa de “transcrever” a obra e o processo que lhe deu origem de forma a torná-los visíveis, examinando esse material.

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RÓLOGO

Uma vez determinados a procurar estratégias distintas da relação tradicional com o público, e assim que nós decidimos realizar a encenação com o texto A peça didática de Baden-Baden sobre o acordo, consolidou-se a necessidade de criarmos um prólogo que anunciasse essa obra.

Uma das justiicativas era a possibilidade de instaurarmos um contrato com o público, a partir do qual ele seria convidado a integrar o espetáculo. Poderíamos também, nesse momento, explorar fragmentos do texto O voo sobre o oceano.

Brecht escreveu O voo sobre o oceano diante do fascínio provocado pela travessia de Charles Lindbergh, primeiro aviador a realizar um voo transatlântico de forma solitária, em 20 de maio de 1927. Neste texto, ele elabora o ato como triunfo do homem sobre a natureza. Como um contraponto a isso, Brecht escreve também A peça didática de Baden-Baden sobre o acordo. Este texto, por sua vez, foi inspirado pelo desaparecimento de dois aviadores, Charles Nungesser e François Coli, que tentaram realizar a mesma travessia e desapareceram no percurso, apenas 12 dias antes do triunfo de Lindbergh.

Essa tragédia inspirou o texto, cuja fábula se desenvolve da seguinte maneira: quatro aviadores sobrevivem à queda de um avião e, em um lugar desconhecido, feridos e sedentos, pedem ajuda a um grupo que, diante de seu sofrimento, decide analisar se o homem ajuda o homem.

O texto de abertura de A peça didática de Baden-Baden sobre o acordo é o mesmo que encerra O voo sobre o oceano: mais um indício da ainidade entre os textos. Por isso, em nosso prólogo, nós associamos partes deste texto a outros fragmentos, trabalhados nas composições e depoimentos pessoais, principalmente os trechos da cena em que um narrador relata a parábola do pensador em meio à tempestade.

Esse texto, que será alvo de nossa análise quando discutirmos a cena sete, foi trazido para o prólogo do espetáculo com o intuito de reforçarmos um aspecto que nos pareceu candente em todo o texto de A peça didática de Baden-Baden sobre o acordo: a presença da morte.

Para isso, a ideia era anunciar o risco da fatalidade, ante os perigos que os aviadores enfrentam em O voo sobre o oceano, e como radicalização da renúncia presente o tempo todo em A peça didática de Baden-Baden sobre o acordo (não da renúncia à própria vida, mas a renúncia a um modo de viver que deve ser exterminado em nome do consenso defendido pelo texto).

Partindo-se da concepção de que a presença da morte no prólogo deveria ser realçada não apenas nos textos que eram ditos pelas atrizes ao longo do percurso, foi se tornando cada vez mais necessária a criação de uma igura que tecesse um io condutor entre as diversas estações que compunham o prólogo e, ao mesmo tempo, evocasse as questões que determinavam a própria linguagem desta cena inicial: a viagem, a queda e a morte.

Assim surgiu a proposta de oferecer a uma das integrantes, Emanuele Mattiello, a tarefa de construir uma igura que denominamos Alegoria da Queda. A sugestão foi prontamente acatada por ela, pois se conigurava como um espaço no qual ela poderia exercitar seu interesse teórico pela obra de Walter Benjamin, seu conceito de alegoria e estudos sobre o barroco alemão, temas que ela pesquisava.

Com o auxílio da professora Fátima Lima, responsável pela área de cenograia, ela elaborou, a partir de imagens trazidas pelo grupo e de sugestões de objetos e de intervenções sonoras, um verdadeiro igurino-instalação, cujos dez quilos ela carrega na cena inicial enquanto conclama, sem falar, para que o público a acompanhe.

Um dos escritos que inspiraram essa criação é a tese número nove do texto “Sobre o conceito de história”, de Benjamin (1994, p. 226):

“Minhas asas estão prontas para o voo, Se pudesse, eu retrocederia Pois eu seria menos feliz Se permanecesse imerso no tempo vivo.”

Gerhard Scholem, Saudação do anjo Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara ixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa

a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.

Em associação a essa forte imagem que o quadro de Klee produziu sobre Benjamin, encontramos uma resposta a esse texto, escrita com a dureza característica de Heiner Müller:

O Anjo sem sorte

Atrás dele a rebentação do passado despeja cascalhos sobre asas e ombros, com um barulho de tambores enterrados, enquanto diante dele o futuro está represado, dinamitando os glóbulos como uma estrela, torcendo a palavra como uma mordaça, asixiando sua respiração. Por um momento vemos ainda o bater de asas e escutamos o ronco das pedreiras caindo atrás por sobre ele, tanto mais alto quanto mais se exaspera o inútil movimento, interrompido quando ele ica mais vagaroso. Então aquele instante fecha-se sobre ele; rapidamente entulhado o anjo sem sorte encontra o repouso, esperando pela estória na petriicação do voo olhar respiração, até que um renovado rufar de poderoso bater de asas se propague através da pedra e anuncie o seu voo.

Angelus Novus Paul Klee

Imagens apocalípticas de destruição, ruínas e cadáveres aparecem no prólogo, e a Alegoria da Queda deveria reforçá-las: essa era sua tarefa. A atriz, nessa cena inicial, vestida com a alegoria e emprestando-se a múltiplas interpretações, como igura feminina portadora de sentidos divergentes (a beleza de seu rosto em contraste com os lábios deformados; a lentidão de seu caminhar em oposição ao desespero em seu olhar), deveria lidar com a necessidade de atrair o público, convidando-o a acompanhá-la pelas estações que compunham o prólogo.

Foto de Guilherme Santos

Iniciado em edifício distante da sala de espetáculos, o prólogo se instaurava de maneira surpreendente, sem avisos à plateia. Uma das atrizes começaria a tocar desainadamente acordes de uma guitarra enquanto as outras integrantes iam, pouco a pouco, surgindo e estabelecendo um jogo entre forma (posição do corpo no espaço) e arquitetura, dois dos viewpoints que trabalhávamos nessa cena.

As formas utilizadas pelas atrizes foram escolhidas individualmente a partir do repertório construído por elas ao longo da elaboração do “Segundo Inquérito para saber se o homem ajuda o homem”, que analisaremos mais à frente. Esse momento, então, assumidamente improvisado, a regra era que, em resposta à arquitetura, fossem estabelecidas relações entre as formas. Esse jogo deveria acelerar seu andamento a partir do momento em que a igura da Alegoria da Queda aparecesse e estabelecesse seu primeiro contato com o público. Quando isso acontecia, as atrizes corriam entre a plateia e seguiam rumo às outras estações.

Fotos de Guilherme Santos e Evandro Linhares

O público seria conduzido então, dali em diante, pela igura alegórica, rumo a quatro cenas que nasceram, sobretudo, do jogo com o espaço e da utilização de trechos dos depoimentos pessoais e composições das atrizes.

O roteiro do prólogo, registrado pela comissão de dramaturgia, tanto na sua versão original (Plano A), quanto na versão para dias de chuva (Plano B) é o que segue: